O cálice da linguagem

“SÓCRATES – É verdade, meu Fedro! Mas acho muito mais bela a discussão dessas coisas quando alguém semeia palavras de acordo com a arte dialética, depois de ter encontrado uma alma digna para recebê-las; quando esse alguém planta discursos que são frutos da razão, que são capazes de se defender por si mesmos e ao seu cultivador, discursos que não são estéreis, mas que contém dentro de si sementes que produzem outras sementes em outra almas, permitindo assim que elas se tornem imortais. Aos que as levam consigo, tais sementes proporcionam a maior felicidade que é dado ao homem possuir”.

Platão, “Fedro” (277)

“(…) O semeador saiu a semear. Enquanto lançava a semente, parte dela caiu à beira do caminho, e as aves vieram e a comeram. Parte dela caiu em terreno pedregoso, onde não havia muita terra; e logo brotou, porque a terra não era profunda. Mas quando saiu o sol, as plantas se queimaram e secaram, porque não tinham raiz. Outra parte caiu entre espinhos, que cresceram e sufocaram as plantas. Outra ainda caiu em boa terra, deu boa colheita a cem, sessenta e trinta por um. Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça!”.

Mateus 13:3-9

“E disse o SENHOR: Eles são um só povo e falam uma só língua, e começaram a construir isso. Em breve nada poderá impedir o que planejam fazer. Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros”.

Gênesis 11: 6-7

Eugen Rosenstock-Huessy pode ser um nome desconhecido para muitas pessoas que acreditam estar atualizadas na filosofia, mas isso é uma perda para todos nós, que sequer conhecemos a obra de um homem que levou o estudo da linguagem a níveis extremos de profundidade e, o mais importante, nobreza de espírito.

Rosenstock-Huessy é um pensador pouco ortodoxo em relação aos seus métodos de análise e em relação ao seu estilo, próximo da retórica exaltada de um visionário ou de um pregador. Em alguns aspectos, ele é, de fato, um visionário, como Otto Maria Carpeaux percebeu no ensaio que dedicou ao livro “Revoluções Européias”, lançado pela primeira vez numa Alemanha já dominada pelo nazismo em 1938, e depois reformulado para a edição americana de 1968 com o título de “Out of Revolution – Autobiography of a Western Man”. A prova de sua antecipação está, como o leitor pode perceber, nas datas em que este livro fundamental, mas esquecido, foi publicado, em que a história do mundo parecia querer mostrar, de maneira pueril, como as revoluções trariam benefícios para uma sociedade mais justa e igualitária.

Rosenstock anteviu que tudo isso era uma patologia do espírito porque possuia, antes de tudo, a dimensão vertical da eternidade, que orientava constantemente as suas análises filosóficas – especialmente, aquelas relacionadas com a filosofia da linguagem. Na verdade, ele não estava sozinho em suas pesquisas: havia, pelo menos, mais três sujeitos que perseguiam o mesmo intento, mas quis o destino, por uma dessas ironias inexplicáveis, que não repartissem entre si o resultado de seus trabalhos. São Eric Voegelin, autor do monumental “Order and History”, Bernard Lonergan, o homem que trouxe Santo Tomás de Aquino para o século XX e Xavier Zubiri.

“A Origem da Linguagem” (Ed. Record; tradução de Pedro Sette-Câmara, Marcelo de Polli Bezerra, Márcia Xavier de Brito e Maria Inês de Carvalho; organização de Olavo de Carvalho) é a melhor introdução às idéias de Rosenstock, idéias que não teriam muito sucesso nas universidades brasileiras, empanturradas em ideologias estruturalistas, semióticas e marxistas. Aliás, a ironia de toda essa história é que os grandes temas que obcecam nossos acadêmicos são os mesmos temas que o próprio Rosenstock-Huessy previu e trabalhou com uma dedicação impressionante: o multiculturalismo, o debate entre gêneros e alteridade de culturas primitivas e civilizadas. Contudo, a diferença está no fato de que Rosenstock via tudo isso não como uma forma de superioridade de uma determinada minoria sobre o curso inteiro da civilização, dando ensejo às affirmative actions que invadem o meio cultural brasileiro, mas como vários estágios da evolução espiritual do ser humano, como este conseguiu articular e tornar cada vez mais sofisticado este milagre chamado linguagem.

