Notas sobre a discussão racional

Estar preparado para defender posições com clareza é segurar uma faca de dois gumes. Se é verdade que é possível explicitar, com razoável exatidão, a tese que se quer defender, também o é que deste modo o contendor está, por assim dizer, nu, e deve dar adeus à vontade de vencer a qualquer custo. Para blindar-se, aparentemente, diante dos possíveis ataques, é possível adotar uma dessas três atitudes: ser um bom retórico; ser confuso; ser um fanático. A blindagem é só aparente para um ‘agente racional’, que a pode desfazer e desprezar; mas ela parece funcionar para alguns iluminados, e infelizmente sempre funciona aos olhos do público preguiçoso e destreinado. O retórico defende qualquer tese — acredite sinceramente nela ou não — porque sabe ocultar falácias e tornar magicamente legítimos os argumentos ad hominem (que pretendem tornar verdadeira a tese sustentada atingindo pessoalmente o defensor da tese contrária). O confuso evita formular claramente suas teses, ou faz da contradição a sua arma. O fanático está tão convencido de uma tese absurda, que nunca se cansa: é aquele que dizemos “vencer pelo cansaço”. Ou então é um guru, sempre escoltado por seguidores incansáveis.

No debate, só é possível argumentar racionalmente com algum treino filosófico. O público brasileiro está muito longe de aceitar o debate racional como modo válido de discussão, por paradoxal que pareça. Há uma “tese cumulativa” em favor dessa visão; basta observar e comparar dados da experiência. Em países onde o debate racional está em vigência, por contraste, quem não está preparado simplesmente não debate. Diz-se que um famoso biólogo britânico, indagado sobre o porquê de não aceitar debater com certo filósofo, respondeu: “nunca debaterei com um filósofo porque não tenho treino filosófico”. Não tenho como confirmar a informação, mas podemos usar a história como ilustração.

Eu considero a saída legítima. Um biólogo sem treino filosófico pode falar sobre a sua ciência. Se a bactéria x tem a propriedade A, e isso me é ofensivo, ou (a) aguardo uma descoberta que obrigue os biólogos a alterar o enunciado, aceitando-o de pronto, ou (b) nego a ciência. Como a ciência, em bloco, se assenta sobre fundamentos bastante sólidos, será irracional adotar a segunda opção. Por isso, seja qual for a posição filosófica ou religiosa do sujeito, negar a ciência será sempre um passo equivocado. É equivalente a adotar o esoterismo — a doutrina segundo a qual o verdadeiro conhecimento está reservado a poucos e escapa ao domínio do científico, e mesmo filosófico mainstream — ou qualquer superstição. A ciência, portanto, obriga a todos num debate racional. O limiar está na interpretação dos dados da ciência. A própria ciência interpreta imediatamente seus dados — daí porque todo cientista com visão geral tenha também uma visão filosófica, a rigor metodológica, sobre a sua área, mesmo que não saiba argumentar de modo consistente a respeito. Mas a filosofia, ao que parece, vai um pouco mais longe. Se um cientista diz que a bactéria y tem e não tem, ao mesmo tempo, e sob a mesma perspectiva, a propriedade A, certamente comete um erro lógico e filosófico. Isso o próprio cientista pode verificar sem treino filosófico. Mas ele não poderá, se não for também treinado em filosofia, defender a teoria da evolução de modo consistente — é capaz, até, de perder para um criacionista fanático bem treinado que sequer seja biólogo (desde que ele seja capaz de fazer o cientista destreinado contradizer-se; o que não é difícil).

A filosofia não traz nenhum conhecimento novo ao conjunto de dados empíricos e matemáticos; mas permite argumentar a partir desses dados, se existe competência. Por isso a ignorância científica em um filósofo da ciência (e em um filósofo ideal tout court, contando como ciência a história, a psicologia, a matemática, a lógica, etc) é ainda mais grave do que a ignorância filosófica em um cientista. Este já tem em seu favor um corpo de conhecimentos sólido e uma sua interpretação imediata, embora sejam ambos (objeto e método) reformáveis; assim, mesmo que perca um debate, ao voltar ao laboratório estará fazendo ciência. Já o filósofo tem acesso aos modos de argumentação, mas carece de conteúdo sobre o qual argumentar. Pode ganhar o debate e voltar para casa sem nada ter esclarecido. Isso é ainda mais grave em matéria de cosmologia e metafísica. Se ouvimos um filósofo ignorante de física a falar a esmo sobre o início do universo, a desconfiança será o sentimento mais positivo que teremos, a não ser que a sua tarefa consista apenas em uma análise lógica das proposições envolvidas. Isso porque o início do universo é uma questão empírica. Estabelecido, ou tomado como hipótese, o fato de que o universo teve um início (e essa é a premissa para as próximas afirmações), posso argumentar que não existe um passado infinito, e associar a essa argumentação a ideia de tempo contínuo, ou de espaço discreto, noções de teologia natural, etc. Posso, inclusive, dizer — mesmo estando redondamente enganado — que metafisicamente esse começo é apenas um retorno. Mas não posso atribuir ao enunciado “esse começo do universo é apenas um retorno” o status de enunciado empiricamente verificado. E nem posso dizer, sem reparos, “o universo não teve um começo”, porque estou comprometido com a premissa acima, como agente racional. Como eu disse, a filosofia pode ir mais longe; mas seu papel é rigorosamente delimitado. Não tanto como pensavam os verificacionistas, por óbvio. A pergunta pelo porquê das coisas costuma ser quase sempre legítima, o mesmo quanto à tentativa de a responder — contanto que não façamos uso de argumentos esotéricos ou religiosos (e. g., revelados) disfarçados de argumentos empíricos ou filosóficos. O imponderável é legítimo, mas deve ser tratado com cuidado, com distinção dos âmbitos. (Um exemplo mais técnico e que pode ser generalizado: pensemos na premissa cientificamente imponderável C, segundo a qual “Deus existe”, e na conclusão B, “o neutrino não tem carga elétrica”; uma vez que a conclusão B não é afastada pela premissa C, e é confirmada pela coleção de dados empíricos Γ, o âmbito científico funciona corretamente com ou sem a presença de C, e portanto é neutro com respeito a ela: se Γ ├ B e não (C não├ B), também temos que Γ, C ├ B. Pode-se dizer isso de várias maneiras, e a generalização é evidente para quaisquer Γ, C e B dentro das premissas fixadas.)

