Natural e Sobrenatural em Fausto de Goethe

fasto

Edith Stein [1]

Traduzido por Heloísa Gusmão [2]

A literatura deste ano sobre Goethe assinala claramente uma contenda a respeito de se definir uma posição diante de um espírito que, como raros, tem influência em seu tempo e na posteridade. Os antigos se perguntam em que lhe devem agradecer em sua formação e que importância tem hoje para a formação da juventude. Três gerações de católicos que atualmente convivem mostram uma atitude claramente diversa. Os veteranos do tempo da Kulturkampf [3] se inclinam a fazer uma divisão rotulativa. Tinham por tarefa contrariar os ataques que vinham de fora, mas também eliminar os vírus introjetados nas veias da vida dos próprios católicos alemães. Dentro de sua tarefa estava também a rejeição de um culto exagerado a Goethe, o que encontrou sua mais poderosa expressão na grande obra de A. Baumgarten sobre Goethe.

O catolicismo da guerra e do pós-guerra mostrou outra atitude. Vinha na vertente de estranhas vias de espírito, mas também havia se afastado de atitudes defensivas simplesmente negativas frente a elas. Felizmente, consciente da riqueza inesgotável de sua Igreja, descobriu os bens do espírito católico também em outros campos e os reclamou a si, não se cansando de mostrar sempre novos valores católicos em sua obra. Ela se põe ao serviço de uma apologia de Goethe não somente para a velha geração, mas também – e principalmente – à mais jovem. Porém a juventude moderna, a juventude de hoje, que não cresceu na velha tradição, mas que vive de um espírito novo, já não sabe o que fazer com Goethe. Que pode dizer a homens que sofrem uma dura luta existencial um homem que nunca conheceu tal sofrimento, que pode se dar ao “luxo” de viver sua cultualidade e ver no problema da forma artística o problema último da vida? Esta é, claramente, uma perspectiva superficial e bem se compreende que esta postura deve ser vista com pesar pelos antigos que se empenharam com todas as forças para manter os valores que, embora passados, são importantes para o presente e futuro. Pode-se notar que eles, neste esforço, às vezes extrapolam o objetivo e mancham as linhas divisórias que devem permanecer traçadas. Certamente a primeira tarefa é abrir os olhos da juventude às grandes criações do espírito alemão e despertar o respeito e a gratidão. Mas em seguida o nosso grande dever é igualmente chegar a um claro posicionamento e ao discernimento dos espíritos. A serviço desta tarefa, quero expor agora, à luz de nossa fé, a estrutura do pensamento desta obra que tem sido chamada de “A Summa de Goethe”.

I)
Há alguns meses, na Suíça, eu vi uma igreja singular[4]: entre duas torres góticas da primeira época havia uma fachada barroca e, correspondente a esta, o interior do edifício – duas estruturas completamente diferentes haviam crescido conjuntamente, de modo que só se podia pensar em como podiam formar o conjunto. Tive que pensar nesta arquitetura quando, pouco tempo depois, retomei a leitura de toda a obra poética de Fausto. Também aqui temos um plano duplo. Alguém poderia se propor a considerar as duas partes da obra separadamente (só a estrutura sem considerar a ornamentação), mas não obteria êxito numa completa separação, pois temos diante de nós um todo orgânico e seu processo de formação é um mistério. Sabemos certamente que o jovem da Sturm começou com o Barroco ou talvez mais propriamente com as construções renascentistas e que o mestre maduro pôs ali as torres góticas e seus muros. Mas não está aí toda a catedral gótica da lenda popular, antes que o gênio original tivesse posto mãos à obra e o espírito que construiu a velha catedral não guiou a mão do mestre até o fim de sua construção?

