O liberalismo clássico e as tradições morais

tocqueville

 

 

Gustavo França*

 

Como já deixei claro em meu primeiro texto (http://www.dicta.com.br/uma-esperanca-para-as-ideias/), em nada me apraz a direita brasileira, tão dada a jargões, a picuinhas e a chiliques quanto a esquerda. Essa direita comporta vários espécimes particularmente curiosos. Além dos muito conhecidos reacionários à la Manhattan Connection, há os liberais anticonservadores, nos quais gostaria de me deter agora. Não me refiro aqui aos que simplesmente professam um credo liberal com premissas moralmente progressistas (ou seja, segundo o qual opções morais são relativas à consciência íntima de cada um), mas apenas aqueles que, apropriando-se de meios autoproclamados liberais, fazem panfletagem a favor da ideia de que o autêntico liberalismo é aquele que defende aborto, união homoafetiva, liberação das drogas e que é inconcebível associar liberalismo a uma postura moral conservadora.

É flagrante o desconhecimento histórico por trás dessa crença. Uma olhada atenta sobre as origens do pensamento liberal, nos séculos XVII e XVIII, mostra facilmente que a noção de um liberalismo “puro”, diferente do liberalismo conservador, é totalmente estranha ao liberalismo clássico. O liberalismo clássico é, como regra, o que hoje se chama de liberalismo conservador. Praticamente todos os primeiros liberais eram moralistas muito apegados às tradições cristãs da sociedade do seu tempo e jamais conceberam qualquer ordem moral diversa da ortodoxia dos costumes.

Pode-se, sem muita dificuldade, ser levado a imaginar que as visões morais são apenas uma faceta do pensamento desses homens, desvinculada de suas ideias políticas e econômicas. Trata-se, entretanto, de grosseiro equívoco a ideia de um pensamento dividido em caixinhas separadas, incomunicáveis. A política e a economia não são senão consequências da ética, que fornece as raízes fundantes necessárias para todos os ramos do conhecimento prático. A defesa da liberdade nos liberais clássicos e em vários contemporâneos tem como ponto de partida a concepção de uma ordem moral conservadora, somente dentro da qual podem as ideias liberais ser entendidas. Nesse sentido, liberalismo conservador e liberalismo progressista são, na verdade, cosmovisões radicalmente incomensuráveis, e o fato de que convergem em algumas bandeiras políticas e econômicas é muito mais uma coincidência do que uma autêntica comunhão de princípios.

Já John Locke (1632-1704), embora não possuindo uma obra sistemática de Filosofia Moral, identificou a liberdade, que lhe era tão cara, como parte de uma teoria abrangente da lei natural (afinal, a liberdade vem da lei, e, por isso mesmo, o estabelecimento do governo civil é uma garantia de liberdade), que contém os deveres eternos, emanados da autoridade divina, que submetem racionalmente toda a criatura humana. O mesmo se dá, de forma muito mais marcante, no iluminismo escocês, escola apegada, antes de tudo, ao senso moral comum, desde as primeiras influências do Conde Shaftesbury (1671-1713), passando por Adam Smith (1723-1790) (cuja obra “A riqueza das nações” só pode ser compreendida à luz de sua “Teoria dos sentimentos morais”, em que se vê que o livre mercado é parte de uma ideia de organização social, na qual a liberdade econômica é um meio de guiar naturalmente os homens ao bem moral), até David Hume (1711-1776), filósofo cético e ateu, porém, ainda ligado à concepção conservadora da ordem social e às virtudes tradicionais, de fundamento estoico. Por sua vez, na Alemanha, o grande Immanuel Kant (1724-1804) deu à liberdade um sentido último puramente moral, como a autonomia da consciência para obedecer à lei ética inscrita em sua própria razão.

O liberalismo progressista, como compreendido hoje, é uma invenção de John Stuart Mill (1806-1873), no século XIX. Foi Mill quem fez o liberalismo abraçar como fundamento a ideia de que cada pessoa deve buscar a felicidade a seu modo e de que a construção autônoma da personalidade de cada um, sem conhecer qualquer ordem ou limites que não a vedação da violência a outrem, é o único norte moral que uma concepção liberal pode indicar. É a partir de Mill que o liberalismo perde seu vigor filosófico e se reduz a considerações rasas sobre “direito à felicidade” ou “pluralidade de concepções de vida boa”. Curiosamente, é também Mill que insere no pensamento dominante a intervenção do Estado na ordem econômica, podendo ser considerado o pai do intervencionismo do século XX. Ou seja, na verdade, a introdução do progressismo moral no liberalismo trouxe não a sua salvação, mas a sua bancarrota.

Portanto, até esse ponto, o liberalismo era, na maioria de suas manifestações, uma doutrina moderna da ordem natural, tendo-a substituído por um culto desordenado à individualidade. A tolerância perdeu suas raízes no direito natural (herança da filosofia clássica, adaptada à terminologia do racionalismo moderno) e passou a fincá-las no relativismo (a aceitação de todas as ideias pessoais de bem moral e a impossibilidade de se decidir sobre sua correção). O liberalismo adentrou a pós-modernidade, rejeitando todos os absolutos de verdade e de bem.

