Por que sou liberal

declaration-facts-wide

 

Gustavo França*

 

Talvez, alguns dos meus leitores tenham se surpreendido com meu último texto (http://www.dicta.com.br/o-liberalismo-classico-e-as-tradicoes-morais/), em que mostrei simpatia pelo liberalismo, em particular, pelo liberalismo clássico. Comumente, tanto meus amigos aristotélicos quanto meus amigos liberais veem como um paradoxo que eu, amante do mundo clássico e sempre refratário aos modismos da modernidade, me considere um confessor do credo tido como a própria identidade do pensamento moderno.

Com efeito, sou apaixonado pela cultura clássica dos gregos, pelo direito romano e, principalmente, pelo esplendor civilizacional da cristandade medieval. Não me convence nenhuma ideia de necessário progresso moral e cultural da humanidade na história, segundo a qual a cultura iluminista seria uma evolução de todo o passado. Sou um católico ortodoxo, que lamenta os estragos causados pela Reforma Protestante nos países normalmente associados ao liberalismo e que jamais deixará de denunciar o ódio anticlerical de muitos liberais e as incontáveis ocasiões em que a bandeira da “liberdade religiosa” foi usada com a real intuição de destruir a Igreja.

Sou um crítico severo da mentalidade consumista e economicista que domina o pensamento contemporâneo, em que tudo está sujeito às leis do mercado, e a eficiência é um imperativo superior à ética. Meu intelecto se inclina diante das profundas reflexões da metafísica clássica e debocha dos arrogantes modernos que pretendem inventar sozinhos uma nova e mais elevada filosofia (quando admiro algum autor moderno, é porque vislumbro nele, ainda que malgrado seu, alguma possível continuidade com a tradição). Tenho horror a toda a forma de pragmatismo e de instrumentalização dos conhecimentos científicos e das reflexões políticas para objetivos imediatos e entendo que o conhecimento só deve ser cultivado como um bem em si, parte da perfeição humana. Reverencio a arquitetura medieval e os padrões estéticos clássicos, e nenhuma forma de arte moderna me agrada.

Por que, então, sou um liberal? Sou um liberal porque, acima de tudo isso, me provoca desconfiança e pavor a mais moderna das instituições que passaram a existir: o Estado. O Estado moderno é síntese e causa da desordem que destruiu as tradições culturais do ocidente clássico. Construindo de cima para baixo uma unidade nacional que lhe empresta legitimidade para o uso da coação (e, portanto, inaugurando uma nova forma política, diametralmente oposta às comunidades pré-modernas, nas quais os valores e instituições comunitárias erguiam de baixo para cima o governo civil), tornou-se para tanto necessário abandonar os intermináveis dissensos pelas questões últimas da metafísica e reduzir o debate público ao nível rasteiro das certezas científicas.

Na nova estrutura do monismo jurídico, o Estado passa a controlar todas as instituições sociais, e seu poder regulamentar abrange todas as áreas da vida social. Tamanha concentração de poder, jamais sonhada por um rei medieval, foi protagonista das piores calamidades da história da humanidade (holocausto nazista, genocídios soviéticos, Khmer Vermelho, apartheid). Num cenário em que o poder estatal está a serviço de ideologias indiferentistas, progressistas e anticristãs, muitos conservadores se esforçam por tomá-lo e lhe incutir a ideia clássica de bem, de forma a ser capaz de reconduzir a civilização aos trilhos eternos da ordem natural.

O genial J. R. R. Tolkien, na imortal obra “O senhor dos anéis”, expõe por que esse projeto está fadado ao fracasso. Diante de um instrumento de poder criado pelo Senhor da Escuridão para escravizar todos os povos (o Um Anel), dois magos se comportam de formas distintas. Saruman busca usar o poder a seu favor para derrotar o inimigo; termina por se corromper pela ganância e se alia às forças das trevas. Gandalf encontra sua sabedoria na prudência. Conhecendo suas limitações, recusa-se a tocar o anel porque sabe que será para ele tentação. Em vez de entregar o poder a um virtuoso, seu objetivo é destruí-lo, para que cada um possa voltar a tocar normalmente sua vida. Saruman é aquele que quer usar o Estado para corrigir os descaminhos da sociedade contemporânea. Gandalf é o liberal, que sabe que a concentração de poder é, em si mesma, fonte abundante de maldade porque incita no homem sua tendência natural à ganância.

Tolkien confirma explicitamente essa visão, quando diz, em carta a seu filho Christopher, que “minhas opiniões políticas tendem cada vez mais para a anarquia (filosoficamente compreendida, como significando a abolição do controle, não homens barbados com bombas) (…) o trabalho mais impróprio a qualquer homem, mesmo os santos (os quais, de qualquer maneira, ao menos relutavam em realizá-lo), é mandar em outros homens. Nem mesmo um homem em um milhão é adequado para tal, e menos ainda aqueles que buscam a oportunidade”.

Sou liberal porque tenho consciência do pecado original. Enquanto subsistir o Estado moderno, não ser liberal é não compreender o óbvio fato antropológico de que o poder político induz a concupiscência na natureza humana decaída. O poder unitário e concentrado não se torna mau nas mãos de homens de vícios. Ele é mau precisamente porque estimula em todos os homens os vícios a que o ser humano tende naturalmente. O homem virtuoso não usa o poder para o bem; assim age o arrogante, que se acha mais forte do que as tentações de ganância. O homem virtuoso tem a prudência e a humildade de se afastar do poder. O liberalismo é a filosofia adequada para a radical imperfeição humana. Quanto estrago já não foi causado por homens bem-intencionados que aliaram suas boas intenções ao orgulho de se considerarem no direito de impô-las pela violência a toda a sociedade! Na imprescritível sentença de Lord Acton: “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”.

Embora tipicamente moderno, o liberalismo (refiro-me aqui, evidentemente, ao liberalismo clássico e conservador, de base comunitária, e não ao liberalismo contemporâneo da “pluralidade de concepções de bem” e do “direito à felicidade”) é, na verdade, a única saída para a reconstrução de uma cultura civilizacional clássica. O retorno às bases da civilização ocidental somente é possível pela limitação racional do poder estatal, de modo a conferir aos indivíduos e aos grupos sociais liberdade cultural para cristalizarem seus valores e costumes nas instituições autonomamente organizadas. Indivíduos ordenando espontaneamente suas vidas e formando famílias, escolas, administrações de ruas e de bairros, universidades, corporações profissionais, paróquias, partidos têm muito mais êxito em disseminar pilares duradouros do que a autoridade política paternalista.

Por sua vez, os conservadores antiliberais, ainda que com justas intenções, ao favorecerem a concentração de poder estatal em sua luta contra a modernidade, contribuem, sem o perceberem, para um enraizamento da mentalidade moderna, convertendo-se cada vez mais profundamente no próprio anátema que combatem.

*Gustavo França é graduando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista Dicta & Contradicta

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>