Seja como for, procuremos lidar primeiro com o edifício central, o Fausto do Renascimento, ao que também chamamos de o Fausto da Sturm und Drang[5] ou o Fausto dos tempos novos. É ele também o que predominantemente atraiu e preocupou aos modernos, aos homens do sec. XIX e começo do sec. XX até a época de transição qual estamos agora. Nele que ele mesmo se encontrou, o Fausto originário, o Fausto dos grandes monólogos e das tragédias de Gretchen, o homem com as duas almas que ameaçam rasgá-lo. Um “senhor microcosmo” é este homem, todo um pequeno mundo: assim como ele mesmo se sente, completamente só, fechado, um solus ipse perdido. Nenhuma ponte o leva aos homens gregários, satisfeitos em seus círculos estreitos, nos quais nada arde o fogo abrasador que sente em si mesmo. E, contudo, ele os impulsiona como faz com tudo o que está fora dele. Quisera ele romper as barreiras que o detém em seu estreito eu, no entanto também se sente como parte do grande todo, do macrocosmos, do universo vivo. Quisera romper este universo para ampliá-lo acrescentando-lhe a si mesmo. Teve se enveredado pelo caminho costumeiro de todo conhecimento humano, teve respeitado toda a sabedoria popular e ela nada lhe acrescentou. Ele tateia superficialmente as coisas e as destrói, pois não o fazem penetrar no laço espiritual. Não lhe podem dizer “no que o mundo se mantém unido em seu mais íntimo”, tampouco o levam ao coração da natureza ou aos tempos passados.

Assim ele adentra ao caminho da magia e é levado até o contato com o mundo dos espíritos, mas somente para ser lançado em si mesmo como alguém totalmente diferente, incompreensível para si mesmo. Já não há outro caminho senão o escapar de si e penetrar o grande mundo dos espíritos? Romper o lacre terrestre e livremente atravessar a porta escura da morte? As doces notas dos cânticos de Páscoa o conduzem ao limiar da conversão. O que lhes dá este poder? A memória de um desejo inconcebivelmente nobre, assim pensa ele mesmo, assim que acorda da memória de uma felicidade perdida em juventude. No entanto sente, no passeio de Páscoa, que há fontes de felicidade para ele nesta mesma terra que quisera abandonar. A unidade que seu entendimento não intelige é sentida no coração da natureza. Percebe-a na circunscrição de uma existência única dos homens. Quisera ele sobrevoar o mundo para beber de toda sua beleza, submergir na vida para provar todo bem e todo mal da humanidade. Então empreende sua viagem pelo mundo. Um gosto vulgar não o pode prender, pois nele o impulso espiritual é muito mais forte. Porém experimenta também outro impulso e seu poder destruidor. Seu desejo de superar a solidão, a pequenez de seu próprio ser, encontra a satisfação quando um ser humano em sua forma mais amável, uma jovem inocentemente pura, ilimitavelmente amável e confiável se lhe é confiada. Enfim se faz o aniquilamento, a destruição, de todo este mundo pequeno e cheio de paz.

Assim termina a poesia da juventude e não poucos se contentam com este fragmento, assustados pela dificuldade das partes seguintes. Em relação a este mundo cheio de sangue e de vida, não seria esta apenas uma alegoria pálida? Sem dúvidas o leitor sério prosseguirá e, se tomar um viés naturalista, tratará de seguir interpretando a poesia no mesmo sentido que até agora.

Como uma amável memória de um ano passado salvou o herói da morte, assim um bom ouvido livra a alma da opressão da culpa e a deixa crescer na vida ativa. Assim como um prazer vulgar não o pode encarcerar, também não o podem fazer os atrativos de uma vanglória. A honra e a influência na corte real não logram detê-lo, pois poderosamente o arrasta o ideal da pura Beleza. Não teme a renúncia total e o ostracismo para seguir Seus passos e conquistá-la ainda neste mundo. De fato, não pode ser esta uma conquista duradoura, mas quem uma vez a conquista, sua conquista o leva permanentemente ao eterno. Eleva-o a uma altitude livre, da qual conhece o mundo e a sua missão nele. Inicia então uma vida de trabalho perseverante, de luta contra “a força inútil dos elementos indomáveis”, para “abrir espaços a muitos milhões”, “para estar sobre um fundamento livre e com um povo livre”. A partir do pressentimento do fim alcançável, goza do momento mais sublime de sua vida e da indestrutibilidade de sua incessante obra, e este momento se tornará para ele o passo decisivo ao reino do ser espiritual mais elevado e puro.

