Salvo pelo futebol em Berlim Oriental

por Fabio Fonseca

1972.  Janeiro.  Um frio danado.  Eu tinha deixado meus amigos Nenê e Vasco em Roma porque cismei de conhecer Berlin e Copenhague.  Eles não quiseram, alegaram que fazia um frio danado (tinham razão) e que eu não conseguiria ver as loiras pois elas estariam redondinhas de roupa contra o frio (tinham razão mais uma vez), que eu não teria como fazer para me comunicar, etc, etc.

Mas eu insistia que era uma boa conhecer a Alemanha, que o pessoal falava inglês na rua (ledo engano), que as loiras seriam “descobertas” em locais com aquecimento (nisto pelo menos eu estava certo) e que era um absurdo não querer dar uma passadinha na principal economia européia, mesmo que com o país dividido e com poucos museus, já que os bons tinham ficado “do lado de lá”.  Não quiseram ir mesmo assim.  Fui sozinho.

O arrependimento não durou muito.  Como descrever a sensação de um ser tropical chegando num local escuro, lúgubre, com 30º abaixo de zero na rua, numa estação de trem que lembrava aqueles filmes de atrocidades nazistas?  Quando o trem apitou e partiu eu me vi literalmente abandonado à própria sorte e não pude deixar de lembrar de meus amigos mais espertos que naquele momento deveriam estar comendo pizza com alguma companhia agradável num país latino de língua e costumes familiares.

Mas fazer o quê?  Eu tinha decidido e não iria retornar com o rabo entre as pernas.  Não pela gozação dos meus amigos – “Eu não disse?” – mas mais pela minha curiosidade sobre aquele país dividido em que pela primeira vez eu pisava.  Na nossa cabeça, a Alemanha – a ocidental, claro, pois a oriental era apenas uma abstração – era um país triste, desenvolvido por obra de interesses geopolíticos dos aliados vencedores da guerra e Berlin o símbolo vivo de que “a guerra não compensa”, com suas igrejas bombardeadas mantidas assim como símbolo de uma época que não se quer nem mais ouvir falar.

Fiquei num albergue na região da estação e de posse do guia que eu havia comprado em Roma tirei o dia seguinte para conhecer Berlin Ocidental.  Gostei da cidade, pintadinha, limpinha, cheia de gente bonita e bem vestida trabalhando e andando pela rua, vitrines iluminadas e aquela sensação de prosperidade para todos os lados. Nem parecia que a guerra tinha-na destruído há apenas uma geração.  Comi num boteco o famigerado eisbein (joelho de porco) com chucrute e um chopp escuro, e fui dormir satisfeito com o tour e com a experiência de afinal de contas ter visto a Alemanha.  Ninguém falava inglês em lugar nenhum, diga-se de passagem, e as palavras escritas eram enormes e cheias de consoantes.  Foi, digamos assim, um tour solitário.

No dia seguinte bem cedo fui para a estação:

–  “Good morning, a ticket to Copenhague please”.
– “Neinwishclhlshhienticheinsighl”.
– “A billet pour Copenhague, sil vous plâit?”
– “Neinwishclhlshhienticheinsighl”.
– “Huumm.  Parla italiano? ”
– “ Neinwishclhlshhienticheinsighl!!!”
– “Espanhol e Português nem pensar, né?”
– “Neinwishclhlshhienticheinsighl!!!!!” – falou a má humorada bilheteira da estação e se virou para outro lado, claramente de saco cheio ante minha impertinência!

O que eu fiz?  Peguei meu guia, abri um mapa, mostrei a Dinamarca e a excelentíssima senhora bilheteira, repetindo pela enésima vez sua frase ininteligível, concordou com a cabeça que tinha compreendido que eu queria ir a Copenhague.  E emitiu o bilhete.  Eu agradeci sorridente e ela me ignorou, atirando o bilhete em minhas mãos, já olhando para a próxima vítima, quero dizer, passageiro.  Com o bilhete na mão e longe da mulher pude pensar, já em segurança, – “Com certeza era guarda de campo de concentração”.

Entrei no trem junto a um monte de gente.  Todos normalmente vestidos, alguns carregando pacotes.  “Lanche de meio-dia” – pensei.  A partida foi divertida, o trem apitou, tinha nevado de madrugada e por isso havia uma fumacinha no ar, não estava mais tão frio com no dia em que cheguei, uns 15º C abaixo de zero apenas.  A cabine era daquele tipo de 6 pessoas, três em frente de três e uma porta de correr.

O trem foi chacoalhando e eu fui reconhecendo a paisagem do meu tour do dia anterior: a Igreja bombardeada, o zoológico, algumas casinhas geminadas de trabalhadores, tudo muito arrumadinho, bem alemão.  Sobre meus vizinhos passageiros, ia tentando adivinhar suas profissões:  “Este é professor, aquela dali é faxineira, este daqui com certeza é empresário, aquela outra ali deve ser dona de casa…”.  Mas o embalo do trem me deu um soninho típico de uma manhã fria eu disse para mim mesmo – “Acho que vou dar uma cochilada”.

