Ironia e fundamentalismo

Pode ser proveitosa a leitura do artigo de Christy Wampole, “How to Live Without Irony“, que associa os hipsters à cultura da ironia, e clama por um mundo mais sério. Mesmo que seja para jogar pedra.

Falar de hipsterismo é como tratar de temas escatológicos ou de Teologia Moral em público, mesmo que seja para demonstrar repugnância (confesso que nada me repugna mais do que os maneirismos que cercam a cultura hipster). Há coisas sobre as quais não se fala. Recentemente, o escritor Fabrice Hadjadj declarou que não pretende, jamais, falar da sua conversão, ciente de que se trata de um assunto infamante. Será excessivo senso do ridículo, concessão ao laicismo ou simples discrição? Estou seguro de que se trata de mera discrição. O fato é que a menção a uma moda fadada ao desaparecimento macula a respeitabilidade de qualquer artigo, e por isso manteremos os hipsters no seu lugar conveniente: a insignificância. Mesmo assim, vale a pena discutir a raiz disso tudo.

A ironia não é um defeito, e nem uma virtude pessoal, mas uma camada de civilização, um modus operandi mais ou menos superficial. Uma sociedade fundamentalista, em oposição à irônica, é monolítica, direta e pessoal. Não é possível avaliar o grau de perigo que a ironia oferece. É um fato cultural, um pretexto, e não uma opção. É possível ser sincero numa cultura irônica, e é possível ser cínico numa cultura de sinceridade aparente, como a antiga. (Observe, por exemplo, os modos de Cálicles e Protágoras nos diálogos fictícios de Platão.) Dado que valores humanos reais — como o respeito ao sono e ao silêncio e a repulsa ao homicídio — são mesmo reais, não desaparecem sob os modos cambiantes da cultura. Um burguês confortável que sofre um acidente, sofre-o como um aborígene: com dor física, choque e sangue momentâneos, lembrança e tristeza posteriores. A realidade, como observou Wampole, iguala convictos e descrentes.

Nossa cultura não é apenas irônica em seu discurso. Fatos irônicos ocorrem o tempo todo: ateus exemplares se desesperam, budistas dão exemplo de simplicidade; agnósticos triunfam na alegria e protestantes sofrem de depressão profunda. Crentes célebres, como Chesterton, diziam que ateus são infelizes porque não têm a quem agradecer quando recebem algo de bom. Mas nunca vimos um só descrente reclamar que não tivesse um ente metafísico a quem agradecer. Nessa ânsia por autojustificação — Chesterton tinha consciência de ser um rhētor inteligente e sofisticado –, o inimigo cultural ou filosófico é sempre desqualificado como um infeliz (o que chamei alhures de ‘projeção dogmática sobre a realidade’), apesar dos fortes indícios empíricos em contrário. O outro lado também é pródigo em desqualificar cristãos sob a mesma alegação de infelicidade dogmática.

Mas mesmo camadas profundas de cultura são incapazes de alterar a realidade do nascimento, do crescimento e da morte, que atinge os bons, os maus e os claudicantes da mesma forma. Todos lembrar-se-ão da chuva eclesiástica a cair igualmente sobre eles. A vantagem de uma formação religiosa de tipo forte, nos termos de Charles Taylor, é que ela nos permite comprovar na carne que Deus é incapaz de necessariamente alterar um só centímetro do caráter e da vida de um homem. Quem o nega, nunca acompanhou as manifestações de um católico oficial (um troll) em um grupo de discussão. Nossos anti-irônicos mais sérios, os mais convictos soldados do bem, costumam exceder-se em perversidade.

* * *

A ironia atingiu proporções monstruosas porque nós, mais do que nunca, acreditamos nas camadas culturais que nos envolvem e lhes conferimos o status de realidade inalterável. Acreditamos na ironia e no estar à deriva. Sempre acreditamos em algo.

* * *

Parte do fascínio exercido pela ética é a imprevisibilidade do bem. Ele é encontrado apenas no que não se identifica explicitamente com ele (o que na tradição clássica é chamado, de modo patético, de  ‘força do exemplo’). O estudo do fenômeno moral demonstra, a todo momento, a incapacidade da pregação ex cathedra ou do púlpito de reformar o espírito humano. No momento em que se mostra e se exibe, mesmo sob a capa da discrição, como flecha dirigida ao Sumo Bem, toda boa intenção eficaz desaparece. Eis o mistério da moral: exaltamos o bem na mesma proporção em que fracassamos no esforço por perpetuá-lo.

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9 comentários em “Ironia e fundamentalismo

  1. Artigo estranho. Começa falando dos hypsters e depois usa sempre de referencias negativas o pensamento conservador, notadamente Chesterton e os católicos. Artigo estranho mesmo, especialmente na Dicta. Já não é o primeiro artigo assim nos ultimos meses. Devemos ficar atentos a uma guinada editorial “progressista”.

  2. Antunes, os hipsters (é com ‘i’) são extremamente conservadores, embora eu não defenda essa tese aqui.

    Chesterton era contrário à aristocracia (toda elite, para ele, era na melhor das hipóteses ‘um pecado venial’) e ao conservadorismo, caso você não saiba.

    Não sei nem o que é progressismo. Ninguém aqui compra ideologia no atacado, faz manifesto político ou forma igrejinhas. Preguiça de pensar tem limite.