Mas nesta maneira “naturalista” de interpretação, que será do companheiro, aquele que está do lado de Fausto em sua peregrinação como dirigente e guia de seus prazeres, como servo e instrumento de suas ações? O que será do prólogo no céu que ata o nó deste drama terrestre? O que, da glória dos céus, abre-se ao que trabalha constantemente? O pacto com o diabo está no centro da saga de Fausto. É impossível eliminá-lo, pois significaria eliminar toda a obra. Porém o leitor moderno não se assegura de que o poeta crera – e tampouco ele mesmo crê – na existência personificada do mal. Mefisto mesmo se ri não poucas vezes do velho fantasma da crença popular. Não é a oposição entre o Senhor e seu contrário, entre o céu e o inferno, apenas um linguajar poético, simbólico e atrevido da luta das almas no próprio íntimo do homem, entre o espírito que quer trabalhar sem descanso e alcançar o ideal eterno e os impulsos inferiores que encaminham ao pó, que o apartam de seu objetivo, que o encaminham aonde seus atos são destruídos em vez de construídos? (Poderíamos também dizer: entre a razão superior dirigida ao eterno e a inferior que só serve a um fim terreno, que atropela os caminhos com os prazeres fugazes e que destrói a si mesma com uma agudez crítica). Porém o espírito não necessita submeter-se aos impulsos, pois pode lhes resistir fortemente. E, se o faz, então transfigura sua maldição em graça, tornando seus impulsos incentivo para sua ação, eles lhe aumentam sua força e são educados à prática do bem. É possível que esta visão da vida do poeta se aconchegue bastante à leitura, porém disso não se segue que ela esclareça o sentido último da tragédia.

Parece-me uma empreitada muito arriscada querermos fornecer um juízo definitivo e determinante sobre a visão religiosa de Goethe, pois suas visões são demasiado variadas e paradoxais e talvez nunca tenha expressado a sua visão mais profunda. Porém, de forma alguma deve ocultar-se aquilo que o poeta como homem está convencido e expressa em sua obra. Enquanto cria como artista entregado a um processo de todo puramente criativo, está “sob o poder de um espírito superior”. E assim, a última chave de leitura não é o poeta, mas seu próprio poema. Sem dúvidas, este poema oferece ao crente ou ao leitor que se move no mundo da fé cristã algo completamente diferente de combates de uma alma que luta só.

II)
Com isto abandonamos a construção renascentista e adentramos na catedral gótica. É evidente que o prólogo no céu, contemplado de um viés exclusivamente poético, tem um caráter completamente distinto que o mascarado, a clássica “Noite de Walpurgis” [6] ou o drama de Helena na segunda parte. Ali temos uma linguagem alegoricamente figurada, que dá indicações de outra coisa completamente diferente daquilo que apresenta em imagens. Aqui entramos em um mundo do ser real e dos fatos, que já não se remete a algo mais além “do que se pensa como real”. Para o crente não é nenhum mundo estranho, senão o que lhe é conhecido e quisto, que contempla com respeito e santa alegria: os exércitos celestiais que cantam o eterno Sanctus, louvam o Criador em Suas criaturas, elevam-se altamente sobre a capacidade cognitiva humana, mas também são incapazes de compreender o imperscrutável e, tranquilos no humilde conhecimento de sua impotência, na “doce realidade e alado fervor”, dispostos ao serviço do Eterno.