Neste ponto, fica claro que sua filosofia é a de um pensador religioso que não hesita em revelar o que seria a beleza do Verbo aos seus leitores, ouvintes e alunos. Assim, muitas das idéias de Rosenstock podem parecer tresloucadas por não terem o aparente método acadêmico, mas talvez o seu método seja justamente  criar uma nova maneira de ver as coisas deste mundo – e ela talvez só possa ser compreendida, se tiver a perspectiva religiosa da vida entre o homem e sua ligação mais profunda com a linguagem, identificada com o conceito de Deus. Esta flexibilidade – um espanto para muitos pesquisadores enclausurados em normas positivistas e meramente horizontais, pesadas como o chumbo – permite a Rosenstock desenvolver com graça e vigor alguns dos insights mais fascinantes já feitos sobre o tema.

Podemos definir insight como aquele momento em que um pensamento parece nos revelar o avesso do senso comum, mas que não deixa de se integrar à ordem natural das coisas. Rosenstock é mestre nisso: transmite o insight como se estivesse conversando informalmente num jantar ou numa comemoração. Claro que isso pode ter um pequeno problema: como se dará o desenvolvimento desse estalo?

Mas “A Origem da Linguagem” não veio para cumprir este papel. Sua função com o seu lançamento é jogar as sementes para ver se elas darão algum fruto.

Um desses momentos iluminadores no livro de Rosenstock é a sua razão do porquê a linguagem ser um milagre. O raciocínio pode parecer delirante, mas é justamente por causa do “delírio” que se torna verdadeiro. Deixemos o próprio Rosenstock-Huessy explicá-lo:

“(…) A linguagem criou um campo de força entre os que tinham vivido e os que iriam morrer. É comum expressarmos esse fato pela admissão de que há uma relação entre os mortos e os vivos. Explicamos ritos funerários dizendo que os mortos eram considerados ainda viventes. Esta não é a verdadeira fé da humanidade. A fé da humanidade inverteu a relação entre a morte e a vida: os mortos eram adorados por terem vivido aqui como “predecessores”; os vivos eram emancipados por estarem prontos para morrer como sucessores.

A paz e a ordem dependiam dessa inversão da suposta ordem natural de nascimento e morte. Para a sofisticada e moderna mente científica, o nascimento precede a morte. “O menino é pai do homem”, dizemos desde esse ponto de vista puramente individualista. O indivíduo, considerado unidade do nascimento à morte, teria permanecido mudo. Os animais não falam, com efeito, pela simples razão de não serem predecessores nem sucessores de ninguém. A constituição da humanidade consiste na constituição da sepultura como útero. As tribos, os impérios, as igrejas não discordam a esse respeito (…).

Se o homem concebe a vida entre nascimento e morte, não há progresso. O progresso depende da qualidade interseccionadora da morte como útero do tempo. Entre a sepultura e o berço, o homem civilizado torna-se articulado, educado, e encontra orientação e direção. As pressões resultantes da sepultura produzem a vertente por onde as águas da vida podem atingir as alturas de um novo nascimento. O animal cresce, mas não pode penetrar o tempo que antecede o seu próprio nascimento. Uma densa cortina impede-lhe o conhecimento de seus antecedentes. Ninguém diz ao animal qual é a sua origem. Mas nós, as igrejas e tribos de tempos imemorais, elevamos toda a humanidade acima da dependência do mero nascimento. Abrimos-lhe os olhos para suas origens e predecessores. Transformamos-lhe os meros nascimentos de modo que se mudassem numa sucessão de antecendentes bem conhecida e estabelecida. E transformamos as simples mortes em precedente para a emancipação dos sucessores. Fizemos com que o homem conhecesse a sua origem, elaborando-lhe uma língua. A origem da fala humana é a fala da origem humana! Falando uma língua, o homem tornou-se e continua a tornar-se humano.

