Sobre a “maciça presença” do relativismo

Qual o oposto do relativismo? É difícil responder a essa pergunta, até porque não sabemos, sequer, o que é o relativismo. Dado que não existe uma autoridade jurídica que imponha que sentido deve ter esse termo, tentaríamos explicá-lo recorrendo a uma noção dicionarizada. O relativismo é o sistema de crenças segundo o qual não há verdade absoluta, mas apenas diferentes perspectivas com valor relativo. Para simplificar a questão, podemos nos ater ao aspecto ético. Nesse sentido é que Bento XVI registrou que “oggi un ostacolo particolarmente insidioso all’opera educativa è costituito dalla massiccia presenza, nella nostra società e cultura, di quel relativismo che, non riconoscendo nulla come definitivo, lascia come ultima misura solo il proprio io con le sue voglie” (Discurso de 6-VI-2005). Relativista é quem nada reconhece como definitivo, em poucas palavras. Deixo de lado a questão do “ego com os seus desejos”, embora seja ela também passível de crítica, porque usamos um círculo de temas que sempre depende da existência de um outro (mesmo que não seja uma pessoa).

Retomo a pergunta que aparece no início do parágrafo anterior. A resposta não é difícil. O oposto de nada reconhecer como definitivo é não ser o caso de nada se reconhecer como definitivo; um rearranjo da frase permite dizer que o não relativista é aquele que reconhece alguma coisa como definitiva (fora do próprio ego, numa tese lateral, mas compatível). No nosso sentido particular, um norte ético, um valor não negociável. Terei em vista a denúncia comum de que nossa sociedade e cultura são relativistas.

* * *

Será verdade, estabelecidas essas distinções mínimas, que vivemos em tempo de predominante relativismo? Vou propor uma tese um pouco polêmica. É possível que vivamos, ao contrário, em tempo de muitas teses definitivas fundadas em valores manifestamente absolutos.

Toda tese desse tipo sofre de um problema aparentemente grave. As fontes de que fazemos uso para afirmar o que e como pensam nossos contemporâneos são finitas, mas inabarcáveis. Eles expressam suas opiniões na rua, nos jornais, em casa. Existe um fosso enorme entre opiniões expressas publicamente e opiniões expressas em privado — e outro fosso, na verdade um gradual esburacamento, entre o que confessamos ao público, à família, a nós mesmos e a ninguém (nem a nós mesmos). Por isso, usarei como fonte uma entidade vaga, mas muito referida e influente, chamada ‘tendência da opinião pública’. Um exemplo: a tendência da opinião pública é claramente favorecer o aborto como prática legítima, ao menos em alguns casos. Pessoalmente, não creio que o aborto seja válido sequer no caso de estupro. Em todos os casos, abortar é, precisamente, matar um ser humano dentro do útero da sua uma mãe, e não há sutileza argumentativa capaz de dizer que A, sendo A diferente de B, é B. Se sou contrário ao assassinato, segue-se que sou contrário a toda ação cujo núcleo seja “matar alguém”, mesmo que esse alguém seja um feto, e mesmo que haja dúvida sobre a humanidade desse feto. Essa dúvida é razoável, e assassinar nunca é razoável. Quero crer que, não tendo respeitos humanos, não teria dificuldades em dizê-lo em público — tanto é que o estou dizendo agora. Mas não é assim que normalmente acontece. Há opiniões minhas que prefiro não compartilhar, seja porque não interessam ou não devem interessar a ninguém, seja porque não tenho segurança suficiente para as sustentar. E é até possível que as contrarie numa conversa, tornando o menos certo mais certo, ou vice-versa. Ninguém, absolutamente ninguém, tem controle preciso disso; a começar porque as inconsistências epistemológicas, especialmente em meios ‘fundamentalistas’ (cristãos ou não), são maiores do que em meios onde prevalecem opiniões mais porosas (porque quem afirma categoricamente A provoca um aumento drástico na probabilidade de que a negação de A venha a ser eventualmente sustentada, mesmo indiretamente, em outra ocasião, como consequência de alguma outra afirmação categórica B que também faça parte do meu conjunto de crenças expresso ou inconfessado). Desfaço-me de todos esses problemas dizendo, simplesmente, que tomo como fonte o que pensa publicamente o ocidental médio. Os meios de comunicação de massa facilitam o reforço de tendências, e todo mundo possui, mais ou menos, as mesmas opiniões públicas em estado de default. Quem não o percebe, ou está sendo demasiado criterioso com algo dificilmente cristalizável, ou tem dificuldade em captar teses vigentes.

Como são muitas as tendências em matéria ética, vamos escolher um só tema. Aleatoriamente, escolho o tema do valor dos animais e do seu sofrimento. Parece-me verdadeiro que a tendência é valorizar bastante o tema, embora em parte a visão de mundo de nossos antepassados — como, digamos, os do séc. XIX — esteja de acordo com ela.