Uma estridente dissonância rompe esta harmonia: o discurso atrevido do malfeitor que, com sua capacidade destruidora, trata de infiltrar-se na criação de Deus e se atreve a aparecer diante do Senhor e desafiá-lo, como se fosse um poder paralelo ao do Altíssimo – tem mesmo de confessar contra sua vontade que suas obras não são levadas adiante a menos que o próprio Deus o permita. Pela alma do homem se trava a batalha, céus e infernos lutam por ela. Se a observarmos em sua solidão e precariedade, conhecendo apenas o impulso escuro de seu caminho que a encobre de noite escura e de neblina, se adentrarmos em sua luta, de seu cair e levantar-se, seremos acompanhados da segura confiança de que esta alma está tocada pelas mãos de Deus, de que seu caminho e sua meta são claros como o Sol do ponto de vista do Eterno e de que Ele manda seus anjos sobre ela, para que a conduzam do horror à claridade.

Duas almas lutam pelo peito solitário. Um poder está junto a ele e o desperta toda a sua efemeridade, quer prender em cadeias o espírito e roubá-lo de sua fonte originária. Sua influência se sentirá em todo seu caminho. Ele, abandonando a si mesmo, coloca-se em esforços desesperados para seus próprios limites, como autêntico filho de Adão. Assim, na presença do tentador a dor pela impotência de seu espírito se transforma na temível maldição de todos os dons do céu. Ele, que anseia por aquilo que vai além do terreno, já não mais quer saber de nada além das alegrias e tristezas desta terra, ainda que somente para se convencer de sua nulidade. Ele, cujo coração poderosamente se comove diante da imagem da pureza e da inocência e cuja conduta até então fora sem mácula, deixa-se agora cair nas redes da arte diabólica. Procura na sofística diabólica se tranquilizar quanto ao sentido do horror e do dever que se revolta contra a falsa exigência do falso testemunho. Justo quando ele se desvia mais e mais do direcionamento de Mefisto, são-lhe dadas tarefas que não são do agrado do companheiro infernal – a conquista de Helena, o trabalho nas praias – ele não pode prescindir de Mefisto como ajudante e por isso sempre de novo mancha suas ações com maldades. Para ele, a quem uma vez tilintaram os sinos da vida e da morte, causa repulsa o som do tilintar dos sinos das Ave-marias.

Contudo, ele não está sem proteção à mercê do poder do inferno. Podemos ver uma “causalidade”, que no momento em que põe aos lábios a bebida da morte ressoam os cânticos de Páscoa? E um simples recordar dos piedosos dias de sua juventude pode realmente ter o poder de freá-lo ante o último passo? Não, para os olhos da fé é o guiar da graça e a obra da graça, talvez o fruto daquele passado de santos dias de celebração de Páscoa. Quando o piedoso sentimento infantil de sua amada o interroga por sua fé e sua alma desprevenida o convida à separação do companheiro inquieto, não é a graça de Deus que fortemente toca seu coração? Não é ela que, em meio às danças da noite de Walpurgis deixa transparecer a pálida figura da abandonada e o leva à sua salvação? Cheia de força se anuncia na alma da condenada, que se arranca do amado e escolhe o caminho da penitência e da morte na voz do anjo que anuncia a salvação. Se, no entanto, ela não pode libertar-se do companheiro, então trabalhará de novo insistentemente. Desde então, não lhe será fácil deixar de se guiar, mas esperará ansiosamente um objetivo próprio elevado, um que o espírito da negociação não possa tomar.

A sorte da alma não é nenhum resultado mecânico de suas forças opostas, tampouco é um jogo de queimada entre o céu e o inferno. Ela mesma escolhe com liberdade seu caminho e, portanto, expõe-se ao erro. Graças a sua liberdade crê poder forçar a ruptura em um mundo mais elevado e uma livre resolução a permite chegar ao limiar. Tão alto valor tem para ela a liberdade que coloca a atividade como princípio do ser. Por livre decisão se determina a fazer o pacto com o demônio, cede às suas pompas. Quando seu melhor eu o manda evitar a companhia de Gretchen, força-o por outro lado a apressar-se com ele à cidade para salvá-la. Em troca de seu livre-arbítrio, fugir com sua companheira, em vez de ir com ela pelo caminho do arrependimento. Livremente se determina a ceder às “madres”, apesar do esforço da natureza para encontrar a mais elevada beleza e atribuí-la a este mundo. Livremente se decide pela batalha com os elementos de um trabalho fatigante. E Mefisto mesmo tem que testemunhar, por fim, que ele o resistiu fortemente. Por isso mesmo esta luta incessante do espírito livre é, de acordo com o canto dos coros celestes, a condição prévia de sua salvação: “a quem sempre quer, esforçando-se na luta, podemos salvá-lo”.