(…) A origem da linguagem permite superar a relação “natural” entre nascimento e morte. O ímpeto de nosso encadeamento de linguagem é o mesmo de todas as formas já referidas, de todas as canções cantadas, de todas as leis promulgadas, de todas as orações rezadas, de todos os livros escritos – todas apontam para a direção que faz da morte a predecessora do nascimento”. (págs. 70-71)

O trecho é longo, mas ilumina os princípios pelos quais Rosenstock se guiará em sua investigação. Como a origem da linguagem é “uma das questões mais debatidas, ridicularizadas e desesperadoras da história humana”, ele quer hierarquizar qual tipo de linguagem que será analisada. Antes de tudo, não se pode confundir a linguagem informal da formal, ou seja, da linguagem que informa onde é o caminho para uma determinada cidade daquela que forma as palavras da oração ou as sentenças das leis. É a linguagem formal que deve ser analisada, pois seus componentes mostram como está o estado espiritual não só de um único indivíduo, como também da sociedade como um todo.

Entretanto, não é apenas no aspecto sociológico que a linguagem formal é importante. Ela foi a articulação de uma fala, que se cristalizou num ritual que simbolizava a passagem (ou melhor, o progresso) de um mundo para o outro, dos mortos para os vivos, daqueles que não estão mais aqui para aqueles que dentro em breve estarão, do passado para o presente, preparando o homem para o futuro. Eis aí o milagre: a origem da linguagem dá a possibilidade do ser humano conhecer sua própria origem, como prova o início do Evangelho de São João (“No princípio era o Verbo”) e a própria frase de Rosenstock, aparentemente tautológica – “A origem da fala humana é a fala da origem humana” -, guarda muitas relações com a frase célebre de Eric Voegelin ao abrir o seu “Order and History”: “A ordem da história emerge da história da ordem”.

As obras de Rosenstock e Voegelin têm muito em comum porque ambos estão preocupados com o problema da ordem divina e humana. São assuntos, aliás, de especial importância tratando-se da origem da linguagem, já que, como o ser humano começou a falar na linguagem formal, e seu aspecto informal é considerado uma perversão do Verbo, seria lógico concluir que a ordem bem articulada só pode ser expressada de forma clara e cristalina, com uma linguagem que tenha as mesmas características. Dessa forma, o problema da ordem e da desordem na sociedade e no indivíduo se intersecciona com a questão do tempo. Rosenstock não afirma em nenhuma parte do livro, mas deixa implícito que quem cria o tempo é a própria linguagem e o uso que fazemos dela – no qual o resultado influirá diretamente na estrutura social do mundo onde o indivíduo vive.

Contudo, o tempo, de acordo com os meandros da linguagem, não é um tempo ágil, de causa-e-efeito imediatos: tudo faz parte de um lentissímo esquema em que, muitas vezes, a resposta dar-se-á anos e anos depois que o primeiro mandamento – no caso, o ato de dar (ou dizer) um imperativo ou de mudar a natureza de um substantivo, p.ex: um nome – iniciar um fenômeno que Rosenstock, num lance digno de poeta, chamou de “taça do tempo”.

A imagem da “taça do tempo” não é uma escolha aleatória, como se pode prever de um homem que conhecia os símbolos de forma minuciosa. Este ensaio, contudo, preferiu o termo “cálice”, não só pelo duplo sentido que a palavra envolve com o tema que está sendo abordado (“cálice” sendo o objeto para beber, além de ser um trocadilho com o imperativo “cale-se”, que seria justamente a mudez do ser humano frente ao espanto que é a linguagem), mas também porque talvez fosse a intenção de Rosenstock de aludir ao cálice da Santa Ceia, em que Jesus bebeu o vinho que seria o seu sangue. A imagem que ele usa e abusa por todo o livro representa um mistério que poucos tiveram coragem de responder: Como as mais diferentes vidas podem ser unificadas através de uma palavra que atravessou anos, às vezes séculos? Para aqueles que acreditam ser essa uma pergunta inútil, este cetismo é esmigalhado em questão de segundos se o leitor se perguntar sobre a natureza de seu próprio nome e sobrenome que, de alguma forma, ecoa anos de História particular e coletiva, sem que se saiba ou tente imaginar.

