O debate sequer começou no Brasil. Há milhares, centenas de milhares de crenças no mercado; qual deve ser a minha? Devo seguir alguma tradição? Normalmente, vige o bom e velho determinismo doxo-geográfico: se nasci na Arábia Saudita, serei muçulmano com 99% de chance; se for filho de pais cristãos nos EUA, serei muito provavelmente cristão. Já o sincretismo brasileiro pulveriza imensamente essas distribuições de probabilidades. Infelizmente, a razoabilidade não possui apelo popular. Apesar do sincretismo, certamente já tivemos a experiência de, tendo aderido a certo meio cultural, incorporar paulatinamente as suas crenças. É o que muitos chamam de “vocação”. Mas raramente percebem que essa alegada vocação é uma faca de dois gumes: tivesse pisado em outra área, teria recebido chamado contraditório ou herético.
Para adquirir discernimento, há um teste já consagrado pela experiência: procure aplicar à sua crença atual os mesmos critérios que você aplicou para rejeitar as outras crenças no mercado. Em outras palavras:
The outsider test is simply a challenge to test one’s own religious faith with the presumption of skepticism, as an outsider. Test your beliefs as if you were an outsider to your faith. An outsider would begin her journey as a disinterested investigator who didn’t think the religious faith in question is true since there are so many different religious faiths in the world. An outsider would be someone who was only interested in which, if any, religious faith is correct and would have no intellectual affiliation with any of them at all. She would have to assume that her culturally inherited religious faith is probably false. (J. Loftus)
Spoiler alert: não vai sobrar muita coisa.
O Corão diz ser Cristo apenas um mensageiro, e não Deus, com base na sua tradição. Sustenta inclusive que este não teria sido crucificado (4:157); para o judaísmo, fundamento do cristianismo, se trata de um impostor. Já a Igreja diz que se trata do filho de Allah ele-mesmo. Não existe apoio na historiografia desinteressada sobre a divindade de Cristo — muito pelo contrário: não há registro histórico confiável de nenhum fato extraordinário de qualquer tradição religiosa — ou praticamente sobre qualquer fato central da tradição cristã, que como todas as outras é dolorosamente auto-referente; mesmo o simples Moisés, que já foi uma unanimidade, hoje já é, na melhor das hipóteses, uma personagem controversa entre historiadores. O mesmo quanto a todo o Velho Testamento, uma mistura caótica de narrativas com alguma credibilidade histórica e lendas sem pé nem cabeça. A mesma razão pela qual o cristão rejeita os milagres do profeta Maomé obriga o muçulmano a rejeitar curas milagrosas dos seus colegas cristãos. Ambos usam o mesmo critério, e acertam com base no mesmo critério; mas ao olhar para as alegações da sua crença — porque afinal de contas querem acreditar e encontram conforto nisso –, utilizam outras medidas mais benevolentes. Alguns chamam a esse fenômeno confirmation bias, a ânsia de selecionar apenas o que é interessante, afastando tudo o que não convém (procurar evidências em contrário costuma ser grave pecado, e guardar a vista um hábito virtuoso).
Reforçando:
The basic idea is that you can only have a rational faith if you test it by the same standards you apply to all other competing faiths; yet when you do that, your religion tests as false as the others, and the same reasons you use to reject those become equally valid reasons to reject yours. (R. Carrier)
Problema semelhante atinge as ‘conspirações de desejo’, verdadeiros vírus de linguagem, como a ufologia e o espiritismo popular: a cadeia que vai do interessado ao fato mesmo é intermediada, ad infinitum, por outros intermediários. Todo o meio esotérico funciona assim: o Outro supostamente experimentou o desconhecido, e este narrou sua experiência ao acólito; nunca o acólito chega à experiência do Outro. O Outro, por sua vez, refere a sua experiência à experiência de OUTRO privilegiado, normalmente já falecido (e. g. Paracelso ou Amônio Sacas). Em nenhum momento, portanto, a cadeia se estabelece entre o fato extraordinário — a abdução, o contato com o espírito, o milagre — e o indivíduo. Por meio das referências, entretanto, e da confiança — fides — mútua, a tradição se fortalece. (A crença não passa de hearsay.) Se mostramos ao acólito os registros de outra tradição, o acólito abandonará o critério benevolente que aplicou à sua crença e os julgará com severidade, se não com ceticismo completo.
Obviamente, o teste não vale apenas para as crenças religiosas. Apoiar nossas crenças em evidências é obrigatório para qualquer esfera da atividade humana. O ser obrigatório implica ser desonesto o desvio correspondente. A exigência das evidências deve se conformar sempre com o objeto em questão. Não há, por exemplo, “prova de amor” sujeita a método. Por outro lado, ninguém deve amar um fantasma, ou alguém que não dá mostras concretas de sequer existir.