Com isto se converte o canto da vida de Goethe na imagem católica do mundo, se o colocamos ao lado de Dante e de Calderón? Ao que parece, tudo o que é necessário se faz presente: o homem, com impulso natural lutando pelo mais sublime objetivo, porém freado e desviado por paixões mesquinhas, espíritos bons e maus ao seu lado, escolhendo livremente entre os dois e com isto empenhando-se por sua vez à ajuda da graça e do céu. Sem dúvidas, qualquer um que, com espírito católico, sem prejuízos e com sinceridade se aproximar do poema, claramente sentirá que aqui falta algo essencial, à solução do poeta faltará a fé. Os belos coros da cena final não têm nada da força bíblica dos hinos dos arcanjos no Prólogo, mas lembram mais os cânticos com os quais os servidores de Mefisto cantam a Fausto em sonho, os cantos dos Elfos, que afastam a alma do arrependimento. Eles não podem enganar nossos sentidos e nos fazer crer no impossível.

“A quem sempre quer, esforçando-se na luta, podemos salvá-lo”, esta é uma verdade aparente se esta luta não se foi decidida nem formal nem materialmente; se não é uma luta pelo bem mesmo, mas pelo Bem em si mesmo. O espírito de Fausto se apartou de sua fonte originária, ele por livre decisão se apartou do bem supremo e nunca realizou seu retorno. Em seus últimos dias de vida, mostra-se mais decidido que nunca a limitar-se totalmente ao terrestre e virar as costas para a eternidade de sua juventude, como se fosse presa de uma atividade que o impulsionasse a levar a cabo o trabalho de sua vida. E quando se cega com o sopro da preocupação, parece-nos (apesar de sua afirmação de que em seu interior brilha uma clara luz) como que um símbolo daquela cegueira espiritual que trata de escapar das consequências, fechando os olhos a elas.

Como vamos crer que este espírito que se apoiava orgulhosamente em sua própria força, pertencia aos “delicadamente arrependidos”, quais o amor elevado pode encontrar acesso, e este amor que os pode penetrar ter como meta de seu enlace sua purificação e finalmente sua total acolhida? Isto só é aparência, como se chegaram natureza, liberdade e graça no canto de vida de Goethe. Não se emprega a liberdade para se pleitear conseguir a graça e abrir as portas. A graça não deve fazer mecanicamente seu trabalho, tendo que, ao que se vira contra ela, conquistá-lo e elevá-lo às alturas sem que este necessite escalar o monte da purificação. Este monte se chama Calvário e em seu cume se destaca a cruz, aquele símbolo do qual Goethe se afastou e sem dúvidas se ergueu como o único caminho da terra ao céu. O símbolo que exige uma clara escolha e decisão.

