O bardo da entropia nacional

Existem momentos na história brasileira que sequer passam pela cabeça de um historiador que deveriam ser analisados. São lacunas em nossa visão-de-mundo que ainda não percebemos e, quando isso acontecer, tenho a impressão de que será tarde demais. Para muitos, nossa história pára em 1964, quiçá em 1968. Desta data em diante não sabemos de mais nada; e conta-se nos dedos quantos estudiosos resolveram fazer uma  (boa) análise do período dos nossos últimos vinte anos – no caso, de 1989 até o presente momento.

A literatura pode suprir esta lacuna – não por ser um reflexo de anseios sociais, como supõem os acadêmicos calcados em seu padrão marxista, mas sim por ser a radiografia de crises muito mais profundas, crises que realmente importam ao indivíduo, crises que atingem as nossas perturbações mais sérias.

A tristeza é que, aparentemente, nem sequer tivemos essa literatura. Durante os últimos vinte anos, ficamos atrasados em relação a tudo o que importa no mundo das letras; enquanto a Itália tinha um Claudio Magris, nós nos encantávamos com Miltom Hatoum; enquanto os EUA têm um Thomas Pynchon, um Don DeLillo, um David Foster Wallace, um Russell Banks, preferimos paparicar Chico Buarque; quando a França apresentava um Jonathan Littell, com seu As Benevolentes, o consumado exemplo do escritor de talento globetrotter, resolvemos criar a Geração 90 e acreditar que escrever sobre favelados, prostitutas, jovens que escrevem em blogues, era tudo o que a literatura deveria ser; até de Portugal quisemos o exemplo errado a seguir – se Antonio Lobo Antunes ou um José Cardoso Pires lançava um novo romance, logo os jogávamos à sombra e alçávamos José Saramago nas alturas. Da América Latina é melhor nem comentar; colocamos as inquietações de um Vargas Llosa à serviço de um Garcia Márquez e sequer nos preocupamos em saber o que acontece na Argentina, no Chile e outros países que consideramos como vizinhos.

A literatura nacional ficou reduzida a uma falta de ambição intelectual e, sobretudo, a uma falta de humor que chega às raias do insuportável. Por humor entenda-se não aquele que provoca gargalhadas tolas, mas sim àquele que nos faz pensar a partir de um certo absurdo da condição humana. Não precisa nem rir; basta ver as coisas pelo seu avesso, algo que, atualmente, é impossível para qualquer brasileiro, pois, como diria Paulo Francis, “a ironia é uma espécie de segredo na pátria amada”.

O fato é que o humor seria um instrumento muito necessário para compreender corretamente os anos de 1989-2009. Não pelos eventos em si; afinal, um presidente messiânico que foi impeachimado (o uso de tal palavra é algo engraçado por si) sendo substituído por um outro presidente messiânico que se achava o príncipe da intelectualidade, para terminar com outro presidente messiânico que acredita que as suas deficiências de formação são uma espécie de virtude – tal seqüência de eventos forma uma corrente que ninguém em sã consciência não hesitaria em chamá-la de “cômica”. O movimento subterrâneo que nos levou a esses acontecimentos é o que importa ao analisarmos aquela época; e agora, com o distanciamento a se impor, percebemos que não temos os instrumentos essenciais para entendê-la na sua devida ordem – não a dos fatos cronológicos, mas sim a de um espírito da época.

Isto só a literatura pode fazer – e não necessariamente a grande literatura. Nunca fui um defensor do gênio pois acredito que isso não passa de uma doença e não de uma solução; sempre acreditei que o que move a cultura de uma nação é o bom escritor, o sujeito que consegue produzir com dignidade uma ou duas obras que valem a pena serem lidas. Quando uma cultura que se preze não consegue produzir nem isso, então há algo de podre no reino dos tupinambás.

Confesso que eu pensava assim – de que o Brasil parecia uma waste land fadada a um humor que restaria nos blogs da vida – até conhecer a obra de ficção de Diogo Mainardi. E aqui faço também meu mea culpa, mea maxima culpa: acreditava que a ficção de Mainardi não era válida e achava a sua parte de cronista como uma mera emulação de Paulo Francis e Ivan Lessa. Nada disso. Depois de ter me deparado com um exemplar de Malthus (1989), sua primeira novela, fiquei com a certeza de que ali estava um escritor com todas as qualidades (e problemas) que a nossa literatura deveria exibir.

Talvez tenha sido também uma sincronicidade de pensamentos. Há algum tempo penso sobre a razão da apatia nacional. Por que o brasileiro não reage contra a baboseira que está aí? Por que ele se submete às humilhações periódicas de seus representantes populares? Por que escolheu a apatia como forma de existência? Atrás destes problemas, li e reli Sergio Buarque de Hollanda, atravessei o edifício suntuoso que é a obra de Gilberto Freyre, briguei com Merquior, fiz a travessia dos livros de José Osvaldo de Meira Penna, tive de engolir Caio Prado Júnior e Antonio Candido, enfrentei o cipoal que é Euclides da Cunha – enfim, fui atrás de todos esses autores e o que conseguia era somente uma análise ora criteriosa, ora superficial, mas que não me parecia atingir o heart of the matter.