O critério, assim, é o elemento que sobra da intersecção de todos os ‘ceticismos selecionados’. Para julgar, sempre chame o outsider: aquele que nenhum interesse tem em que determinada alegação seja verdadeira. Nunca pergunte àquele cuja vida, sustento material, conforto, e compromisso (“entrega da vida”) depende de que a alegação nunca seja desmascarada. Esse fenômeno, obviamente, não atinge apenas picaretas consumados; ele atinge cientistas, scholars, santos, campeões da prudência. O que precisa existir é um ambiente no qual o abandono das crenças infundadas seja obrigatório, severo, impiedoso; esse ambiente acompanhou as melhores descobertas científicas, mas muitas vezes está ausente em meios considerados sérios. Mesmo nos laboratórios e institutos de ciências naturais o pecado do confirmation bias pode se instaurar.
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Eu proponho um outro teste: assumir como verdade TUDO o que as religiões e seus fundadores dizem sobre si – apenas sobre si e não sobre os outros fundadores e as outras religiões.
Por exemplo, e’ verdade que:
Buda alcançou a Iluminação, se libertou do Samsara, realizou milagres;
Maomé recebeu o Corão ditado por um arcanjo, realizou milagres.
Continuando o exercício, a única escolha racional e’ ser cristão, pois segundo Cristo, “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”, “ninguém chega ao Pai, senão através de mim”, realizou milagres, ressuscitou (o que e’ natural se Ele e’ “o Caminho, a Verdade e a Vida”).
Como bem notado no texto, as outras religiões so’ se sustentam se tiverem algo de negativo ou falso a denunciar sobre Cristo. Ou então com legitimas decisões arbitra’rias, como “- Buda não e’ a Vida, mas prefiro segui’-lo”.
Apenas os cristãos podem prescindir de negar o que as outras religiões afirmam de si próprias.
Que cada um escolha livremente a sua religião. Existe apenas uma possibilidade de considerar todas as religiões verdadeiras.
Rodrigo, esse teste falha por dois motivos: (1) você assume um conjunto de premissas inconsistente, o que é frontalmente irracional; (2) nenhum desses sistemas de crença se apóia em fatos. Com exceção do essencial do budismo, que não faz nenhuma asserção histórica (ao menos não como condição sine qua non).
Meus critérios para escolha de uma religião: a) escolha uma tradição cujos ensinos sejam transmitidos de forma oral – da boca ao ouvido; b) a força das palavras ditas mede-se na vida de quem as prega; c) o trabalho na instituição deve ser voluntário e não-remunerado; d) espaço no ritual para diálogo entre as partes – perguntas e respostas. e) não há imposição de comportamentos morais do mais antigo para o mais novo; f) qualquer transformação na vida pessoal, deve acontecer pela vontade e consciência do vivente.
Esse outsider só pode ser o filósofo autêntico, necessariamente independente, não?
Quanto às crenças religiosas em particular, como você própria afirma, penso que os crentes não têm o monopólio do “confirmation bias.” Também o desejo de não crer, próprio dos ateus, ou o desejo de não saber (paradigma do avestruz), próprio dos agnósticos, influi na seleção tendenciosa de fatos e argumentos.
Enfim, o que creio é que o filósofo pode chegar à crença ou a descrença, por via da confrontação dialética e policiando o seu “confirmation bias”, inevitável em qualquer ser humano. Ou não?
Certamente, Vinícius. Cansei de ver ateus e agnósticos caindo nessa falácia.
Mas veja que coisa interessante: quase todos ateus com alguma formação filosófica que eu conheci tinham ‘desejo de crer’. Bem, essa também foi minha experiência pessoal; apesar do meu confirmation bias no sentido de reforçar minha crença, acabei por vê-la desprovida de fundamento (algo que demorou um bom tempo e que não foi nada confortável). Há também a experiência inversa: alguém como Thomas Nagel, grande crítico do ateísmo contemporâneo, afirmando sinceramente o seu desejo de que Deus não exista. Salvo engano, há um teólogo que confessou a mesma coisa.
Por isso não é uma questão subjetiva, mas de evidências. Não é simplesmente fugindo ao confirmation bias que o sujeito vai encontrar a verdade. Ele precisa pôr à prova aquilo em que crê atualmente — independentemente dos seus desejos de que A ou B seja verdadeiro. Se não passa no teste da evidência, a ‘descrença’ é inevitável. A pergunta é: essa proposição passa no teste das evidências em sentido amplo? Digo em sentido amplo porque não se trata apenas de método científico: cada afirmação tem o seu método de verificação. A afirmação de que existem anjos é diferente da afirmação de que uma esfera de chumbo pode ser dilatada sem deformação até o quadrado da sua área.