Não tinha descansado 15 minutos quando o trem parou.  Chacoalhou, eu acordei.  Meus vizinhos todos levantaram.  Saíram do trem.  Eu fiquei meio cochilando enquanto esperava que os novos vizinhos entrassem.  Adormeci.  Mas logo acordei.  E tomei um susto pois estava um silêncio danado e todos os passageiros do trem, não apenas os meus vizinhos, haviam simplesmente desaparecido.

“Estranho” – eu pensei.  Resolvi ver o que estava acontecendo.  Fui até o corredor e enfiei a cabeça para fora da janela para ver onde eu estava.  Não tinha plataforma, só trilhos!  “Ué, como é que aquele pessoal todo desceu?  Nos trilhos?  Será que o trem quebrou e que só o dorminhoco aqui não percebeu?”

Eu ia descendo a escada do trem quando de repente, vindo na minha direção, um enorme pastor alemão, seguro na rédea por um enorme guarda que apitava e urrava palavras ininteligíveis em alemão, mas com grande grau de agressividade.  Eu arregalei os olhos e gelei, subi correndo de volta para o trem, apavorado ante a possibilidade de ser mordido por aquela fera.

Mais um apito e mais um urro e outros guardas ferozes com seus pastores latindo apareceram.  Eu não estava entendo nada.  O primeiro guarda chegou até mim, me agarrou pelo colarinho e me fez descer a escada de volta, o pastor não parava de latir e eu não sabia o que fazer pois se ele solta o bicho, com os outros já chegando, eu viraria picadinho num instante.

Aquela cena simplesmente não combinava com o ocorrido apenas 30 minutos antes na estação.  Eu lá nos trilhos, sem uma plataforma, com guardas raivosos e, mais ainda, pastores alemães?  Onde estavam meus vizinhos de cabine simpáticos indo trabalhar?  Foi neste exato momento que eu me dei conta de que talvez, muito talvez, aquela idiota da bilheteira teria me sacaneado e me colocado em Berlin Oriental só para se divertir e rir às minhas custas com suas coleguinhas de campo de concentração?

Mas não, aquilo não era uma simples piada de mau gosto, era o mundo real mesmo e aqueles dentes afiados latindo no meu ouvido não eram imaginação não.  Não mesmo!  O guarda continuou me puxando pelo colarinho e me levou até uma casinha ao lado do trilho.  Uma casinha que eu supus fosse o local onde ficaria o chefe da guarda.  Eu poderia explicar a ele o mal entendido, com certeza.  Mas o chefe da guarda era o próprio guarda.  Ele mesmo, que me põe (na realidade me atira) numa cadeira, olha para mim com fogo saindo pelos olhos e diz simplesmente: “Passaporte”.  Em alemão.  Com sotaque nazista.  De operador de forno de incineração!

Eu entreguei e só consegui balbuciar: “Brasil,  Brasil”.  Ele arregalou os olhos como que dizendo – “Quem este espião americano pensa que quer enganar?”  Com meu passaporte na mão ele saiu e logo depois voltou com outro guarda, este claramente seu superior, pois não tinha nem apito nem pastor alemão à tiracolo.  Ele olhou longamente para mim, coçou o queixo e perguntou em alemão algo que eu não entendi.

“Brasil, Brasil” – eu insistia dizendo com gestos que queria ir a Copenhague.  Ele pareceu entender e finalmente sorriu.  Sorriu e disse, satisfeito da vida – “ Brasil, Pelé, Jairzinho, Rivelino, fuzbol”.  O cara adorava futebol, para sorte minha!  Eu continuei: “Gerson, Clodoaldo” e ele foi continuando “Zagalo, Carlos Alberto, Brito, Felix…” – o cara conhecia todos os jogadores do Brasil.  Até os reservas!

Com a empatia futebolística estabelecida não tive dificuldade em mostrar a ele o meu guia e a dizer que eu queria era ir para Copenhague, não invadir o país dele sem visto, onde já se viu espião americano tão amador?  O chefe então me fez entender por gestos que não tinha problema, às 6 horas da noite tinha um trem para Copenhague saindo de lá e eu podia ir conhecer a cidade, mas que não esquecesse de voltar no horário.  Eu dei um grande abraço nele; ele, claro, ficou meio sem jeito, mas retribuiu, sorriu, me devolveu o passaporte e me largou na estação.

-“Puxa vida, que sorte” – eu disse para mim mesmo – “Salvo pelo futebol”.