Um dos exemplos mais didáticos de como funciona o fenômeno da “taça de tempo” de Rosenstock pode ser encontrado no cinema, no filme “Sunshine – O Esplendor de um Século” (2000), dirigido por István Szabo e com Ralph Fiennes no papel principal (no caso, três papéis principais). A história cobre as três gerações de uma família, os Sonnenschein, judeus-húngaros que tiveram sua fortuna graças a um licor chamado “Sunshine” (a tradução em inglês do sobrenome, que significa “aurora”). O patriarca é um homem muito religioso, chamado Emmanuel, que, ao descobrir que seu filho, Ignatz, quer casar com Valerie, uma menina que criaram como filha, afirma que isso seria contra as leis de Deus, pois a moça seria como parte da própria família. Mesmo assim, o filho consume a sua paixão pela garota e ambos se tornam amantes, sem o conhecimento dos pais. Formado em Direito, Ignatz é um caloroso defensor da monarquia austro-húngara, que ele considera “liberal”, mesmo que, para entrar como juiz na Suprema Corte, seja “sugerido” que mude o seu sobrenome, devido ao “tom” judeu. Ignatz não hesita e, até o próprio pai, já enfraquecido pela velhice, compreende a intenção do filho, que muda o nome de Sonnenschein para Sörs (“destino” em húngaro).

A mudança do substantivo, no caso um nome, é o início da “taça do tempo” que vai se estender por toda a História do Século XX. Antes houve o rompimento de um ritual – e de um ritual moral, que é o incesto entre irmãos, mesmo que eles não sejam do mesmo sangue, mas criados como se fossem. A quebra do ritual, que é a fala cristalizada, só pode implicar na quebra de um símbolo, que é o próprio nome. Poucas pessoas, hoje em dia, dão importância ao nome que escolhem para si mesmos ou para seus descendentes, mas o fato é que o nome é o que nos identifica como indivíduos e, não é à toa que, no Direito, de acordo com o maior comentarista do Código Civil Brasileiro, Clóvis Beviláqua, o nome é “o elemento fundamental na individualização da personalidade jurídica”. É o nosso nome que nos define, de certa maneira, que nos deixa com um passado para sermos arremessados para o futuro. Como diria o velho adágio: nomen est omen (o nome é destino).

Os agora Sörs (já que Valerie e o resto de sua família também fizeram o mesmo que Ignatz, pressionados pelo constante anti-semitismo do império áustro-húngaro) conseguem, com o perdão do trocadilho, um lugar ao sol no Estado. Ignatz é um juiz brilhante, mas que não hesita em reafirmar sua admiração pelo Imperador. Quando eclode a Primeira Guerra Mundial e o império desaba, Ignatz se vê numa prisão de desilusão que não pode compreender. Para piorar, os comunistas tomam o poder (e entre eles, está o irmão de Ignatz, Gustave) e o antes tão prestigiado juiz da Corte é condenado a prisão domiciliar, além de sofrer de problemas cardiovasculares que acarretarão em uma morte dolorosa. O filho de Ignatz e Valerie, Adam, vira um virtuose da esgrima, mas também um alienado político, pois defende o regime austro-húngaro que se aliou ao nazismo. Dessa vez, a mudança não será apenas na questão do nome: Adam se converte ao catolicismo e, numa das aulas de eucaristia, conhece sua esposa, uma judia na mesma situação constrangedora sobre sua religião. Uma série de circunstâncias mudam radicalmente a vida da família Sörs: apesar de ter ganhado a medalha de ouro nas Olímpiadas de Berlim em 1938, Adam, sua esposa, seu filho Ivan, a cunhada Greta (com quem tem um caso), seu irmão Istvan e sua mãe Valerie, vão para os pogroms e depois para os campos de concentração, onde Adam é torturado até a morte, afirmando sem parar que seu nome é “Adam Sörs, campeão mundial de esgrima”, sem dizer uma palavra sobre sua origem judaica.