O aspecto subjetivo é importante justamente diante das obrigações que surgem no contato com a realidade. Porque dadas certas alegações e provas, não é opcional rejeitar tal ou tal afirmação. Afirmá-la quando é evidente que se trata de algo duvidoso é simplesmente desonesto.
E por isso é preciso esquecer essa dicotomia crentes e ateus, mesmo no caso de verificar se a alegação teísta tem ou não fundamento. Existe uma assimetria muito grande entre crentes de todas as religiões e o ‘descrente’. Quando não há evidências que me obriguem a aceitar a alegação de que Deus existe, é como o caso da pessoa desaparecida por 10 anos em circunstâncias suspeitas: ela é dada como morta. E em quase 100% dos casos a pessoa está mesmo morta. O extraordinário sempre requer muito mais evidências para ser afirmado; na dúvida, o extraordinário não se sustenta.
É fácil entender isso pensando na noção de ônus da prova, muito bem estabelecida no direito e na filosofia. As duas leis clássicas dão conta disto: “incumbe o ônus da prova àquele que afirma, e não àquele que nega” e “não há prova de fato negativo”. Portanto, no caso do teísmo, o ônus da prova cabe aos que afirmam a existência de Deus. Se não se desencumbem do seu ônus (e é o caso), a afirmação passa a ser simplesmente uma alegação sem fundamento. Então a posição standard é a negação da existência de Deus. Os desenvolvimentos dos últimos 50 anos da física (da cosmologia em particular) tornou muito mais plausível a explicação naturalista; se existe um modelo do universo consistente com (ou que dispensa) qualquer alegação extraordinária, invocar Deus ou os anjos é simplesmente desonesto.
Isso é um fato; gostemos ou não. Eu não gostei na época em que me dei conta disto. Mas fui obrigado a ir contra o meu desejo de acreditar.
PS.: O ‘outsider’ a que me referi não é um filósofo, mas qualquer pessoa que não esteja empenhada em que a crença seja verdadeira. Pode ser um muçulmano funcionando em um processo de canonização de um rei que cometeu centenas de chacinas contra muçulmanos no passado.
A propósito…
http://www.bbc.co.uk/religion/0/24660240
Samuel, essa notícia é velha. By the way: http://freethoughtblogs.com/singham/2010/05/25/religion-and-evidence-5-miracles-without-god/
Esse texto discute brevemente as conclusões errôneas a que se pode chegar a partir do que a médica Jacalyn Duffin teria verificado no contexto de processos de canonização. Esse texto vai mais fundo:
http://freethoughtblogs.com/singham/2010/05/27/religion-and-evidence-7-uniqueness-and-the-problem-of-induction/
E há uma série (linkada nos originais acima) sobre evidência e milagre com cerca de uma dezena de artigos. Vale a pena conferir.
Caro Julio,
Concordo no essencial: a questão é mesmo da suficiência ou não das evidências. Há indícios razoáveis que permitam concluir que a existência de uma realidade sobrenatural é mais provável do que improvável?
Usando apenas os dados de fenômenos aferíveis cientificamente, eu sempre poderia ser ainda mais rigoroso do que você parece ser e questionar tudo e todos a todo o tempo. A desvantagem seria provavelmente acabar maluco ao me levantar para garantir que não há nenhum rinoceronte na sala, apesar do que insiste o meu filho de cinco anos.
De modo que, se naturalmente não podemos aqui falar em provas científicas (experimentações, observações e medições), quando é que um conjunto de evidências é suficiente para levar à conclusão de que o mais razoável e provável é a existência – e não a inexistência – do fato?
Para ficar apenas no primeiro exemplo citado no seu texto: qual é o conceito de historiografia confiável? Só aceito um fato como confiável se o relato for em primeira mão? Se eu conhecer pessoalmente quem relatou? Se for meu parente? Se houver mais de três testemunhas testadas à base de waterboarding? Quando um relato passa a ser confiável?
Da mesma forma: passando de milagres eucarísticos a stigmatas, de curas não explicadas até possessões que revelam fatos ocultos que o possesso não poderia saber, quantos fatos extraordinários são necessários para que alguém os considere como evidência de uma realidade sobrenatural? Se a experiência é incomunicável – e será mesmo? –, só vale como evidência se acontecer com você? Ou, de novo, com um parente? Amigo com pacto de sangue registrado em cartório?
E quem determina o critério da razoabilidade da evidência? A autoridade dessa figura meio idealizada de um outsider desprovido de emoções e isolado de influências psicológicas? É possível que duas pessoas com essas mesmas características – em resumo, intelectualmente honestas – concluam de maneira oposta sobre as mesmas evidências? O exemplo de conversos, mártires e apóstatas sinceros mostra que sim.