Debates racionais, portanto, não têm a rigor perdedores ou ganhadores. Se os dados estão certos e os argumentos não são falaciosos, noções são esclarecidas e informações são validamente interpretadas e relacionadas.  Teses se fortalecem ou se enfraquecem. Seria muito estranho que uma tese fosse verdadeira porque a pessoa que a sustenta ganhou um debate, e vice-versa. Um pouco de objetividade nunca fará mal.

9 comentários em “Notas sobre a discussão racional

  1. ” Estabelecido, ou tomado como hipótese, o fato de que o universo teve um início (e essa é a premissa para as próximas afirmações), posso argumentar que não existe um passado infinito,…”

    Mas e toda a longa história do argumento pela impossibilidade de um universo eterno, que visam provar que o universo tem que ter tido um início pois negá-lo levaria a um absurdo lógico?

    Mesmo antes de termos descoberto o Big Bang essa era uma posição, parece-me, muito defensável.

    Nada disso é para discordar da tese do parágrafo, de que é importantíssimo para o filósofo estar a par das descobertas científicas. Mas ele não precisa se prender a elas, e pode, ocasionalmente, chegar a certas verdades antes da ciência (pelo método de refutação lógica das teorias alternativas).

  2. Joel, creio que o resto do texto confirma essa potencialidade da filosofia, a de “chegar a certas verdades antes da ciência (pelo método de refutação lógica das teorias alternativas)”. Restaria esclarecer a natureza dessas verdades. Se uma teoria pretensamente científica é contraditória, não chega nem a ser científica — e o controle pode ser feito tanto por cientistas quanto por filósofos. A defesa de teorias como a da impossibilidade de um universo eterno pelo filósofo é possível; mas dado o desenvolvimento da ciência — e isso é contingente, ou seja, depende do estado da física (o que é diferente no século XIII e no XXI) –, o filósofo não pode se furtar ao conhecimento direto dos modelos físicos. Só não creio que se possa derrubar só com a filosofia a tese do universo eterno. Salvo engano, a linha aristotélica sempre sustentou que isso fosse impossível, até com “De aeternitate mundi” de Aquino, e que o ônus da prova estava com os defensores do universo sujeito à corrupção. O argumento de Aquino começa com uma premissa “de fide”, dogmática. Com o Big Bang em alta, a tese da eternidade perdeu força no terreno filosófico. Ou seja, por força de descobertas empíricas (que ainda não são definitivas, evidentemente).

    P.S.: Acredito que o tema da eternidade do universo se relaciona com as variadas formas de necessidade. Não acredito que seja logicamente necessário, nem que o universo seja eterno nas duas ou em uma das direções, nem que seja corruptível. Não há contradição em dizer uma coisa ou outra. Ele só não pode ser e não ser eterno (e aqui sequer podemos dizer “ao mesmo tempo”). Resta saber se há algum tipo de necessidade física que envolve o ‘universo atual’, aquele a que temos acesso pelos sentidos (mesmo ampliados pela ciência e pelos seus modelos). Se é da natureza da matéria a corrupção, trata-se de uma propriedade necessária, e consequentemente o universo não pode ser eterno em nenhuma das duas direções: ele tem de ter um começo e um fim. Mas essa premissa sobre a essência da matéria é difícil de se assentar, começando pelo que é a matéria…

    P.S.2: A eternidade “para trás” é mesmo complicada, porque o infinito regresso temporal leva, aparentemente, à conclusão de que ou não há presente, ou que não estamos situados no momento temporal em que de fato estamos (porque a definição de um passado eterno é a inexistência de um presente, já que ele nunca chega), o que seria uma contradição.