Saí da estação, era mais ou menos 1 hora da tarde, e pude andar, sem visto, “sem lenço nem documento” como dizia o Caetano, pela maravilhosa e estranhíssima Berlin Oriental.  Foi um tour a pé espetacular.  Primeiro, pude ver parques enormes, estátuas de Lenin

(“Ué, mas os russos não ganharam deles?”) em tudo quanto é lugar, buracos de balas em todas as paredes, cartazes gigantescos com a foice e o martelo em vermelho e um povo cabisbaixo, silencioso, muito diferente da vizinha de apenas 5 quarteirões de distância.

Foi minha primeira experiência com a vida num país comunista.  A vista era linda, tudo verde e varrido e sem poluição de carros, apenas um ou outro Trabant passando.  Mas o povo era triste, mais triste que o do lado de lá.  Talvez a ausência das cores das propagandas contribuísse para isso, a cidade era um pouco asséptica demais.  Não me lembro o que comi, deve ter sido o mesmo einsbein com chucrute, só que com menos opções de bebida.

Às 5 horas em ponto (com uma hora de antecedência para não correr riscos desnecessários)  já estava de volta à estação.  Cansado e feliz, muito feliz com a experiência: eu tinha conhecido Berlin Oriental!  Claro que de volta ao Brasil eu iria omitir esta história das autoridades.  Nunca se sabe…

***

Berlin, final da Copa do Mundo, 2006.  Nosso motor home estava cheio: eu, Eliana minha mulher, Marcos meu filho mais moço, Vivian minha futura nora, Laurent amigo do Marcos e no outro motor home Caio, meu outro filho e uma penca de amigos.  Fabio, o filho mais velho, tinha voltado ao Brasil, revoltado com o desempenho pífio do time.  Íamos como sempre parar num camping cuja reserva tínhamos feito ainda no Brasil, para não correr riscos, pois afinal Copa do Mundo é Copa do Mundo, com certeza estaria lotado e contrariamente ao Brasil, na Alemanha as regras são para valer.

Chegamos ao final da tarde, depois de muito procurar e errar.  Engraçada a Alemanha, há 35 anos ninguém falava inglês e o povo era todo cabisbaixo ou no mínimo quieto e carrancudo.  Hoje todo mundo fala inglês e o povo é mais solícito e simpático que o brasileiro, acredite se quiser.  Era um camping horroroso para dizer o mínimo.  Diferentemente dos camping verdadeiros, como no resto da Alemanha, situados ao lado de rios cristalinos ou parques maravilhosos ou mesmos castelos, em Berlin, devido à grande demanda por espaço, eles tinham improvisado locais para estacionamento que consistiam simplesmente num monte de areia jogada, em pontos de eletricidade instalados, em banheiros de conteiner, tudo isto em “locais abandonados”.  Não deu para ver que local abandonado era o nosso pois já estava ficando escuro, a final da Copa seria dois dias depois e nós iríamos aproveitar o tempo para fazer turismo.

De manhã bem cedo acordei, com o barulho dos suecos voltando de uma noitada, divertida pelo jeito.  O legal do motor home é que vem gente do mundo todo para assistir aos jogos e você acaba confraternizando com todas as raças pois o futebol realmente une.  Saí do motor home, cumprimentei os cambaleantes suecos, escovei os dentes no banheiro conteiner e comecei a perambular pelo camping enquanto a família e os amigos dormiam.  – “Curioso” – eu pensei – “Acho que já vi este lugar antes”.  Continuei andando e vendo as construções de tijolinho abandonadas, as árvores crescendo nos trilhos do trem (?) e uma porção de áreas envidraçadas curiosamente familiares.  “Meu Deus! Eu estou na estação de Berlin Oriental!!!”

E era mesmo, aquela mesma estação de 3 décadas e meia antes.  Testemunha de uma história que já acabou há tanto tempo que ninguém mais se lembra.  Meus filhos que estudaram no Porto Seguro (colégio fundado pela comunidade alemã de São Paulo) nem se lembram direito de terem aprendido sobre o comunismo, a guerra fria, as duas Alemanhas.  Que foram duas por 45 anos!  Mas o que são 45 anos em 2.000 anos de história?  No futuro, alíás, agora, isto não passa de uma nota de pé de página nos compêndios escolares.  Fiquei um tempão olhando, tentando achar o exato local em que desci em 1971 naquela gelada e ensolarada manhã: “Hoje estou de calção, sem camisa e de chinelo.  No mesmo lugar.  Que estranho.  Mas que sensação gostosa.  Deixa eu contar para Eliana e os meninos”.

Fabio Fonseca é empresário. Costuma ter muita sorte em suas viagens: depois do ocorrido em 1972, já encontrou Paul McCartney em pleno Taj Mahal, cruzou com a Rainha do Nepal poucos anos antes da carnificina real,  foi preso com a esposa em Kiev, subiu sozinho no elevador com Sean Connery em Beverly Hills, conversou com o Marajá de Udaipur em seu palácio, apresentou Fabio Assunção para sua mulher em Havana e não perde uma Copa do Mundo com a família desde a Itália em 1990.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>