Você hoje entende que os argumentos e evidências disponíveis (1) – mesmo examinados em conjunto – não são suficientes para indicar a probabilidade da existência de Deus e das bases de alguma religião específica. Pessoalmente, eu penso que são. Um de nós está errado, mas, no fim, o debate só faria sentido tratando – um a um – cada milagre, evidência, historiografia e argumento de teologia natural, o que é certamente inviável neste espaço.
Abs.,
Rodrigo
(1) As vias de Sto. Tomás; relatos históricos; milagres e fatos extraordinários inexplicáveis pela ciência; etc. – não preciso elencar toda uma lista que você conhece melhor do que eu.
Caro Rodrigo,
“Concordo no essencial: a questão é mesmo da suficiência ou não das evidências. Há indícios razoáveis que permitam concluir que a existência de uma realidade sobrenatural é mais provável do que improvável?”
Dado que conhecemos pelos sentidos, é preciso apontar, nos dados da experiência sensíveis, quais deles apontariam para a existência de uma realidade sobrenatural. O ônus da prova, como eu disse abaixo, é de quem afirma. E não basta apontar esses dados sensíveis: é necessário que eles sejam comunicados diretamente a qualquer pessoa.
“Usando apenas os dados de fenômenos aferíveis cientificamente, eu sempre poderia ser ainda mais rigoroso do que você parece ser e questionar tudo e todos a todo o tempo. A desvantagem seria provavelmente acabar maluco ao me levantar para garantir que não há nenhum rinoceronte na sala, apesar do que insiste o meu filho de cinco anos.”
Sim. O ceticismo absoluto é irracional e não conduz a nada.
“De modo que, se naturalmente não podemos aqui falar em provas científicas (experimentações, observações e medições), quando é que um conjunto de evidências é suficiente para levar à conclusão de que o mais razoável e provável é a existência – e não a inexistência – do fato?”
Novamente, o ônus é de quem faz um juízo existencial é de quem afirma. Já o grau o de evidências necessário é uma questão difícil. É preciso apontar as evidências e comunicá-las. (Por isso a ideia de sensus divinus calvinista não funciona: experiências religiosas são rigorosamente incomunicáveis.) Quando é possível dizer que uma mãe ama o seu filho? Nós podemos inclusive presumir que esse amor existe, por dois motivos: (1) observamos que ordinariamente ele existe; (2) os dois seres em questão existem, do contrário a pergunta não seria feita. Já com alegações sobrenaturais, nós não temos comunicabilidade e objeto estabelecido.
“Para ficar apenas no primeiro exemplo citado no seu texto: qual é o conceito de historiografia confiável? Só aceito um fato como confiável se o relato for em primeira mão? Se eu conhecer pessoalmente quem relatou? Se for meu parente? Se houver mais de três testemunhas testadas à base de waterboarding? Quando um relato passa a ser confiável?”
Essa já é uma questão mais complicada. Como historiador de primeira formação, eu diria que o primeiro standard é que a fonte seja autêntica e de primeira mão, e que o autor não esteja interessado em que o fato seja verdadeiro. Temos de medir as fontes de um relato (no caso, os do Novo Testemento) com os critérios de ‘o que é um bom historiador’ na mesma época. No caso, são os historiadores antigos: Tácito, Tucídides, Políbio (com reservas) são bons exemplos. Os relatos do Novo Testamento não passam no teste. Não há prefácio em que o autor se identifique; ele não cita as fontes; ele não discute a credibilidade de suas fontes; ele normalmente não mostra em que momento teve contato com uma fonte primária. E esses são apenas alguns pontos. A história, mesmo na antiguidade, já era uma ciência razoavelmente rigorosa, apesar dos pecados dos historiadores da época. Se entramos nos specifics, a literatura sobre o Novo Testamento é vasta. A cada ano se publica milhares de artigos; o consenso dos historiadores é que praticamente não há ponto pacífico. Eu tive 5 anos de formação em teologia e posso te afirmar: a cada dia que passa, os estudos ficam melhores, mas em compensação as certezas vão desaparecendo. É natural que seja assim, em se tratando de ciência histórica. O que atualmente me interessa nesse tema é a aplicação de teoria bayesiana de probabilidade aos estudos históricos.
“Da mesma forma: passando de milagres eucarísticos a stigmatas, de curas não explicadas até possessões que revelam fatos ocultos que o possesso não poderia saber, quantos fatos extraordinários são necessários para que alguém os considere como evidência de uma realidade sobrenatural? Se a experiência é incomunicável – e será mesmo? –, só vale como evidência se acontecer com você? Ou, de novo, com um parente? Amigo com pacto de sangue registrado em cartório?”
