O Batismo dos Incautos

Em Contra o Brasil, último romance escrito por Diogo Mainardi, somos apresentados na cena inicial a Pimenta Bueno, uma mistura de Macunaíma urbano com a idéia-fixa de um Policarpo Quaresma. Ele está deitado languidamente em seu escritório e ensaia alguns versos decassílabos para a realização de uma epópeia que provará que o Brasil nunca teve jeito. No transcorrer do romance, não consegue passar do décimo verso e qualquer outro projeto seu, como o próprio país onde vive, naufraga sem misericórdia.

Marco Catalão, com seu O Cânone Acidental (É Realizações, 2010), consegue realizar o intento de Pimenta Bueno – com a diferença de que este último nunca chegaria aos pés da excelência técnica e mestria estilística do primeiro. A começar pelo título, uma verdadeira declaração de princípios que não tem nada de aleatório, Catalão faz uma radiografia estética, política e moral do nosso Brasil brasileiro – e seu diagnóstico não é nada agradável para quem ainda nutre sonhos em relação a este país.

Ao fazer trocadilho infame com o livro de Harold Bloom, O Cânone Ocidental, mas ao mesmo tempo repleto de segundas intenções, Catalão se apropria dos topoi e estilos clássicos – como o soneto camoniano, a redondilha árcade, as canções de escárnio, os versos livres de Bandeira, o estilo seco de João Cabral, o ceticismo de um Drummond, o epigrama de um Horácio – para emulá-los e depois transformá-los em material próprio, incorporando-os na linguagem contemporânea, vista aqui com um cinismo que não deixa nada a dever a um Karl Kraus.

O “acidental” está no fato de que a própria poesia contemporânea – da qual Catalão faz parte, quer queira ou não – esqueceu-se deliberadamente de toda essa tradição. O que antes marcava a poesia como a arte da auto-consciência estética, agora é apenas um acidente de percurso, mero joguete, somente uma maneira de ser classificado como “classista” e “antiquado”. O importante agora é insistir na “morte de verso” a tal ponto que um poeta no Brasil é chamado como tal somente quando mostra que sequer sabe escrever um mero hexassílabo.

Contudo, para Marco Catalão, a poesia e o cânone da tradição não têm nada de acidentais. Ele mostra que sabe fazer versos logo no poema de abertura, Síndrome do Pânico:

“Conheci o Brasil que não dá ibope
e tive medo. Como quem do morro
inutilmente grita por socorro
e sua voz se perde no po-pop

das balas dos bandidos e do Bope,
assim tive que ouvir, como um esporro
da realidade, como um sai-cachorro,
o rap do terror que a tudo entope.

Forçado a olhar sem máscaras a impura
cara da vida, suja, feia e dura,
vi o que não cabe na televisão.

Recebi o batismo dos incautos
e, incapaz de agüentar novos assaltos,
já não saio de casa desde então.”

Reparem na dicção, firme, forte, imitando o respiro de alguém que se encontra aprisionado; ao mesmo tempo, o poeta demonstra um controle de distanciamento notável, permitindo ao leitor que reflita sobre a situação narrada. Catalão consegue isso pelo efeito da emulação bem-sucedida, mas também pela ironia usada na forma como registra a linguagem coloquial, inserindo aqui e ali algumas gírias. Mas o que impressiona mesmo é a visão-de-mundo por trás de cada verso, uma visão terrível, diga-se de passagem, de verdadeiro filme de horror. A comparação não me parece ser aleatória; apesar de todo o seu humor, apesar de toda a sua limpidez de estilo, O Canone Acidental me parece muito com uma dessas películas de horror que rimos com a boca travada e um sabor agridoce na língua.