Os únicos sobreviventes da tragédia são Valerie e seu neto Ivan. Amargurado pelo fato de que os nazistas foram os responsáveis pela morte de seu pai, Ivan, aconselhado por seu tio Gustave, se alia aos comunistas que ficaram com a Hungria, ajudando no expurgo de possíveis traidores do Partido Comunista. Contudo, gradualmente, Ivan vai tomando consciência da loucura que é o comunismo, tão ou quanto pior que o nazismo, e decide se tornar um opositor do Partido, acabando por ser preso e condenado por seis anos. Ivan é libertado justamente quando o regime comunista está acabando, mas ainda mostra os sinais de sua irredimível burocracia. Vai morar com a avó na antiga casa da família e quando Valerie tem um derrame, Ivan procura a receita do bisavô do licor “Sunshine”, que desaparecera misteriosamente anos atrás. No hospital, a última palavra que Valerie diz ao neto é justamente o antigo sobrenome judeu: Sonnenschein.

Ivan nunca soube que este era o verdadeiro nome da família; quando  descobre, no meio de uma mudança, uma carta de Emmanuel dirigida a Ignatz que o aconselhava a seguir as leis de Deus durante a sua vida, a primeira coisa que Ivan faz é usar de novo o nome Sonnenschein. Curiosamente, é também a época que o regime comunista acaba na Hungria.

Esta longa exposição da história de “Sunshine” se deve para o leitor perceber o que é a “taça do tempo” que Rosenstock tanto fala. “A linguagem precisa de tempo para repletar-se de significado”, escreve ele, “Ninguém esperava que um hino, um juramento ou um feitiço fosse mais que promessa de compreensão mútua. Os nomes não são generalizações, como pensam nossos filósofos. Nossos ancestrais consideravam a generalização coisa do demônio. Teriam considerado uma blasfêmia tratar a educação como capacidade de fazer generalizações. Os nomes eram para o adolescente inciado promessas de vagarosa ascensão ao entendimento. Eram rodeados de mistério, e não porque fossem verdadeiros, mas porque deviam tornar-se verdadeiros”.

Ao não compreender que a quebra de um nome é a quebra de um espírito, Ignatz Sonnenschein amaldiçoa o resto de sua família – e muitos fizeram o mesmo na vida real, sempre por causa de alguma causa política que, obviamente, contrariava a verdadeira lei divina. Para Rosenstock, “o espírito da linguagem e a linguagem do espírito são vida vivida condensada em nomes”. E continua, num outro trecho esclarecedor: “‘Espírito’ é como geralmente se chama o poder de um nome de conter o passado e amplos conjuntos de vida realmente vivida, de modo que aqueles que o invocam possam experimentá-los. Quando comparamos os números dez, cinco ou três com os nomes de deuses e de homens, os números podem ajudar-nos a definir os nomes por meio de contraste. Os números são entendidos sem espaço de tempo. Por isso inventamos uma escrita especial para 1, 2, 3, 4, etc. A matemática é a ciência dos fatos que não exigem vivência temporal real para serem entendidos. Mas os nomes estão no pólo oposto. Todos os homens de todos os tempos têm de ter vivido antes de conhecer a Deus. Deus não é um número nem uma palavra. Ele tem um nome. Todos os nomes, salvo o de Deus, têm existência curta. Mas todos demandam ser preenchidos de significado por longos períodos de tempo” (pág. 99).

Este longo período de tempo em que a linguagem se comunica é o milagre que Rosenstock admira como poucos. E o que mantém a unidade desse fenômeno é justamente a linguagem formal, que é a bebida na qual a “taça do tempo” é preenchida. “A linguagem formal é um processo físico, compreendido no universo de nossos cinco sentidos, pelo qual uma taça de tempo é formada e desfeita. Dentro dessa taça de tempo, ou espaço de tempo, ou campo de correspondência, os seres humanos dividem o seu trabalho. Eles não podem dividir o trabalho se não se tiveram internado no campo comum da linguagem formal. E não podem partir para novas divisões do trabalho até que o velho campo esteja dissolvido. Precedentemente a todos os atos sociais, deve-se constituir o campo de correspondência em que se ordenarão e cumprirão os atos, após cujo cumprimento deverá desaparecer o campo” (pág. 124).