Se são fatos extraordinários, eles têm de ser provados de modo muito mais rico, e repetitivo, do que o são fenômenos ordinários. Isso ainda não ocorreu e provavelmente nunca ocorrerá. Além disso, esses supostos milagres provariam apenas que ‘algo extraordinário’ ocorreu, e não que houve intervenção sobrenatural, e muito menos que o seu autor é Deus. ‘Milagre’ é uma noção mal-definida. Agora, do ponto de vista pessoal, se o indivíduo está convencido, ele é obrigado a crer. É seu testemunho, e a responsabilidade é exclusiva dele. Nossa responsabilidade é não crer sem evidências.
“E quem determina o critério da razoabilidade da evidência? A autoridade dessa figura meio idealizada de um outsider desprovido de emoções e isolado de influências psicológicas? É possível que duas pessoas com essas mesmas características – em resumo, intelectualmente honestas – concluam de maneira oposta sobre as mesmas evidências? O exemplo de conversos, mártires e apóstatas sinceros mostra que sim.”
A autoridade pessoal varia. Não é um critério confiável. Teríamos de ver os specifics.
“Você hoje entende que os argumentos e evidências disponíveis (1) – mesmo examinados em conjunto – não são suficientes para indicar a probabilidade da existência de Deus e das bases de alguma religião específica. Pessoalmente, eu penso que são. Um de nós está errado, mas, no fim, o debate só faria sentido tratando – um a um – cada milagre, evidência, historiografia e argumento de teologia natural, o que é certamente inviável neste espaço.”
Certamente! Suas considerações são muito inteligentes e relevantes. O debate nunca acabará. O que importa é que cultivemos a honestidade intelectual e estejamos dispostos a mudar caso sejamos convencidos do contrário. Grande abraço!
Olá Julio, antes de tudo, adorei o texto. Você sempre manda bem (menos no texto de alguns anos atrás sobre o Tarkovsky. Eta filmes chatos! hehe).
Eu queria te levantar uma questão: e quanto à Aposta de Pascal?Há nela certa racionalidade (já li que trata-se da primeira formulação de um Jogo na história), não há? Sei que para muitos indivíduos — você na certa é um deles — a aposta por si só não é o bastante para lhes fazer crer em Deus. Mas o que impede alguém, ou que impede você, de ter perante a fé cristã, por exemplo, a mesma atitude que se tem perante uma teoria científica sem comprovação, ou até sem possibilidade de comprovação a curto-prazo, que faça, porém, bastante sentido? Perdoe-me e corrija-me se eu falar alguma groselha, mas entendo que a física moderna lida constantemente com teorias e conceitos incomprovados por um lado, mas lógicos e plausíveis por outro, sem nunca os rejeitar, e sempre aceitando com serenidade estados de dúvida e incerteza. A relatividade passou 15 anos sem experimento que a comprovasse (houve quem disse ser ela “incomprovável”) e nem por isso durante essa década e meia cientistas a tomaram como falsa; muito longe de ser descartada, foi objeto da atenção e dos estudos de todo o mundo cientifico da época, devidos unicamente ao que havia em si de racional e plausível, ainda que meramente especulativo.
O cristianismo, então, principalmente se comparado a uma cientologia da vida, e tal como exposto por Tomás, Agostinho e afins, não é uma crença carente de provas comprobatórias, sim, mas também não é racional e razoável o suficiente que lhe mereça uma aposta de Pascal?
Se puder me responder, agradeço bastante.
Grande abraço, Julio
Caro Douglas:
Quanto à aposta de Pascal. Ela está em Pensées III § 233. Para quem está familiarizado com teoria da probabilidade:
E(aposta em favor de Deus) = ∞*p + f1*(1 − p) = benefício esperado = ∞
E(aposta contra Deus) = f2*p + f3*(1 − p) = benefício esperado = finito.
É só usar o quadro:
(1) Aposta em favor de Deus -> Deus existe, ∞. Deus não existe, f1.
(2) Aposta contra Deus -> Deus existe, f2. Deus não existe, f3.
Uma boa análise está aqui: http://plato.stanford.edu/entries/pascal-wager/
As objeções são famosas:
(a) É imoral crer em Deus apenas por uma questão de “melhor escolha probabilística”. Não é uma boa razão.
(b) O argumento em si é inválido.
(c) A probabilidade de que Deus existe é indefinida.
(d) etc
Se você me pergunta o que eu acho, minha opinião é que, à primeira vista, se trata de um argumento racional.
“Mas o que impede alguém, ou que impede você, de ter perante a fé cristã, por exemplo, a mesma atitude que se tem perante uma teoria científica sem comprovação, ou até sem possibilidade de comprovação a curto-prazo, que faça, porém, bastante sentido?”