Supreendentemente, encontrei tudo isso na ficção de Diogo Mainardi. Quer queira ou não, ele é o nosso bardo da entropia nacional. Este é o seu tema central e que se articula em cada um de seus quatro romances, de maneira obsessiva e progressiva.

Quando uso o termo “entropia” tenho plena noção de que posso cair no erro da analogia – mas outros muito melhores do que eu já fizeram isso e não caíram na arapuca. Exemplos? Henry Adams e Thomas Pynchon. Obviamente, os dois usam o fênomeno da democracia americana para analisar o fato de que a tirania da maioria pode encobrir uma certa mediocridade espiritual, que, se não for diagnosticada a tempo, se espalhará como uma infecção para o resto da sociedade. Neste nosso caso, a entropia – que é uma forma de medir o caos em termos de termodinâmica, mas que também pode ser aplicada para medir o grau de excesso de informação na consciência de alguém – é usada para identificar uma forma de doença do espírito (no sentido que Platão dá, nosos, o abandono completo do horizonte transcendente nos eventos cotidianos) que intoxica o indivíduo em suas raízes mais profundas.

É claro que eu não sei se Mainardi pensou nisso. Em declarações públicas, ele afirma ser ateu e/ou agnóstico; mas isso não significa que sua literatura tenha se afastado dos problemas do espírito. Aliás, isso é algo sobre o qual o próprio autor não tem controle algum. Como argumenta Eric Voegelin em um clássico ensaio sobre The Turn of the Screw, de Henry James, a verdadeira literatura é articulada através de símbolos que ultrapassam a consciência do escritor e que revelam um problema que talvez nem ele próprio tenha se dado conta.

Isso fica evidente na ficção de Mainardi, especialmente nos dois primeiros livros, Malthus (1989) e Arquipélago (1992). Logo nas primeiras páginas, percebe-se qual é a tradição a que ele pertence: a de Jonathan Swift, Laurence Sterne e, sobretudo, François Rabelais. Os parágrafos são enganosamente curtos, os diálogos são mais enganosamente curtos ainda e o ritmo de leitura é enganosamente rápido. Seu estilo é o exemplar perfeito do absurdo da existência humana descrita de forma deadpan – a de mostrar que a situação é tão absurda, mas tão absurda, que só pode ser narrada com o understatement digno do melhor humor negro.

Rabelais era o romancista do exagero, do grotesco, da entropia que comia pelas bordas e pelo centro. Mainardi faz esse mesmo procedimento em Malthus. O título já diz tudo; é uma referência ao famoso Thomas Malthus, o economista inglês que resolveu inventar a tese de que a população humana cresce em proporção geométrica enquanto os meios de subsistência crescem em progressão aritmética. Para Mainardi, a única coisa que cresce em progressão geométrica é a estupidez humana – aliás, observação já apontada por Mario Sabino na orelha do livro, mas este se esquece de acentuar de que não se trata de uma estupidez mental e sim espiritual.

Este tipo de estupidez é retratada no personagem principal, chamado Loyola y Loyola, e que será desdobrada nos outros personagens de Arquipélago, Polígono das Secas (1995) e Contra o Brasil (1998). Igual a um Gargântua ou um Pantagruel, Loyola y Loyola devora metaforica ou literalmente tudo o que encontra pela frente, destruindo a essência de cada um e, em uma conseqüência nonsense, inverte o milagre da multiplicação dos pães e o transforma em um pesadelo ao multiplicar justamente várias cópias de seu corpo (e sem se preocupar se há alguma alma em cada um destes infelizes).

Se em Malthus, Mainardi se mostra como um Rabelais seco e distante, este tom predomina em Arquipélago, agora com pitadas de Italo Calvino (de quem foi tradutor, em especial do romance As Cidades Invisíveis) e com uma carpintaria literária mais sofisticada. Este pequeno romance é sua melhor obra, não só pela qualidade da escrita, mas também porque ele acerta na mosca ao descobrir a origem da entropia apresentada no livro anterior. A história é sobre um sujeito anônimo que, depois de uma enchente apocalíptica, decide aplicar as suas idéias filosóficas para a construção de uma sociedade perfeita em uma abóbada de Igreja que flutura em pleno mar. Obviamente, o empreendimento fracassa – e aqui se apresenta o verdadeiro tema do romance: a tentação brasileira de ver tudo sob o prisma das utopias, dos reinos que jamais existirão neste mundo, esquecendo-se da brutalidade e da maldade humanas.

Mainardi se apresenta como um cético que não guarda nenhuma felicidade por encontrar um provável sentido na vida. Seus únicos apoios são a ironia e o humor. A entropia de Malthus encontra a sua raiz na utopia de Arquipélago. E isso acontece até mesmo para o personagem principal, que, depois de ter visto o malogro da sua obra, fica a procurar outras ilhas para que possa reformar a sua idéia.

Nestes dois livros, o Brasil é tratado como uma localização de pano de fundo, mas é óbvio que Mainardi está a falar de sua “pátria amada”. A entropia e a utopia caminham de mãos juntas; são doenças do espírito que são observadas a olho nu e que, graças à habilidade do escritor, são transmitidas ao leitor sem que este se sinta agredido.