A “taça do tempo” é um fenômeno complexo e, por isso mesmo, capaz de abuso e incompreensão, porque necessita de continuidade. A verdadeira função da linguagem é unificar uma sociedade, senão ela perecerá. Daí seu caráter miraculoso e, paradoxalmente, corriqueiro. Entretanto, Rosenstock avisa que a linguagem é um território fértil para que o pai da mentira – o demônio – possa criar sua estripulias e perverter não só as sementes, como também o solo. O resultado disso seria a desarticulação da linguagem, criando suas quatro doenças: a guerra, a crise, a revolução e a tirania.

Rosenstock-Huessy acredita piamente que a linguagem é um dom divino e isso justifica o seu ataque aos filósofos modernos, que não acreditam mais na existência do pai da mentira e usam a linguagem como um mero exemplo lógico, destituída de qualquer relação com a realidade concreta, a mesma realidade na qual ela se baseou para se cristalizar e se prolongar através do tempo no seu modelo formal. A ausência de uma formalidade na linguagem do cotidiano, que não crie um equilíbrio entre o passado e o presente, pode dissolver a realidade num outro tipo de ordem – a ordem pervertida. Este é o aspecto trágico que está latente na questão da origem da linguagem: em qualquer momento, ela pode transformar a verdade em mentira e é neste abismo que se revela, paradoxalmente, a falta que faz uma linguagem articulada.

É aqui que entram as quatro doenças: guerra, crise, revolução e tirania (também denominada degeneração). Sem o conhecimento delas, nunca poderemos saber a benção que é a linguagem e como ela verdadeiramente estrutura o espírito de nossas vidas. “A medicina não se torna ciência senão quando penetra os mistérios das doenças. A sociologia não se torna científica senão quando pode explicar guerras e revoluções. A ausência da devida ordem, ou seja, a presença do indevido, é que serve para explicar a “origem” da ordem devida. Quando descobrimos por que determinado estado de coisas é negativo e ruim, começamos a entender a origem do bom. A biologia será a ciência da vida no exato dia em que a morte for inteiramente compreendida. No mesmo sentido, teremos uma ciência da fala ou da linguagem assim que penetrarmos o inferno da não-linguagem” (pág. 49).

Rosenstock não brinca em serviço ao querer cavar as doenças da linguagem. Mas, antes de tudo, ele deve estabelecer um princípio, como todo bom cientista: “Nossa maneira de formular a questão da origem da linguagem desloca o terreno da questão para o da política e da história. Aqui, a questão ‘Quando o homem deve começar a falar?’ é feita como a pergunta a que deveriam responder outras autoridades que não os professores de inglês, árabe ou sânscrito. Estes tratam as línguas como fatos. Aqui, todavia, as línguas são apresentadas como pontos de interrogação da história política. Queremos, aliás, sugerir aos leitores puramente literários ou gramaticais que nos deixem agora mesmo, sob pena de ficarem desapontados ao descobrir que a nova linguagem não é criada pelos pensadores ou pelos poetas, mas pelas grandes calamidades políticas ou levantes religiosos” (pág. 50).

O que se segue é uma explicação originalissíma da relação que há entre a linguagem e os eventos da ordem e da desordem. Em primeiro lugar, temos a guerra, que é quando um país não escuta a linguagem de outro país e ambos entram em conflito, para que a harmonia possa um dia se reestabelecer e um poder ouvir o que o outro fala. Depois, temos a revolução, uma ruptura mais profunda ainda, pois o que é inaudível são os sons da tradição e do passado, escolhendo a energia desenfreada do presente, não havendo espaço para reflexão, apenas “hipersensibilidade aos gritos da juventude”. Em contrapartida, temos a degeneração (ou a tirania), em que os sons do futuro não são ouvidos, e assim privilegia a excessiva temperança do passado que, um dia a mais, um dia a menos, só tende a morrer, através de uma entropia ou então da própria revolução violenta. Por fim, há a crise que Rosenstock nos explica dessa maneira inusitada, aliás com um exemplo perfeito para nossos tempos de crise econômica: “Quando um desempregado bate à minha porta e eu digo ‘não há trabalho para ti!’, isso parece não implicar nenhum problema lingüístico. Mas implica, sim. O desempregado que pede ‘trabalho’ está na verdade pedindo que lhe digam o que fazer. Tendo a pensar que nossos economistas não percebem, além da dificuldade financeira que há em tal reivindicação, a reivindicação de que falem com ele! Queremos que nos digam o que fazer na sociedade. A crise interna de uma sociedade em desintegração resulta de que ninguém diz a muitas pessoas dessa sociedade o que devem fazer” (pág. 60). A crise (ou anarquia) vem da ausência de ordem dada ou expressa, uma ordem que, para ser cristalizada em palavras de lei, precisa ser articulada em termos formais. Quando um não escuta o outro ou um não sabe falar com o próximo, este é o aviso de que a linguagem cairá no reino do pai da mentira.