Não vejo nenhum problema nisso! Qualquer teoria sobre a realidade do universo, seja ela mitológica, metafísica, aproximada, ou altamente sofisticada, como um modelo físico-matemático, não deixa de ser, em última instância, exatamente aquilo a que se propõe: uma alegação sobre o universo! Então o que fazemos? Nós medimos o que essa alegação prevê, e comparamos essa previsão com o que observamos. O que diz o cristianismo sobre o universo em que vivemos? É ele consistente com o universo? Se sim, podemos nos perguntar se visões rivais são mais consistentes com ele. Obviamente, não vamos escolher o cristianismo se (1) ele prevê um universo totalmente diferente daquele observado ou (2) há uma teoria significativamente melhor. Hoje eu penso que (1) é verdadeiro. Guiar-se por outros critérios que não esses seria ignorar a realidade e preferir o auto-engano; e é basicamente o que resume a apologética: tentar se justificar perante um universo imprevisível e incompatível com o modo como ele é descrito pela Revelação. Por isso a apologética é a mais prolífica das disciplinas, ao lado da retórica judicial.
O ponto com a teoria da relatividade (geral e especial) é que ela, antes do ‘back-up empírico’, já tinha uma base matemática consistente e um certo prenúncio de consistência; e, o mais interessante, era uma bela e elegante teoria desde o nascimento. Para mudar ligeiramente de assunto, hoje o número de teorias cosmológicas é muito grande. Tive uma experiência semelhante há pouco: assisti a uma longa conversa entre físicos sobre a teoria do multiverso em que a teoria da inflação cosmológica foi mencionada e defendida por Andrei Linde (Stanford) (dê uma olhada aqui: Linde, Andrei (2005) “Inflation and String Cosmology”, J. Phys. Conf. Ser. 24 (2005) 151–60); mais ou menos um mês depois, essa semana agora, foram revelados dados do experimento BICEP2 (Background Imaging of Cosmic Extragalactic Polarization) que reforçariam enormemente o poder da teoria. Inclusive Sean Carroll tinha apostado com outro físico, Max Tegmark, que isso não ia ocorrer. Ao que parece, está ocorrendo; e se isso se confirmar, a teoria da inflação cosmológica ficará na crista da onda. O que isso significa? Que o melhor é ficar com teorias que possam ser testadas. Nós precisamos de segurança, não de fé. E principalmente coragem, balls, para abandonar crenças que não têm o mínimo fundamento.
Agora, se você me fala em ‘teorias éticas’, não devemos mais pensar em ciência. Temos de pensar na experiência e nas conclusões (quando existem) da filosofia. Se o cristianismo, com sua experiência, fornece uma boa teoria ética, não há porque ele estar errado nisso. O cristianismo faz parte da história, e muitas pessoas prudentes e inteligentes contribuíram para ele. O que, novamente, não significa que no nível fundamental — o da visão de mundo como um todo — o cristianismo seja consistente. A meu ver, não é. Mas estamos aqui, livres para examinar tudo. O problema de Deus — e aqui discordo da maioria dos ateus — é enormemente importante.
Grande abraço!
Julio, poucos meses atrás, respondendo a uma pergunta no Ask.fm, você afirmou:“A questão de deus (sic) não é importante; a da origem do universo, sim.” Agora, você declara o exato oposto: “O problema de Deus — e aqui discordo da maioria dos ateus — é enormemente importante.”
Qual das duas declarações é sincera?
Gilberto, evidentemente ambas são sinceras. A “questão de deus” em si não é importante mesmo, como afirmei; e se você recuperar o contexto original, vai entendê-lo (eu usei o Ask por algumas semanas para exercitar a dialética nas férias; logo fechei). Mas a questão é importante no contexto de uma discussão filosófica sobre crenças e probabilidade (o tema: em que devo crer?). Nesse sentido a minha resposta acima. Ademais: evite esse personalismo de Marília Gabriela. Sei que é difícil (também é para mim), mas só combatendo esse defeito grave brasileiro é que será possível estabelecermos algum tipo de discussão nesse país.
Dizia alguém. Antes de perguntar algo, sempre pense: o que vou perguntar é relevante? É sobre a vida alheia ou sobre um assunto objetivo?
Caro Julio, desculpe, mas não poderei levar a sério a opinião de um sujeito que está a afirmar uma postura que advém do puro acaso; afinal, se sua proposta é advinda, parece, apenas do seu meio cultural, então, ela não merece séria análise (e assim, ela pouco difere das posturas cristãs, muçulmanas, budistas, etc). “Tivesse tu pisado em outra área, teria recebido chamado contraditório ou herético”; teria outra posição.