As premissas da opinião pública a esse respeito são as seguintes:

(1) Os animais sofrem.

(2) Causar sofrimento nos animais sem motivo é imoral.

(3) Os que causam sofrimento nos animais sem motivo devem ser fortemente punidos.

Vamos colocar essas premissas 1-3 em conflito com o relativismo. Vamos lembrar que:

(4) Se A é relativista, A acredita que, para qualquer valor moral x escolhido ao acaso, x é relativo.

Creio que (4) seja consistente com o que dissemos nos primeiros parágrafos. A linguagem em que a proposição foi expressa não deve assustar o leitor: ela só pretende clarificar a proposição, i. e., torná-la mais exata e palpável, como o exige o cuidado filosófico mais elementar.

Vamos supor que as sentenças 1-3 são objeto da crença de Gaspar, um sujeito qualquer ocidental. Assim,

(5) Gaspar acredita que os animais sofrem, que causar-lhes sofrimento sem motivo é imoral, e que quem pratica esse tipo de tortura deve ser punido.

Nosso Gaspar é mais um entre meus contemporâneos. Como é uma premissa (aceita acima; mas se o leitor não a aceita, não é obrigado a ter por verdadeiras as consequências que virão abaixo) o fato de que Gaspar crê que a tendência da opinião pública, ao menos nesse ponto, está correta, e como também é uma premissa o fato de que o Ocidente contemporâneo, que inclui Gaspar, tende ao relativismo, então devo concluir:

(6) Gaspar é relativista e Gaspar acredita fortemente nas proposições (1) – (3).

Dizer que Gaspar é relativista não é bem um fato, mas uma atribuição de uma propriedade comum em dada época a uma pessoa escolhida ao acaso, fazendo-se uso da probabilidade. O leitor observador concordará que é bastante comum que uma pessoa escolhida ao acaso acredite em 1-3 e seja, como a opinião pública manda, relativista. Quase todo texto que leio sobre cultura, comportamento e sociedade ocidental, “às direitas e às esquerdas”, aceita ambas as premissas ao associar o relativismo à discussão sobre o sofrimento dos animais e ao dizer que o relativismo é uma tendência; ou que é uma “maciça presença na nossa sociedade e cultura”, como disse Bento XVI.

Não está previsto no Código Penal de 1940, nosso atual código, qualquer punição para a tortura dos animais. No contexto do legislador de 1940, se alguém matasse um cão, responderia possivelmente por crime de dano e, na esfera cível, teria de indenizar o seu dono. Animais eram tratados, juridicamente, como patrimônio, e não como sujeitos capazes de sofrer e de ser protegidos em si mesmos. Que alguém deva ser punido por fazer sofrer, sem motivo, um animal, implica uma mudança considerável (e efetivamente esta mudança está sendo introduzida na legislação penal, acompanhando um movimento que é, antes de mais nada, ético). Assim, são diferentes a opinião pública vigente nos anos 40 do século XX e a vigente na segunda década do século XXI. O acento, ao menos, é mais forte, hoje, nas proposições 1-3, do que era nos anos 40, considerada a opinião pública, e mesmo a opinião individual, familiar e privada, “inter amicos”. Um Gaspar dos anos 40, provavelmente, assumiria 1-3 com reservas, e talvez sequer excluiria a proposição (3), ou excluiria dela o advérbio de modo “fortemente”. Estatisticamente, e isso nada tem a ver com o que é certo e o que é errado, mais pessoas hoje do que nos anos 40 abraçam com convicção a proposição (3), e se comovem profundamente com o fato d qual (1) é a descrição.

Espero que tenha ficado claro, com o que disse, que o conjunto de crenças expresso por (1) a (3) convive tranquilamente, ou muito frequentemente, com a doutrina expressa por (4), o relativismo.

Voltemos a (6). Se Gaspar é relativista, e escolhemos, por exemplo, a proposição (3), ligando-a a um cão, temos a seguinte sentença (sim, já fiz uma confusão enorme entre ‘sentença’ e ‘proposição': o leitor me há de perdoar, sabendo que a distinção não é importante aqui):

(7) Gaspar acredita fortemente que quem faz o cão sofrer sem motivo deve ser punido e que o sofrimento do cão é um valor relativo.