É o que atualmente acontece no Brasil e no mundo, onde a linguagem se tornou um repositório de jargões publicitários e clichês ideológicos. Mas, ao mesmo tempo que se pende para a mentira, há também a ira escandalosa da verdade. Se em “Sunshine”, a mudança de um nome amaldiçoava uma família na história trágica de um país e de um século, no nosso início de século XXI temos um novo fenômeno: as quatro doenças da linguagem amalgamadas em algo ainda inexplicável, mas que podemos traduzir apenas numa imagem – a dos aviões atravessando as Torres Gêmeas do World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001. Parece um raciocínio sem nexo, mas o símbolo da torre é de grande importância para a questão da origem da linguagem – não é à toa que a capa da edição nacional é o famoso quadro  de Pieter Brueghel, o Velho, a respeito da Torre de Babel, o episódio do Gênesis em que se conta o castigo de Deus de confundir o homem, que queria construir uma torre gigantesca para chegar a Ele.

A torre é também um dos símbolos da alma e, de uma certa maneira, se seguirmos Rosenstock, a linguagem é a alma de uma sociedade. Portanto, não seria lógico pensar que a queda das Torres Gêmeas é o marco de uma nova “taça do tempo” que só veremos o resultado daqui a alguns anos, se ainda estivermos vivos? Não seria o fato da guerra, da revolução, da degeneração e da crise se unirem, como numa espécie de punição em que o homem, já confuso por ter cada um desses problemas, tenha que decifrar o enigma que o fará voltar à ordem? Essas questões não são inúteis se colhermos com afeição as sementes que Rosenstock plantou em seu livro. Ele é um filósofo que leva o leitor a novas maneiras de ver o mundo e, ainda assim, maneiras que fazem parte de uma tradição – a tradição daqueles homens que, movidos pelo senso de dever, investigaram a realidade para se chegar à verdade. E, para Eugen Rosenstock-Huessy, como a verdade estava na linguagem, a única coisa que o homem pode fazer ao deparar-se com ela é se curvar e calar completamente a fala que ainda não se cristalizou no símbolo do pássaro que nos abençoou com o Verbo original.

Um comentário em “O cálice da linguagem

  1. Excelente introdução a um livro realmente importante, mas creio que o estruturalismo linguístico corrobora muito bem a visão de “linguagem formal” do Rosenstock-Huessy. A visão de língua de Saussure (“a língua não é um conglomerado de elementos heterogêneos”) junto com a noção de Bloomfield (“A ciência linguística é uma etapa na autorealização do homem”), por exemplo, dão espaço para “introduzir” aspectos metafísicos no estudo e análise da linguagem, inclusive no que diz respeito a sua origem. No estruturalismo a linguagem é analisada como uma espécie de “espectro luminoso”, onde a diversidade linguística (numa mesma língua ou línguas diferentes) levar-nos-ia a sua ‘unidade’, a sua origem (o Verbo?), e assim, veríamos que a capacidade do homem para criar sua linguagem seria praticamente uma graça divina (o que o Chomsky vai chamar de ‘capacidade inata’). Não é à toa que Panini já pode ser considerado um estruturalista milênios antes de Saussure.

    O Merquior analisou um tanto mal o estruturalismo linguístico (mas não de todo sua influência às demais áreas) porque, como você mesmo disse em texto sobre ele, não transcendia aspectos puramente físicos e materiais.

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