Não nos cabe julgar o homem Goethe, sobre sua fé, sobre o que ocorreu entre ele e o Senhor naqueles momentos decisivos acerca da eternidade do homem. Estes são segredos de Deus que nenhum outro homem penetra. Estamos diante do maior poema do maior poeta alemão e nos perguntamos: podemos pô-la nas mãos da juventude alemã e do povo alemão e dizer “toma e compreenda”? Deixá-los penetrar completamente o espírito que ali vive e que dali fala? É o melhor que podemos oferecê-los? É o único que lhes é necessário? Contemplamos a imagem do Crucificado e dizemos: Não!Esta obra pertence aos poucos verdadeiramente grandes poemas da humanidade porque permite erguer a grande pergunta da humanidade, a pergunta acerca da queda e da redenção, em toda sua profundidade, largura e peso a partir da plenitude da vida humana. Porém contesta a esta pergunta com uma aparente solução que cega. A grande obra é, se a considerarmos como uma catedral gótica que é anunciada pela nave de entrada, uma imensa coluna. Se a tomamos como um todo, assim como é posta, se recorrermos a todas as suas partes, então não é um organismo simples, sem que se cruzem duas plantas de caráter completamente diferente: a que dizemos ser uma construção renascentista e a como catedral gótica. Não está só no capricho ou na atitude subjetiva do espectador, quando se apresenta prontamente como tragédia do homem moderno, do homem dos tempos novos e ao mesmo tempo como autoconhecimento do homem Goethe e de outro lado como simplesmente como o drama da humanidade. Ambas estão ali e nenhuma das duas plantas se tratam de vencer uma a outra ou desprezá-la e, finalmente, o todo como uma construção, necessariamente chega ao término. Alguém pode tomá-la e interpretá-la como uma poesia de confissão pessoal, como o desenrolar dos caminhos de homem Goethe ali refletidos. Outro pode tomá-la como símbolo da vida cultural alemã: como a grande catedral da concepção completamente medieval do mundo foi irrompida pela construção epocal do renascimento, assim uma desesperada busca e luta ocupou o lugar da segurança de bem estar assentada sobre o fundamento. E por fim, a luta pelas grandes questões eternas foi substituída pela dos objetivos exclusivamente palpáveis e práticos.

Alguém pode considerar também sub specie aeterni: todo grande gênio é um instrumento do Altíssimo, um porta-voz através do qual se deixa mostrar o espírito de Deus, aquela pura obra de arte é uma revelação da verdade divina em uma linguagem inteligível para o espírito e coração humanos. Porém isto só acontece de fato quando o artista se entrega ao espírito que está sobre ele em uma pura obediência objetiva, abrindo mão de si mesmo e não se intromete por capricho no processo.

Goethe é como alguém abençoado com os olhos que contemplaram a pura beleza com um coração que se inflamou ardentemente, com o dom da palavra e que sabe comunicá-la. Ele possuiu o ideal puro da arte como se expressa no drama de Helena na tragédia de Fausto. Mas nunca o artista supera de todo o homem – seja no sentido ordinário seja no sentido mais humanista. Talvez de nenhum outro modo isto se mostre tão claramente como nesta obra que, como nenhuma outra, cresceu intimamente com toda a sua vida, como estranha a uma forma pura e unida a uma matéria estranha, de modo que não se pode converter a um cristal límpido. É necessário um extenso e caridoso aprofundamento para distinguir entre uma forma pura e uma matéria estranha.

Voltemos ao problema da educação do qual partimos. O mais elevado que o espírito alemão já criou deve ter algum lugar na formação alemã. A primeira tarefa é conduzir a ela e despertar o respeito diante das obras do espírito. No entanto, “experimentar de tudo e reter o que é bom”! Isto é, não ceder a uma crítica imatura, o que significa a proteção de uma admiração cega, significa apenas que temos uma medida absoluta que não devemos abrir mão e uma marca característica que distingue o nosso caminho de qualquer outro caminho.

A marca que está sobre a nossa formação humana não pode ser uma imagem de Goethe, mas sim a da Cruz. Sobre ela, Goethe disse “Temos uma desfaçatez digna de condenação ao expormos à luz do sol o instrumento de martírio e o santo que nele padeceu, que escondeu o rosto quando o mundo desalmado o obrigou a ver aquele espetáculo, ao brincarmos com estes profundos mistérios nos quais se dão a profundidade divina da dor, ao adorná-lo e ao fazermos com que o mais digno pareça o mais vulgar e insano[7]”. Deve-se levar a sério o aviso de não se brincar ou disparatar com o mais sagrado, mas o posicionamento peculiar de Goethe para com o sinal de nossa redenção necessita sem dúvidas de um exame mais detalhado. Parece-me que esta posição se relaciona muito profundamente com sua atitude mais íntima frente ao mundo e frente ao cristianismo. Assim como ele quisera ocultar a cruz, assim também não houve lugar para ele a ideia de “pecado” e de “arrependimento”.