É provável que, confrontado com (7), o nosso Gaspar médio diga: “ei, tem alguma coisa errada aí! Como assim, o sofrimento do cão é um valor relativo? Os cães não são coisas!” Se João tiver torturado um cão, dificilmente convenceremos Gaspar de que João estava apenas manifestando sua compreensível indiferença por esses animais. Para Gaspar, na verdade, nada justificaria a tortura do cão. A vida do animal é algo tão absoluto — ou seja, indiferente à sutileza dos pontos de vista relativos sobre o valor da sua vida — que quem a viola torpemente deve ser inclusive punido. Quando dizemos — e sempre tenho ouvido isso — que quem tortura um animal pratica uma torpeza, estamos dizendo que nada justifica a prática desse ato (lembre-se que torturar um animal é fazê-lo sofrer sem motivo!). Ou seja, que esse ato é absolutamente errado. Devemos concluir, então, que Gaspar tem crenças contraditórias. Confrontado, é bem provável que, ao menos nesse tema do sofrimento do cão, Gaspar se declare, ou melhor, seja obrigado a declarar-se não-relativista. E se os animais não são coisas, supõe-se também que as pessoas também não são.

E quem é não-relativista para um só valor x qualquer, não é relativista em nenhum sentido. Basta dizer que a sentença comumente aceita diz que A é relativista se, para qualquer valor (nesse caso, moral) arbitrário x, x é relativo. Se encontramos um só x que não seja um valor relativo, não podemos mais aplicar a propriedade ‘relativista’ a essa pessoa. Ao contrário do que diz o adágio popular, a exceção não confirma a regra: é um passo elementar da lógica de ginásio que a exceção prova que a regra é falsa. Gaspar escolhe: ou deixa o cão ser torturado impunemente, ou abdica do valioso título de relativista. E essa é uma consequência analiticamente necessária, quando usamos o sentido comum de relativismo. (O que vemos é que, logo, o confrontado se põe a torturar a lógica para se livrar dessas duras consequências.)

Escolher algum valor como absoluto não é simplesmente declará-lo absoluto. É agir como se ele fosse absoluto. A atitude de Gaspar diante dos animais é a mesma que a de um muçulmano convicto ou de uma feminista convicta diante de outras questões. Todos eles, Gaspar e seus colegas religiosos e feministas, agem com base numa valoração absoluta, e não relativa, de certos bens.

Convido o leitor a rever os passos e as premissas que aceitou, e a examinar se se deve concluir o que digo nos dois parágrafos seguintes.

Com isso procurei mostrar que só vivemos num tempo aparentemente relativista. Na verdade, nós e Gaspar, tanto os que se creem relativistas quanto os que não se creem relativistas, como eu, acreditamos fortemente (no sentido de Charles Taylor de strong belief), e absolutamente, em muitas coisas. O número enorme de pessoas que se incluem na posição de Gaspar não me deixa mentir. Eu, pessoalmente, nunca vi um relativista de facto. Os que defendem o aborto o defendem com unhas e dentes. Ateus não só desconfiam de Deus, como não querem que ele exista e não querem que ninguém se engane com essa crença absolutamente errada em sua opinião. Talvez sejamos até mais assertivos e mais favoráveis a valores absolutos que nossos antepassados. Que os valores defendidos sejam falsos (apenas aparentes) ou verdadeiros é outra questão. Parece-me mais adequado falar-se numa simples mudança parcial de valores, e não em relativismo.*

Talvez essa confusão toda é que tenha motivado Joseph Ratzinger, formidável intelectual,  a usar em outras ocasiões uma expressão tão contraditória, embora aparentemente verdadeira, como “a ditadura do relativismo”.** Porque, se estou correto,  não temos nem ditadura (porque ela pressupõe o uso efetivo da força) e nem relativismo. O fato de que alguns queiram que exista uma ditadura do relativismo apenas para que possam condená-la retoricamente — expediente comum dos puritanos e dos santarrões — não é capaz de criar a realidade da ditadura.

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* Uma nota biográfica. Quando morei numa antiga residência universitária em Munique, lugar que o famoso oponente de Habermas teria visitado muitos anos antes, quis desfazer essa dúvida conversando com pessoas próximas a ele. Um amigo meu que o conhecia bem me disse que, sendo contraditória a tese da “ditadura do relativismo” (e não é de uma análise superficial que falava), ainda assim fazia sentido como expediente retórico. A mim me parece que contradições não servem para nada. Existe claramente uma pressão (mas não coerção) para dizermos que (a) nada é moralmente verdadeiro, e simultaneamente que (b) algumas coisas são absolutamente verdadeiras em sentido moral, como o valor intrínseco dos animais e os sentimentos não-negociáveis da gestante diante de um feto indesejado. O fato de que essa posição preferencial seja contraditória não nos autoriza a usar uma expressão contraditória para a descrever e condenar. Nem se diga que o relativismo é a crença de que nada pode ser afirmado fora do campo científico, como ouvi em outra ocasião. Essa posição é a do cientificismo, que é incompatível com o relativismo (de todas as perspectivas possíveis, o cientificismo diz que apenas a científico-naturalista é verdadeira; logo, não é uma posição relativista). Condenações confusas são capazes de convencer apenas quem já estava convencido de antemão.

