Destruição criativa

E de repente todos descobriram que Lionel Trilling existiu. Nada contra a redescoberta: quem me dera que as pessoas descobrissem gigantes como Trilling, Edmund Wilson, Wayne Booth, Irving Kristol e até Gertrude Himmelfarb que, talvez por uma dessas conspirações do destino, teve seu livro Os caminhos da modernidade finalmente publicado no Brasil.

O mesmo poderia ser feito com os nossos gigantes nacionais, como Carpeaux (constantemente redescoberto porque nenhuma editora toma a coragem de publicar suas Obras Completas em uma edição integral e anotada), Alvaro Lins e Lucia Miguel Pereira.

O ponto mais importante desta redescoberta de Lionel Trilling é que seus principais acólitos – entre eles, Himmelfarb e Adam Kirsch, que escreveu a mola propulsora de tudo, um livrinho chamado Why Trilling Matters – não caíram na velha arapuca de que um crítico é sempre um artista frustrado. Ao contrário: Trilling é um daqueles críticos culturais que usaram o palco dos ensaios como se fosse uma verdadeira experiência da imaginação de todo um povo. E o mesmo fizeram Edmund Wilson ou Carpeaux – por coincidência, tanto Trilling como Wilson também têm obras de ficção que atualmente são consideradas paradigmas da literatura de seu tempo (respectivamente The middle of the journey e Memoirs of Hecate County, duas pequenas obras-primas).

Em outras palavras: um crítico não é um artista falhado, mas sobretudo um colaborador de quem fez a obra e que deve partilhar de uma sensibilidade dramática ao analisá-la e elucidá-la ao grande público.

John Milton dizia que sua obra em prosa era escrita com a mão esquerda enquanto a sua obra em versos era escrita com a direita. Interpretaram isso como se fosse uma espécie de desprezo do bardo a respeito do que escreveu pela força das circunstâncias. Ledo engano: o que ele quis dizer é que as palavras vinham de mãos diferentes – dái a peculiaridade de cada uma – mas sem dúvida vinham da mesma pessoa, da mesma personalidade, da mesma imaginação.

É o que todo crítico e o que todo artista devem ter em mente ao produzirem seus textos: a de que a única criação que vale a pena é uma purgação, uma destruição criativa.

2 comentários em “Destruição criativa

  1. Martim,

    No concernente ao trabalho do crítico e da justificação da crítica como gênero literário, vem a cabo dos seus apontamentos sobre Trilling a opinião, tão pertinaz, sobre esse mesmo assunto, do Dr. Afonso Arinos de Melo Franco, que eu transcrevo abaixo.

    ”A crítica só permanece viva e fresca quando é, ela própria, uma criação literária autônoma, independente da obra que se propôs analisar. Nestes casos a obra criticada serve de motivo à critica, mas não a domina nem a esgota. Serve de motivo como a paisagem à descrição, como a paixão ou a emoção à análise psicológica, como a situação dramática à cena teatral, como o tema ao romance. A autonomia do gênero literário consiste, precisamente, na capacidade de insuflar vida própria à composição, fazendo com que ela exista literariamente por si, tornando-se independente do seu motivo determinante. Sem esta autonomia a crítica não é gênero literário, não vive, e a sua condenação à morte fica patenteada pelo envelhecimento progressivo que a põe em contraste com a perene juventude da obra sobre que versou. Quando viva, a crítica chega a conhecer, às vezes, um destino maior do que o da obra criticada, e, então, vemos como ela permanece atual, colorida e poderosa, enquanto a outra se esfuma num relativo esquecimento. O exemplo clássico desta situação pode ser encontrado nas páginas de crítica que Boswell dedicou, na trama cerrada do seu livro, à obra do Dr. Johnson.

    Grato,
    Guilherme José Santini

  2. Falando em Lúcia Miguel-Pereira, vale a pena ler o seu romance “Cabra-cega”, que descobri através de Wilson Martins, a parti da leitura de um dos seus “Pontos de vista”, com 14 volumes. Ponha na lista tmb Fausto Cunha d’A Luta literária. Podemos até não concordar com ele, mas como escreve bem.

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