Os admiradores católicos de Goethe, que se esforçam para esclarecer corretamente o que nos une a ele, mostram com razão com que profundo respeito ele se colocou diante a criação de Deus. Todas as coisas eram para ele efeito de uma ideia eterna, uma imagem transitória de algo não transitório. Com um olhar amoroso descreveu cada feição da natureza, procurando ver e contemplar a ideia pura. Olha ao mesmo tempo a natureza como saiu das mãos de Deus. É-lhe insuportável o pensamento de que através deste mundo de Deus tivera que atravessar-lhe uma ferida incurável. Conhece bem a culpa e a pressão que pesa sobre a alma humana, mas ela lhe parece mais um destino do que um pecado. “Ihr führt ins Leben uns hinein/ Ihr laßt den Armen schuldig werden” (“Vós nos deste a vida/Vós deixais o miserável homem sentir-se culpado”. [NT]). Mas seu amor respeitoso pela obra de Deus e pelo mundo vivificado pelo alento de Deus o permite crer que ele deve carregar em si a força salvífica.

Edward Spranger mostrou em um pequeno artigo da Insel-almanach auf das Goethjahr[8] 1932 que no poema do Fausto junto com a tragédia do homem, que de grau em grau ascende a formas de aspiração mais e mais elevadas, pode-se encontrar um drama paralelo: uma escada de formas sempre mais elevadas de amor, que se personifica na figura feminina até a mais elevada e pura, a do amor compassivo e redentor que aparece na figura da Virgem Rainha e Mãe. O misterioso “eterno feminino nos arrasta até as alturas”, significaria assim que há forças salvíficas na essência feminina. Um pensamento de elevada e estranhável beleza que nos impõe uma santa responsabilidade. Porém isto não isto não deve nos cegar ante a dura realidade de que a queda pelo pecado original perpassa toda a criação e toda a natureza feminina e masculina e somente, graças a redenção, a natureza da mulher ganhou sua pureza e seu poder salvífico. Tão grande e elevada se descobre diante nós na grande alegoria final do poema de Fausto a comunhão dos santos, o eterno arquétipo para a alegoria passageira da vida da sociedade humana, bem como o amável e gratificante amor misericordioso e redentor na imagem da Rainha do Céu e das santas penitentes que se encontram ao seu redor. Todas elas, por si mesmas, não têm forças, não podem fazer outra coisa senão canalizar as torrentes da graça que brotam da árvore da Cruz, do coração aberto do redentor trespassado por nossos pecados.

 

[1] O artigo foi publicado sob o título original de “Natur und Ubernatur in Goethes Faust”, na edição nº 19 da revista Zeit und Schul 29, em 1932. A presente tradução se baseia no original e na tradução espanhola, presente no volume IV das “Obras Completas” (2003).

[2] Heloísa Gusmão é graduanda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná e integra o grupo de Estudos de Filosofia Moderna e Contemporânea (CNPq).

[3] Traduz-se por “luta pela cultura”, um movimento anticatólico nacionalista ligado ao Império cuja principal atividade era impor leis (como as Leis de Maio) para submeter a Igreja ao poder do Estado. Uma das imposições, por exemplo, era a de que apenas alemães poderiam ter cargos eclesiásticos. [NT]

[4] Referência à Igreja de Horfkirche, Suíça. [NT]

[5] “Tempestade e ímpeto”, movimento literário alemão romântico. [NT]

[6] Ato principal do enredo, onde Mefistófeles e Fausto confirmam o pacto em frente a uma assembleia de bruxas.

[7] Goethe, “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”. [NT]

[8] “Almanaque da Ilha”. Trata-se um famoso periódico literário alemão de publicação anual dos mesmos fundadores da revista The Island.

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