    ‘Atentos a uma guinada progressista’. Você é algum fiscal da KGB ou da Gestapo? (-:

  3. Belo texto, Julio. Mais na linha “poética”, digamos, que os anteriores.

    A propósito do tema do ateu feliz, mais uma vez tocado de raspão neste blog, eu folheava no último fim de semana um livro com as ditas últimas palavras – escritas e não publicadas – do independente Christopher Hitchens. Parecem que foram coletados em ordem cronológica: os textos vão diminuindo de tamanho e o último é uma só uma coleção de parágrafos soltos e aforismos dentre as quais se destaca alguns um tanto enigmáticos:

    “Se eu me converter é porque é melhor que morra um crente que um ateu.”

    “Philip Larkin tinha razão: um ateu não deveria oferecer consolo.”

    Mas, ao que tudo indica, morreu fiel ao seu “estóico materialismo”, sem desesperar e nem mandar chamar o padre como Voltaire.

  4. Júlio, a ironia é ótima… que mundo chato teríamos sem a ironia… Ironia por ironia, é irônico o maior hipster que conheço falar contra os hipsters… eita fome de independentismo!!

  5. Vinícius, obrigado pelo comentário. Não li essa coletânea do Hitchens, mas tinha lido a respeito. (O Martim escreveu sobre a morte dele aqui, você deve se lembrar.) Minha amostra pode ser viciada, mas nunca conheci um ateu atormentado como aquele descrito pelos apologetas. Já crentes (em sentido amplo) atormentados são a regra, ainda mais com a formação deficiente que conhecemos. Nesse sentido, para muita gente o melhor é não receber nenhuma ‘formação’, se a que recebem não estimula de fato a liberdade e a responsabilidade (mesmo que repitam slogans como “viva a liberdade” o tempo todo — o que só torna a situação… irônica). Eu citei os católicos de Internet porque o fenômeno é bastante conhecido.

  6. Calma, Julio, calma no “ad nominem” na ten
    tativa da ironia e rotulagem… nao sou fiscal da Gestapo nem da KGB. Alias, fiscais de totalitarismos nao faltam hoje em dia, o que os historicos faziam por medo ou emprego, os de hoje fazem por gosto mesmo. “Devemos ficar atentos” realmente abusou do plural majestatico, soou meio pernostico. Liguei dois pontos e tracei uma reta. Se for uma parabola que passou pela inflexao, hei de me dar mal. Falta o terceiro ponto. Ai o ficar “atento”. Quero ver aonde vão os pontos. Estou acompanhando os artigos. “Ah, você é fiscal entao!”. Ué, sou leitor :) Fiscais aplicam sanções. Eu no máximo balanço a cabeça e digo “Nao concordo com o que vai escrito”

    Chesterton ser contrario ao conservadorismo eu discordo. Talvez por algum conservadorismo aristocratico de sua época que hoje em dia não existe mais, porém Chesterton é ponta de lança do revival do pensamento conservador hoje em dia, fique bem posto. Se era seu pensamento original, é uma discussao tao velha quanto Aristoteles ter sido “batizado” por São Tomas na filosofia.

    Quanto aos hipster conservadores (perdoe o y, inspirei-me nas empilhadeiras Hyster), há abundantes referencias a hipsters (com “i”, aprendi) nao-conservadores.

  7. Tranquilo, Antunes.

    Chesterton não gostava nada de guerra cultural e ideologização do discurso, algo que os conservadores brasileiros, imitando o Tea Party americano, costumam fazer. Ele abominava (1) o que hoje chamamos ‘conservadorismo’ em oposição a ‘progressismo’, e (2) o que à época era a visão de mundo conservadora:

    “The business of Progressives is to go on making mistakes. The business of Conservatives is to prevent mistakes from being corrected.” (Ilust. London News 19/05/1924).

    “A progressive is always a conservative; he conserves the direction of progress.” (Introdução a um livro de Carlyle).

    Eu gosto da seguinte frase: “Progress should mean that we are always changing the world to fit the vision, instead we are always changing the vision.” Chesterton disse isso em Ortodoxia. Alguém que não está preocupado com guerras culturais ou afiliações ideológicas simplesmente procura, a todo tempo, ajustar a sua visão de acordo com a realidade exterior. Se você se fixa em uma visão de mundo — seja ela conservadora ou progressista, de todo modo definida –, será obrigado ou a mudar o mundo, ou a manter a sua visão a todo custo. O conservador se iguala ao esquerdista que tanto combate ao fazer ouvidos moucos a argumentos que lhe seriam prejudiciais. Quem tem rabo preso não pensa. O melhor é seguir o princípio formulado por Hume: ajustar, ‘proporcionar’ as crenças às evidências. É mais difícil, mas tem de ser assim.

    Só temos a razão e a prudência; elas não fazem de ninguém um conservador. Por fim, um slogan rebelde de Chesterton: “A dead thing can go with the stream, but only a living thing can go against it.” (The Everlating Man).

    Chesterton também disse muita bobagem — escreveu doidamente por anos — para justificar sua visão de mundo. É perdoável. It’s only human.

  8. Gosto desta dialética conservadorismo/progressismo que você explora num artigo anterior. Creio que tudo dependa de condições históricas e sociais. Aprecio muito um velho ensaio apologético de Antônio Olinto, tido por conservador em alguns aspectos, sobre Henry Miller. Começa com uma bela frase: “Quando os elementos formais de uma passado continuam a ser mantidos apenas em sua parte morta, faz-se mister que alguma coisa, ou alguém, se levante contra a caiação de sepulcros.” A obra de Miller fazia grande sentido em sua época e contexto social, onde, diz-se, costumes puritanos reinavam farisaicamente contra o valor de verdade. Hoje imitá-la seria repetir a história como farsa.

  9. “Chesterton também disse muita bobagem — escreveu doidamente por anos — para justificar sua visão de mundo. É perdoável. It’s only human.”

    UAU!

    xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

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