Então, que é esse texto? É ele apenas o fruto de uma mera posição doxo-geográfica e proto-ateísta que remete um sujeito àquela crença de que ele é um “analisador incólume de religiões ou culturas”? … Será ele o fruto de um homem que está na posição de exceção? Ou é ele apenas o resultado do mesmo mal que aponta?
Tens isto, então: ou você é a exceção — e assim, mereces, é claro, uma religião própria –; ou toda a tua postura não passa de um mero resultado doxo-geográfico, também. E cabe ainda perguntar, se o último for o verdadeiro: de certo, uma vez que tu venha a aderir a um certo meio cultural, tu não irá incorporar paulatinamente suas relativas crenças? — Aliás, já não é isso?
Ricardo, obrigado pelo seu comentário. Acho que isso é uma confusão dos diabos. Mas estamos muito, mas muito longe do acaso.
Discutimos essa passagem:
Normalmente, vige o bom e velho determinismo doxo-geográfico: se nasci na Arábia Saudita, serei muçulmano com 99% de chance; se for filho de pais cristãos nos EUA, serei muito provavelmente cristão. […] Mas raramente percebem que essa alegada vocação é uma faca de dois gumes: tivesse pisado em outra área, teria recebido chamado contraditório ou herético.
Você pergunta se o meu texto seria fruto de mera posição doxo-geográfica que remeteria a uma crença de que sou um “analisador incólume de religiões ou culturas”, etc. E você dá duas opções: ou eu seria uma exceção ou estaria determinado pela minha posição geográfica.
A resposta é simples, mas tem aspectos bem diversos:
1) Se você pretende, com o que diz, que é o caso que minha posição é falsa, então seria o caso que o determinismo não se aplica. Se ele não se aplica, então eu sou livre para dizer o que disse. Então meu texto permanece incólume. E é exatamente o que eu pretendo: não concordo com o determinismo histórico-geográfico como fundamento de qualquer crença.
2) Mas ocorre que esse resultado estatístico é um fato inegável, conhecido de todos: se nasci na Arábia Saudita, é bem provável que eu seja muçulmano. Isso não tem nada que ver com a verdade do islamismo. Nem com a sua falsidade.
3) No conjunto das crenças, há várias maneiras de não ser muçulmano. Eu posso ser cristão, agnóstico, umbandista, ou qualquer outra coisa que não muçulmano. Por isso ser ateu não diz nada, não é uma afirmação; só diz que eu penso que não há razão para crer em Deus. Não é uma crença positiva (não enquanto mero ateísmo).
4) O problema central denunciado no trecho acima, que você criticou, é o seguinte: toda crença positiva, ao contrário do ateísmo/agnosticismo, é uma adesão a um conjunto de proposições. No contexto do item (2), acima, ocorre que o muçulmano aderiu ao conjunto de proposições do islamismo não porque refletiu sobre ele, mas porque nasceu na Arábia Saudita. Poucos têm o privilégio de refletir sobre suas crenças; no cristianismo, questionar essas crenças é um pecado grave; no islamismo, questioná-las a ponto de colocá-las entre parênteses é fundamento para a apostasia, e portanto para uma possível condenação à morte (especialmente se isso envolve dizê-lo publicamente e provocar o que quase todas as crenças chamam de escândalo).
5) Pois bem: eu não devo sucumbir ao determinismo geográfico! Se meu ateísmo fosse um conjunto de proposições positivas (não é), ainda assim, ao aderir a ele, eu deveria ser suspeito de apenas ‘seguir a tradição’ se o fizesse porque nasci numa família atéia na Suécia. Ocorre que questionar o ateísmo não é pecado: primeiro porque isso é encorajado em qualquer contexto crítico em que o que importa são as evidências, e não um compromisso eterno com um conjunto de dogmas; e segundo porque não serei punido caso levante uma questão séria. Eu diria que, para um ateu, questionar continuamente as bases do próprio ateísmo é, mais que isso, obrigatório. Essa é a grande vantagem de estar submetido à realidade, e não ao wishful thinking.
Assim, são coisas muito diferentes; não existe uma simetria epistêmica entre ateísmo e uma religião x. Como creio na objetividade, e não no insustentável determinismo geográfico, estou certo de que é possível julgar todas as crenças com base nas evidências de que dispomos (o resultado será, obviamente, probabilístico). E descartar todas as que não passem nesse teste. Isso tem pretensão universal e independe do lugar onde o teste é feito, e de quem o faz. Assim como a proposição ‘H2O é água’ tem validade em qualquer lugar ou tempo.