  3. Sim, sim, Aristóteles defendia o universo eterno e Tomás, embora não fosse tão longe, dizia que era racionalmente impossível saber se era eterno ou tinha tido início. Mas outros contemporâneos já tentavam mostrar a impossibilidade de um universo eterno “para trás”.

  4. Falando de especificidades, o único problema do tal cientista que não quer debater com o filósofo é o fato de que ele escreveu um livro com considerações propriamente filosóficas, e quando ele já se dedica a debater com padres, matemáticos e físicos, ele deve responder pelo menos pelo que propôs com as suas publicações e asserções filosóficas sobre o assunto. Quando ele nega essa prerrogativa da filosofia para um debate específico, ele está contradizendo a prerrogativa que ele mesmo já tinha assumido quando publicou o livro ou quando fez afirmações militantes ou quando debateu com outras figuras (ainda mais porque o tal novo debate não propunha uma competição de cultura filosófica, mas uma discussão das questões do seu próprio livro, que já são propriamente filosóficas).

  5. Julio,

    Você define o argumentum ad hominem de modo excessivamente genérico. Não sei se foi sua intenção, mas dá a entender que qualquer “ataque pessoal” seria classificado como ad hominem e como falácia (nem sempre os dois coincidem, ademais). Como disse aqui (http://www.adhominem.com.br/2011/09/o-significado-de-ad-hominem.html), ad hominem é o argumento que parte de um dado biográfico para impugnar uma tese, e não o que parte de uma tese para impugnar uma biografia.

    Estou comentando a respeito porque, como digo no post referido, o termo ad hominem já vem sendo muito mal compreendido e usado, e receio que esse trecho possa reforçar a incompreensão.

    Além disso, não vejo como alguém possa vencer um debate pelo cansaço – embora veja perfeitamente como vencer pela retórica. Apenas defendo que boa retórica significa o melhor argumento, e não há um grande sofista que vença os melhores argumentos, se apresentados por homem educado retoricamente. Isto é, o Brasil não está dominado (como já tentara dizer o Luís Fernando Veríssimo) pelo Trivium. Está dominado pela ausência total de educação, substituída por decoreba de palavras-de-ordem. Se os debates não dão certo por aqui, é exatamente por falta de retórica, e não pelo oposto. É bom lembrar que a retórica sempre foi a prenunciadora da filosofia.

  6. Falcón, você faz bem em defender o nome do site. Mas não vejo como um “argumento que parte de um dado biográfico para impugnar uma tese” possa ser válido. No máximo, vale um argumento biográfico na construção de uma biografia — ou seja, em sua própria esfera. Nunca para afastar uma tese. O ataque pessoal (que, realmente, nem sempre é um argumento ‘ad hominem’, e nem este constitui necessariamente uma falácia) sequer entra no conjunto de objeções a serem respondidas. Minha crítica é dirigida ao procedimento de ‘pensadores’ que raramente aduzem um argumento racional e, quando o fazem, nunca deixam de agregar algum elemento biográfico ou mesmo de ataque pessoal. Veja que me refiro ao procedimento e à argumentação, e não às pessoa. Numa palestra recente, William Lane Craig falou a respeito, dizendo que adotou como princípio discutir apenas ideias, nunca levantando, como assunto, se o sujeito A se comportou assim ou assado ou, pior, se se portou mal ou bem, que foi “desonesto” ou “covarde”, porque isso é assunto que nunca atinge o ponto (no máximo, num debate sobre ética, se fala em condutas históricas ou comuns).

    É o que eu pretendia defender. Pouco importa a definição adotada do que é um argumento ‘ad hominem'; o relevante, aqui, é a impertinência desses pontos numa discussão racional. Um abraço, caro Rafael.

  7. Julio,

    Repito que fiz o comentário sobre o ‘ad hominem’ mais para desfazer a ambiguidade do que para questionar seu texto. Porém, há quem defenda o ‘ad hominem’ como argumento válido em certos contextos. A mim me parece que tem validade relativa: por exemplo, o fato de Marx nunca ter trabalhado enriquece a interpretação de sua obra, esclarece-lhe a significação. Não a refuta, contudo.

    Quanto à ideia de Craig (não pude acompanhar a palestra referida, infelizmente), acho-a questionável. É claro que, se estamos lidando com um debatedor de alto nível, comentar intenções pessoais nem sempre é bom uso do espaço discursivo. Mas é frequente encontrar debatedores que se valem de má-fé, falácias sutis mas radicalmente desonestas, etc. Nesses casos, omitir o desvio moral de seus discursos seria verdadeiramente ignorar parte da falsidade de suas ideias. Quero dizer que esses debatedores maculam as ideias com um comportamento moralmente abjeto, e fazer vista grossa a esse comportamento pode significar que você está respondendo a uma ideia absurda como se ela fosse legítima. Está dando a ela um estatuto imerecido, louvando-a implicitamente. Fazer isso pode ser um tremendo erro, uma covardia intelectual com efeitos mais ou menos prejudiciais. Não acho que temos que sair xingando quem discorda de nós, mas acho válido e até necessário apontar quando o adversário se vale de uma estratégia erística ou moralmente abjeta.

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