Preços e Valores

Michael J. Sandel, famoso professor de filosofia política em Harvard (alguns talvez tenham assistido suas aulas, campeãs de audiência ao vivo e online), escreveu um ensaio (What Isn’t For Sale?) para a The Atlantic em que ele questiona o avanço do mercado em nossos dias, já que coisas outrora inegociáveis hoje têm preço.

Ele dá bons exemplos. Contratar uma barriga de aluguel indiana: US$ 7.000,00. Ceder espaço na própria testa para que uma empresa tatue seu logo: US$ 10.000,00.

De fato, tem gente vendendo o que é no mínimo questionável vender. O grande ponto que Sandel deixa implícito, contudo, e que ele deveria justificar de alguma forma, é que isso se deva a algum tipo de adesão social aos “valores do mercado” ou aos mecanismos de mercado, como se o mercado fosse uma entidade com poder causal no mundo.

Mercado nada mais é do que o nome que damos à interação humana na qual se utiliza o dinheiro. Se uma pessoa resolve vender espaço publicitário em sua testa para outra, aí temos mercado; se não, não. Falar em “mercado” em nada nos ajuda a entender o que está acontecendo e muito menos conhecer as causas que levaram as pessoas a agir de uma determinada maneira. Mercados não fazem nada; não têm valores; não aconselham ou desaconselham prática nenhuma.

Assim, não é a “fé no mercado” que leva as pessoas a fazer algo (a não ser que, guiadas por algum entendimento errado do que é o mercado, tomem-no como símbolo de algo que elas próprias valorizam). A mulher que cedeu sua testa à publicidade o fez por dinheiro. Valoriza-se demais o dinheiro? É bem possível, mas isso não tem nada a ver com a prevalência ou não da economia de mercado (lembremos de Vladimir Putin, homem mais rico da Europa).

Quem tem valores são indivíduos, e apenas eles. O mercado não é um indivíduo e nem bem uma instituição (ou seja, um grupo organizado de indivíduos como num governo ou empresa); é um agregado de um certo tipo de transação feita por indivíduos. Ele não tem, nem poderia ter, valores. O fato de algo ter um preço significa apenas que as pessoas envolvidas nas transações daquele bem (e apenas aquelas pessoas) não consideram tal bem um valor absoluto e inegociável. Deveriam considerá-lo? Em alguns casos sim, em outros não. Em ambos os casos, o poder do governo se limita a proibir certo tipo de transação (o que invariavelmente terá um custo e gerará efeitos colaterais), e não a mudar os valores que deram origem a essa transação.

Sandel parece ver, ingenuamente na minha opinião, um poder corruptor da transação monetária em oposição a uma suposta situação anterior que seria mais humana e mais pura; a passagem que melhor expressa essa crença é a em que ele comenta a prática de algumas escolas de pagar dois dólares por livro lido a cada criança: “Paying kids to read books might get them to read more, but might also teach them to regard reading as a chore rather than a source of intrinsic satisfaction“.

Ora, e por acaso na escola que não oferece esse incentivo monetário a leitura ocorre pelo interesse intrínseco das crianças pelo livro? O que essas novas escolas têm feito é apenas dar um incentivo positivo para complementar o incentivo negativo (broncas, notas baixas, vergonha, repetir de ano) que sempre foi a principal ferramenta da maioria das escolas. Lendo mais livros, movidas inicialmente pelo dinheiro (incentivo positivo), é possível que elas adquiram o gosto da leitura, e com mais facilidade do que se guiadas apenas pelos incentivos negativos de sempre. O medo de tudo que é monetário, neste caso, parece singularmente tolo.

O ponto central de sua crítica moral ao mercado (há também uma crítica econômica, que diz que ele torna a vida pior para os mais pobres; crítica refutada pelos próprios exemplos iniciais do artigo: há mais maneiras de se ganhar dinheiro, e há mais oferta de bens e serviços por causa da demanda monetária maior) está nesta afirmação: “When we decide that certain goods may be bought and sold, we decide, at least implicitly, that it is appropriate to treat them as commodities, as instruments of profit and use.” Mas ela é patentemente falsa, pois inverte a ordem causal e lógica do processo. Ninguém “decide” que um bem possa ser comprado e vendido; as pessoas, antes, passam a ver tal bem como “instrumento de uso e de lucro”, e, em consequência, passam a vendê-lo e comprá-lo. Trocar a ordem torna o ato ininteligível. Algo é considerado inegociável; alguém (quem? Esse “we decide” é vago e enganoso) “decide” vendê-lo; e daí, num passe de mágica e sem nenhum motivo, as pessoas passam a ver o objeto em questão como só mais um instrumento? Para se “decidir vender”, é preciso já ver o bem como negociável. E mesmo que o bem já seja vendido (logo, visto como negociável por parte da população), nem por isso todos os considerarão negociável (vide o número crescente de veganos, que se recusam a transacionar algo que envolva exploração animal).

Deixando de lado a discussão econômica que ele usa para contextualizar nossa suposta “crença nos mercados” (em seu diagnóstico, a crise foi fruto da excessiva liberdade econômica das últimas décadas), seu diagnóstico erra o alvo: a crítica que poderia ser direcionada à boa e velha ganância e ao oportunismo, vícios humanos universais e atemporais, encontra o culpado em teorias econômicas e filosofias modernas que supostamente movem a sociedade. Ao fazê-lo, troca o que seria a responsabilização individual pela culpa coletiva e falsa (falsa porque, afinal, não são todos que venderiam a própria testa; e muito menos que venderiam o próprio filho), e que se presta muito mais a ilusórias panaceias estatais (que não podem ser nada mais do que proibir certas transações).

2 comentários em “Preços e Valores

  1. Gostei deste texto. Tranquilo de entender, porque claro e sem firulas. Ou, talvez, seja só porque a questão é fácil mesmo.

  2. Informação é simples, isso é um fato. Basta parar, analisar e pensar um pouco que a razão volta a tona. Não podemos nos dar o luxo de acreditar na primeira informação que se lê. Vou levantar apenas uma questão prática para derrubar essa filosofia barata e mercantilista do Dr. Sandel. (i) Professor de Harvard, a faculdade direcionadas para os futuros astros empresariais, que buscam o poder econômico sem escrúpulos. Nada diferente do que está acontecendo com essas aulas globalizadas e rentáveis do Michael. Se fosse pro sociedade, não seria em Harvard que estas palestras estariam acontecendo.

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