O liberalismo conservador, porém, resiste em muitos dos grandes nomes do liberalismo contemporâneo. É o caso, para citar apenas um desses gigantes, de Friedrich Hayek (1899-1992). O genial filósofo e economista austríaco também não via a ordem como um limite externo à liberdade, mas a liberdade como uma das formas da ordem. O livre mercado não é senão uma parte da ordem espontânea que constrói os fundamentos da sociedade ao longo dos séculos, assim como as tradições morais e os costumes jurídicos (para Hayek, entusiasta da common law, a lei não pode ser fabricada por um legislador, mas deve refletir a cristalização das normas de conduta naquela comunidade). A liberdade econômica já nasce essencialmente vinculada a tais instituições, que a dirigem naturalmente para o bem comum (o pendor liberal do vienense vem por não crer que a intervenção estatal seja capaz de substituir a sabedoria milenar da tradição como orientadora da ordem)[1].

Em suma, não há qualquer contradição em que liberais se oponham à licenciosidade do esquerdismo cultural. Um liberal pode e deve defender o valor absoluto da vida ante as tresloucadas demandas por “autonomia feminina sobre o próprio corpo”. Evidentemente, jamais anuirá à interferência estatal na escolha individual de manter relações homossexuais, o que não significa apoiar a revogação da ordem natural por um decreto que, contra a própria realidade fática, afirme a igualdade entre duas entidades ética, biológica e sociologicamente distantes (o casamento tradicional e a união homoafetiva). Da mesma forma, pode se valer da prudência ao avaliar eventuais danos sociais causados pela liberação das drogas que transbordem a simples esfera do indivíduo que se droga.

Como é óbvio, não existe patente de definições, e, se se quiser chamar de liberalismo apenas a vertente progressista, pode-se até fazê-lo, desde que consciente de que desse grupo se estarão excluindo Locke, Smith, Hume, Kant, Montesquieu, Tocqueville, Bastiat, Constant, Burke, Acton, Hayek, Röpke, Kirk, Oakeshott, entre outros. Nenhum desses defenderia qualquer das animalescas bandeiras da esquerda festiva. Liberalismo sem conservadorismo se degenera em mais um flanco do pós-modernismo moral, de uma liberdade vazia, sem bem, sem justiça, sem verdade. Reflexamente, poder-se-ia dizer que conservadorismo sem liberalismo cai na tentação autoritária das utopias reacionárias. Contudo, isso é outra história.

[1] Cf. Roger Scruton, “Hayek and conservatism”, in: “The Cambridge Companion to Hayek”, principalmente, pp. 209 e 218 e ss.

 

*Gustavo França é graduando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista Dicta & Contradicta

2 comentários em “O liberalismo clássico e as tradições morais

  1. é, mas o próprio hayek diz:

    http://ordemlivre.org/posts/por-que-nao-sou-conservador

    “Quando digo que o conservador carece de princípios, não quero com isso afirmar que ele careça de convicção moral. O conservador típico é, de fato, geralmente um homem de convicções morais muito fortes. O que quero dizer é que ele não tem princípios políticos que lhe permitam promover, junto com pessoas cujos valores morais divergem dos seus, uma ordem política na qual todos possam seguir suas convicções. É o reconhecimento desses princípios que possibilita a coexistência de diferentes sistemas de valores, a qual, por sua vez, permite construir uma sociedade pacífica, com um emprego mínimo da força. Sua aceitação significa que podemos tolerar muitas situações com as quais não concordamos. Há muitos valores conservadores que me atraem mais do que muitos valores socialistas, porém a importância que um liberal atribui a objetivos específicos não lhe serve de justificativa suficiente para obrigar outros a submeter-se a eles. Não duvido que alguns de meus amigos conservadores ficarão chocados com as “concessões” às opiniões modernas que eu teria feito na Parte III deste livro. Contudo, embora possa não gostar, tanto quanto eles, de algumas das medidas mencionadas e até votasse contra elas, não conheço nenhum princípio geral ao qual recorrer para persuadir os que têm opinião diferente de que tais medidas são inaceitáveis na sociedade que eu e eles desejamos”.

    parece meio ligeira essa cisão simples entre liberalismo “progressista” e “conservador”. há conservadorismo e há liberalismo, sendo que o campo deste ficou tão amplo que acho difícil fechar com o um liberalismo “historicamente correto”. há uma série de correntes que, ora reivindicando, ora se distanciando, dialogam com a herança liberal de maneiras várias. sobre os nomes: acho difícil considerar burke um liberal, assim como kirk e oakeshott. são grandes conservadores e não há nada de mal em que dialoguem com parte da tradição do liberalismo (o primeiro já no nascedouro). mas pode ser que eu esteja errado, hehe.

  2. Brilhante! O que também, na minha modéstia, penso e acredito fortemente. O ultimo parágrafo é uma poderosa síntese que deveria nortear o possível nascimento desta dita “nova direita”.

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