O anel sem palavras

Na semana passada a Orquestra Sinfônica Brasileira apresentou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro um programa que não queria ter perdido. O vídeo acima é só uma pequena amostra do que os cariocas assistiram no dia 16/10, e o paulistano aqui não estava lá.

A música foi o principal, é claro; mas eu tenho uma razão a mais para lamentar: tive a honra de escrever as notas críticas desse  programa para revista da OSB; convivi com essa música por um bom tempo e perdi a chance de vê-la ao vivo. Mas nos contentemos com as gravações, e espero que gostem do que escrevi aí embaixo.

Richard Wagner e a beleza da promessa

O imperador Dom Pedro II certamente teve uma noite longa em 13 de agosto de 1876. Ao seu redor estavam o rei Ludovico II e os compositores Liszt, Tchaikovsky, Grieg e Gounod. Foi um domingo intenso na Baviera: naquele dia, Richard Wagner (1813-1883) inaugurava seu festival e sua casa de ópera em Bayreuth, com a presença dos já citados e mais algumas dúzias dos mais importantes nobres e plebeus de uma Europa que, como hoje, começava a perceber que muito haveria de mudar nos anos que estavam por vir.

Do outro lado do Atlântico, o The New York Times publicava por três dias consecutivos reportagens de capa sobre o que acontecia no palco alemão. E naquele palco de Bayreuth era apresentado pela primeira vez o ciclo completo das quatro óperas de O Anel dos Nibelungos.

Eis uma primeira noção da grandeza do que será apresentado neste concerto pela Orquestra Sinfônica Brasileira. Grandeza levada às últimas conseqüências em todos os sentidos: da orquestração à pretensão filosófica, da inovação técnica à beleza dos movimentos.

Mas todo esse circo fez com que surgisse em torno de Richard Wagner uma mitologia que, no final das contas, serve sobretudo para nos afastar do que realmente importa – sua música. Portanto, sejamos breves como o foi Otto Maria Carpeaux: “Wagner foi homem terrível e mau caráter”, idolatrado pelos seguidores por ser (ainda nas palavras de Carpeaux) “propagandista do racismo, do anti-semitismo, do vegetarianismo, de confusas ideias budistas”. Mas, hoje, isto é o que menos importa: Richard Wagner já não representa uma ameaça aos cofres do reino nem às esposas dos amigos; e não será na sala de concertos que vamos avaliar a sua (danosa! danosa!) influência política. Vão-se os dedos, ficam os anéis…

O Anel Sem Palavras é uma seleção feita pelo Maestro Lorin Maazel de trechos sinfônicos das quatro óperas que compõem o ciclo O Anel dos Nibelungos (O ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e O crepúsculo dos deuses). Mas, ao contrário do que pode parecer, o ouvinte definitivamente não encontrará na seleção de Maazel apenas uma música de acompanhamento, ocasional e fragmentada. Pelo contrário, para além das especificidades técnicas (também elas importantes), a grande revolução de Wagner foi conceber a ópera como um verdadeiro drama musical. Para que isso se tornasse possível, a orquestra, a música instrumental passou a desempenhar na ópera de Wagner o papel de uma espécie de viga mestra, de fio condutor a partir do qual todos os outros elementos (vozes, personagens, enredos etc.) se desenvolvem e se encontram para dar unidade ao conjunto. O Anel, por sua grandeza, é o melhor exemplo disto.

Sim, o projeto sempre foi ambicioso. E, como tudo na Alemanha, também ele seria resumido numa única palavra, praticamente impronunciável nos trópicos: Gesamtkunstwerk, a “obra de arte total”. Ou seja, Wagner não queria apenas explorar o sistema tonal em suas profundezas (como o fez), não queria apenas propor um novo princípio para a ópera (como também o fez): ele queria criar um mundo no qual alcançaríamos a redenção pela obra de arte. Os sentimentos e ensinamentos que a Europa (ou, pelo menos, os intelectuais europeus da moda) não mais encontravam na religião ganhariam forma e expressão a partir do gênio criativo (e criador) do ser humano; ou, mais especificamente, a partir do gênio de Richard Wagner.

É a crença no humano sem nenhuma modéstia e talvez, justamente por isso, a melhor expressão da modernidade. A arte de Wagner está cheia até a medula desta crença no homem capaz de, com suas teorias, criar um mundo novo; com sua arte, atingir o que os medievais reservavam aos místicos; com sua ciência, resolver todo e qualquer problema.

Diante de um monumento como este nos restam, a nós ouvintes, apenas duas perguntas: 1. A teoria de Wagner está contida na obra de Wagner? e 2. Wagner cumpriu o que nos prometeu?

À primeira pergunta cabe a cada um dos ouvintes responder. A crítica não tem uma resposta pronta e é bom mesmo que não tenha, afinal nenhum texto substituirá a experiência de ouvir Wagner. Nesse sentido, o Anel Sem Palavras é uma oportunidade de ir direto ao núcleo da questão.

Quanto à segunda, o tempo nos mostrou que, na verdade, Wagner confundiu o pôr do sol com a aurora. O que parecia um começo brilhante para um novo mundo e uma nova arte mostrou-se o melancólico fim de um tempo que não volta. A música não seguiu os grandiosos caminhos que ele tinha planejado e esta mesma crença em soluções finais cobrou seu preço em milhões de cadáveres. Mas nada disso tira a extraordinária beleza de Wagner. Aquela beleza que só existe numa promessa sincera. Uma promessa, é bem verdade, que sempre foi impossível, mas que nem por isso deixou de trazer consigo uma beleza real e tocante.

3 comentários em “O anel sem palavras

  1. É um belo texto a serviço da música de primeira qualidade. Só passei a ouvir e gostar de ópera por causa de Tristão e Isolda, numa gravação de 1966(a do famoso festival), com a soprano Birgit Nillson, a que mais bem interpretou a personagem principal, e sob a batuta de Karl Bohm. Enfim, o sujeito não valia uma banda de conto, mas ouvir sua música e ao mesmo tempo levar seu mau-caratismo em consideração exige um esforço heróico.

  2. a) Essa gravação de 66 é excelente; lembrada entre as de referência por muitos críticos. b) Gostei à beça do Maazel linkado. Não conhecia. c) Quem for a NY proximamente verá no Met o Ouro do Reno em nova produção do Anel. A anterior é aquela disponível em gravação há poucos anos vendida em bancas no Brasil. Quem tem muito tempo e consegue ouvir muito Wagner pode ter lá suas ressalvas, mas pessoalmente gostei de ter contato com o Anel por meio de uma produção, digamos, quadrada como essa antiga do Met (mesmo achando um pouco engraçada a grande Jessie Norman como Sieglinde, etc). d) Bom post, sim. Passar por Wagner é tempo bem investido. Para ficar no basicão, permite entender melhor a escolha estetizante do Ocidente pós-iluminismo. Alguém (Thomas Mann?) referiu-se a sua música como algo semelhante a um pesado trem rumo às estrelas. Claro que não viabiliza uma boa reentrada em órbita (sempre indispensável) mas com certeza permite aos passageiros avançar até Aldebarã e mais além. Uma bela viagem.

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