O tema do livro, desdobrado de forma obsessiva em 68 poemas, em sua maioria sonetos, é a entropia natural da condição humana – e, mais precisamente, o horror de se viver no Brasil. Há ainda uma peculiaridade: a própria emulação que Catalão faz dos topoi clássicos torna-se uma forma de criticar uma outra emulação, desta vez muito mais nociva, que existe entre as pessoas – em outras palavras: a velha e boa inveja. Isso fica explícito no poema Círculo Vicioso, uma pérola de narrativa concisa e elegante, com um arremate irônico que não deixaria nada a dever a um Gregório de Matos:

“No ônibus cheio, a diarista reclamava:
— Quem dera a minha vida fosse mansa e boa,
com carrão e piscina, como a da patroa!
Mas a patroa dizia ao marido, brava:

— Não fosse o nosso filho, eu bem que te largava,
e ia viver igual à tua amante, à toa,
sem dívida que vence, sem cheque que voa!
Mas a amante, sem conseguir dormir, sonhava:

“Ah, se eu tivesse sido menos azarada,
já estava no apogeu da carreira de artista!”.
Mas a artista, no quinto café, entediada

enquanto concedia a décima entrevista,
num momento de lucidez inusitada,
pensava: “Foda mesmo era ser diarista!”.”

Catalão parece dizer que há uma inveja toda especial e que só o brasileiro insiste em ter: aquela que nasce de um profundo desprezo pelo sentido da vida. Tudo tende a dar errado no Brasil, tudo parece estar consumido por uma espécie de “teoria da conspiração”, como alega um dos poemas de mesmo título, em que “a tentativa da revolta/ se incorpora ao enredo previsível/ e se torna somente um nó a mais/ na rede onipresente e indestrutível“.

Ainda assim, se o poeta continuasse nessa toada, O Cânone Acidental seria apenas um livro resmungão. Há também doçura em suas páginas, quando, por exemplo, Catalão brinca de Baudelaire e de Petrarca com os sonetos dedicados às suas passantes; ou então quando brinca de Dirceu e faz uma ode a uma Marília que se preocupa somente com a posteridade das revistas de fofoca. Em outros momentos, personifica Cecília Meirelles como se ela estivesse no meio de um engarrafamento na Marginal Tietê (Motivo) ou sugere ao leitor que não leia mais seu próprio livro e vá com Paulo Coelho na cabeça (Antiápice).

Tal doçura é, na verdade, um disfarce para a melancolia que impregna o livro. Como todo poeta que se preza, Marco Catalão preocupa-se com o atual estado de coisas – mas também olha para o passado e anseia algo pelo futuro. O Cânone Acidental é um batismo para os incautos que ainda acreditam que não se pode fazer mais poesia após Auschwitz; é a prova de que o verso ainda tem uma longa vida pela frente; e uma amostra de que, por mais que queiram, a poesia continuará a ser realizada por verdadeiros poetas, que não têm nada de acidentais e que estão aí para marcar um novo começo para quem quiser iniciá-lo. Basta ter ouvidos para ouvir e, principalmente, olhos para ler.

4 comentários em “O Batismo dos Incautos

  1. Poemas excelentes. Se houver mais cinco ou seis do mesmo nível, esse já será o livro mais importante da poesia brasileira nas últimas décadas.

  2. Muito interessante…

    não tenho conhecimentos literários profundos,mas sou fã desse site.

    não conheço muitas poesias… as que conheço mostram uma linguagem (e imagem,portanto) meio distante e telúrica. Até mesmo Morte e Vida Severina, com arpoadas de sofrimento e vitalidade, é um pouco distante…

    Perto mesmo desse mundo, onde sou forçado a ouvir sobre assaltos, tráficos e celebridades, só esse Síndrome Pânico e esse Círculo Vicioso…

    Obrigado por apresentar Marco Catalão!

  3. O soneto “Circulo Vicioso”, de Marco Catalão, rende homenagem a um de Machado, de mesmo título. Ei-lo:

    Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
    “Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
    Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
    Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

    “Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
    Que, da grega coluna à gótica janela,
    Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela…”
    Mas a lua fitando o sol com azedume:

    “Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
    Claridade imortal, que tota a luz resume!”
    Mas o sol, inclinando a rútila capela:

    “Pesa-me esta brilhante auréola de nume…
    Enfada-me esta azul e desmedida umbela…
    ? Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”

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