Isso mudará nos dois romances seguintes, Polígono das Secas e Contra o Brasil. Desta vez, Mainardi parte para a agressão calculada. No primeiro livro, ele ataca um dos gêneros favoritos da interpretação nacional, seja no campo da literatura, seja no campo das ciências sociais – o regionalismo. Com paródias a João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, e um vasto elenco de estrelas que são demolidas uma por uma, Polígono conta uma história improvável sobre um assassino que espalha caos e destruição no sertão brasileiro. A entropia de antes transforma-se em peste – e a estupidez aumenta para violência crua e explícita. O Brasil não é mais um playground; é um campo de morte onde ninguém perdoa ninguém.

Esta lógica da vingança é levada ao cúmulo do ressentimento por Pimenta Bueno, o personagem de Contra o Brasil. Desta vez, Mainardi brinca com o Macunaíma de Mario de Andrade e com o Policarpo Quaresma de Lima Barreto (sem dúvida há também um pouco do Quincas Borba de Machado); seu Pimenta Bueno é um verdadeiro celerado, que pretende provar que o Brasil não tem como dar certo através de insultos obsessivos e sem se dar conta que ele atua como um legítimo homem cordial – oportunista, vaidoso, irresponsável e, sobretudo, incapaz de fazer uma única ação com algum resultado decente.

Contra o Brasil é o romance mais fraco de Mainardi; a entropia e a utopia dos dois primeiros livros, somado à violência explícita do terceiro, deram como resultado uma estrutura frouxa e sem drama. Pimenta Bueno só lança impropérios, mas nunca se transforma em alguém que deveríamos ouvir, por mais imbecil que pareça. Talvez a própria entropia tenha se apossado do escritor – e é evidente no ritmo do romance um certo cansaço com a própria literatura como veículo de idéias.

De fato, o próprio Mainardi confirmou esse cansaço. Disse que havia se afastado da literatura para sempre. Publicou dois livros de crônicas, A Tapas e Pontapés (2004) e Lula é minha anta (2006) – e nenhum outro romance parece estar previsto. Contudo, as suas crônicas na Veja – que lhe deram muita dor-de-cabeça – mostram que o absurdo e a entropia estão ainda lá, prontos para atacar, e que a realidade lhe deu um presente para a personificação concreta de um Loyola y Loyola ou de um Pimenta Bueno: o próprio presidente Lula.

Em outras palavras: Diogo Mainardi pode ter abandonado a literatura, mas esta, de uma forma bem subversiva, não o abandonou. Por isso, não podemos colocá-lo como um epígono de Paulo Francis ou de Ivan Lessa, como querem seus detratores. Em cada uma de suas linhas existe um temperamento próprio; existe o humor que nos falta constantemente; o diagnóstico cruel de um período histórico que ainda não compreendemos de forma adequada; a ironia que deveria nos alimentar como o pão nosso de cada dia. Contudo, tanto em seus romances como em suas crônicas, é nítida a impressão de que a tal da entropia também o consome como ser humano – e o coloca em um impasse. Nada errado a respeito desta condição – afinal, todo o brasileiro está sujeito a ela. Ainda assim, esta encruzilhada não pode continuar assim, seja para o próprio Mainardi, seja para nós mesmos. Não podemos deixar que a entropia possua a nossa vontade e a (pouca) capacidade de resistência. E, às vezes, isto significa, até mesmo para quem cantou as mazelas da doença que nos infectou nos últimos vinte anos, que uma reviravolta é necessária para recuperar o que ainda não foi completamente perdido.

4 comentários em “O bardo da entropia nacional

  1. Belo texto, Martim. Mas acho que é preciso fazer justiça ao excelente “Garotos da Fuzarca”, do Lessa, uma das melhores ficções humorísticas do último meio século no Brasil.

  2. Martim, parabens pelo belo e, nota-se, bastante refletido, texto.

    Acredito, contudo, que eh exatamente sobre a ultima parte do teu ultimo paragrafo que a literatura do Diogo Mainardi se mostra mais certeira: essa “reviravolta necessaria” eh impossivel em um pais como o nosso.

    Se nem tudo esta perdido, isso eh mero acaso; acredito que isso fico muito claro em “Contra o Brasil”.

    Todas as tentativas de “recuperar o que ainda não foi completamente perdido” sao (e serao) frustradas justamente em virtude desse nosso espirito, muito bem descrito em Arquipelago.

    Qualquer revolucao/reviravolta/movimento ou qualquer outro nome que se queira dar sera infrutifero diante das “qualidades” e caracteristicas do nosso povo.

  3. Uma pequena correção: entre “o presidente messiânico que foi impeachimado” e o “presidente messiânico que se achava o príncipe da intelectualidade” teve o presidente Itamar Franco com suas companheiras sem calcinha no carnaval. Mas não consigo ver traços de messianismo em Fernando Henrique Cardoso.
    Belo texto. Nos dá vontade de ler estes livros do Mainardi.

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