Caro Julio,
Seu texto é interessante. Assim como o Rodrigo Garcia, concordo com a ideia geral: evidências são necessárias para qualquer crença. Porém, como você mesmo acrescenta, a “exigência das evidências deve se conformar sempre com o objeto em questão”. E é esse ponto que, parece-me, poderia ser melhor desenvolvido. A falta de compreensão sobre que tipo de evidências são apropriadas para cada objeto acaba por produzir críticas injustas, sobretudo quando o objeto em questão se encontra no campo moral ou religioso. Senão, vejamos.
Pensemos em modos de vida orientados a certos bens – o ágape cristão, a experiência estética, a racionalidade, entre outros. Pergunto: será que existem evidências empíricas a justificar a adesão a um bem em detrimento de outro? Um cientista ateu possui mais evidências para fundamentar sua orientação a certo bem do que, digamos, um vegano panteísta? Suspeito que não. Ele provavelmente possui *algum* tipo de evidência, mas ela não atenderia às exigências mínimas de validade científica. Nesse caso, de que tipo de evidência estamos falando? Qualquer que seja essa evidência, ela não é facilmente demonstrável (se é que o é de alguma forma). E, o que é mais importante, os limites de possibilidade de demonstração valem para a adesão a qualquer tipo de bem, e não apenas para o que entendemos por “religiosos”.
Não acho que, rigorosamente falando, um religioso esteja aberto a evidências desse tipo, isto é, do tipo que o faça questionar sua adesão a um bem último. Mas isso não é um problema. Se meu argumento estiver correto, a própria busca por um desses bens pressupõe o abandono ou rejeição dos bens concorrentes. Nesse sentido, a não abertura a evidências desse tipo caracteriza todos os modos de vida, sejam ou não “religiosos”. Em seu íntimo, um ateu não vai se permitir se abrir ao tipo de evidência que lhe permitiria experimentar a fé – e, por consequência, abandonar o bem que perseguia até então, seja ele o racionalismo, a coragem intelectual, ou o que for. E ele não é necessariamente desonesto por causa disso, assim como o cristão não é necessariamente desonesto por seguir a frase de Santo Agostinho: “não te afastes d’Aquele que te fez, nem mesmo para te encontrares a ti”. Parece-me que a acusação de desonestidade, nesse caso, baseia-se na crença ingênua de que o crente (ou descrente) se recusa a revisar a própria crença por alguma razão mesquinha (preguiça, medo, má-fé, etc.). Mas, seja para crentes ou descrentes, essa é muito mais a exceção do que a regra.
Um fraterno abraço,
Fábio
Caro Fábio,
Sim, no geral eu estou de acordo. Mas minha tese mais positiva, mesmo nesse texto, é que existe uma assimetria entre a adesão pela fé e a adesão por (com base em) evidências acessíveis. Um homem de fé não consegue apontar, indicar, o fundamento para a sua crença. O vegano panteísta do seu exemplo (se o seu panteísmo for meramente simbólico) não tem dificuldade alguma em apontar o seu ‘deus': o cosmos. Por isso a fé tradicional é incomunicável. E se não pode ser comunidada, padece de um vício insanável; no fim das contas, está apoiada em uma impressão subjetiva, em uma associação de ideias ou — no caso mais genuíno que consigo encontrar — na *confiança em que Deus não pode me enganar*. Mas nem esse caso se sustenta, porque essa confiança não se estabelece diretamente com Deus, mas com a impressão que ‘dá fundamento’ à sua confiança. Não se estabelece uma relação entre Deus e o crente que este último possa mostrar aos outros; a grande desonestidade intelectual envolvida é que, perguntado sobre a razão da sua crença, o crente não é capaz de respondê-lo satisfatoriamente. Aliás, se ele for capaz de fazê-lo, nesse mesmo momento obrigaria o interlocutor a se converter (seria desonesto não se converter quando existe comunicabilidade e clareza). Como sabemos, isso está muito longe de acontecer: na prática, temos milhares e milhares de sistemas de crença mutuamente excludentes. Esse fenômeno é exatamente o que se espera quando os sistemas de crença não possuem relação com a realidade: como não há teste de consistência e adequação, eles se multiplicam.
A assimetria entre o ateu e o crente é, portanto, evidente. O homem é naturalmente ‘a-teu'; tanto que é necessário uma cultura, uma doutrinação (mesmo no bom sentido), para que ele venha a aderir a uma alegação extraordinária (como costumam ser todas as alegações religiosas). Irracional, portanto. No outro lado “ateu” não existe alegação extraordinária: basta uma referência aos dados da ciência(*) e do senso comum. Daí a assimetria radical. Não é uma questão de opinião.
(*) Deixei de lado algo de que tratei de passagem acima, que é o argumento da maior consistência entre o que a ciência e o senso comum prevêem para o universo e o que o teísmo prevê sobre o universo.
Um abraço,
Julio Lemos