** Além disso, mesmo um antropólogo cético está autorizado a concluir, com base na comparação de centenas de culturas de todos os tipos, que há mais motivos para dizermos que existe uma ética comum do que afirmar, toscamente, que “tudo é relativo” (“The resemblances in ethical concepts so far outweight the differences that a sound basis for mutual understanding between groups of different cultures is already in existence“, escreveu R. Linton em An Anthropologist’s Approach to Ethical Principles, in H. G. Blocker (ed.), Ethics, an Introduction, New York, Haven, 1986, p. 98). Enquanto tentarem enfiar goela abaixo dos que se consideram relativistas uma visão de mundo factualmente dogmática, retórica e abusiva do slogan “eu sou careta mesmo”, ninguém se convencerá de nada. A apologética triunfalista só tem produzido ceticismo.

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33 comentários em “Sobre a “maciça presença” do relativismo

  1. Julio,

    O seu post é muito oportuno em vista da discussão no campo dos comentários do último post da Lorena no Ad Hominem, por isso me sinto muito interessado em comentar.

    Uma coisa que me chamou a atenção é que a sua conclusão de que o relativismo em qualquer sentido rigoroso não existe me parece ser a própria definição de relativismo: esse “-ismo” aponta claramente pra uma tendência e, neste caso, pra um tipo de vício que não pressupõe coerência mesmo. Até por isso me parece que ninguém se diz “relativista”, mas sim acusa o relativismo como um vício de outro (justamente o sentido retórico que você denuncia). Assim como acho que ninguém se diz “fundamentalista” nem “moralista”, porque são termos propriamente pejorativos, não são escolas ideológicas autolegitimadas.

    Mas mesmo os passos da sua contestação do relativismo me surpreenderam por parecerem, quase ironicamente, muito “absolutistas”. Você julga que a acusação de uma era relativista pressupõe um tal tipo de determinação que mesmo o enunciador dessa acusação estará se assumindo relativista, junto com toda a sua era generalizada. É como se alguém dissesse: “Vivemos em uma era secularizada” e isso significasse que o próprio enunciador se incluísse como um “secularizado” e que um único contra-exemplo (que era pra ser representado por ele próprio!) o condenasse a uma contradição irreconciliável. Mas não me parece sequer que o problema seja de falta de coerência ou de hipocrisia nesse tipo de acusação, e sim que obviamente esse tipo de diagnóstico ideológico não é uma operação lógica, determinista e absoluta – como mostram as suas justificativas muito trabalhosas no começo deste texto para poder tomar certa amostragem coletiva sem ser acusado de fazer uma generalização muito aleatória. Quer dizer, se alguém procura fazer o mesmo tipo de generalização que o seu texto se propôs a fazer conscientemente desde o começo, alguém mesmo assim pode apontar o dedo e dizer: “Ahá, então você também pode se incluir nessa generalização!”? Parece muito da patrulha antigeneralização, que absolutiza tudo o que não era suposto a ser absolutizado.

    E por fim, se a sua representação do relativismo foi muito absolutista para terminar concluindo apenas o que já era a sua verdadeira definição, também achei que o seu retrato do Gaspar, o suposto “objetivista”, foi um pouco caricatural: não sei se alguém que defende a vida de um animal e acusa a cultura de ser relativista precisa considerar a vida desse animal um valor absoluto e inegociável. Aliás, acho que é possível que uma pessoa defenda a ética mesmo sem acreditar em valores absolutos: alguém simplesmente pode julgar quase consensual e deliberativo que a defesa da vida e da manutenção da convivência coletiva seja um interesse suficientemente oportuno a ser defendido, e que isso baste pra defender o que se refere como “bem” tomando-se esse critério. Mas no caso do Gaspar, é quase como a velha pegadinha da defesa da verdade: se você acredita e defende a verdade e a conduta de dizer a verdade, você também é a favor de entregar um amigo que esteja escondido de um assassino caso o assassino lhe pergunte onde o seu amigo está? É um tipo de operação lógica incompatível e desnecessária com esse tipo de valores. Mas com relação à defesa da vida animal: não é que a vida animal tenha que ser algo absoluto pra quem a defenda e acuse a cultura de ser relativista, talvez algo ainda transcendente é que seja objetivo a essa pessoa e envolva essa defesa como consequência. Talvez essa pessoa acredite na objetividade do bem, do amor, do compromisso ético, etc., etc., etc. e que isso, sendo anterior a discussões epistemológicas em si, não interfira nas discussões que nós temos sobre o que possa nos parecer correto ou errado e que podem inclusive variar historicamente, como você pretendeu mostrar.

    De resto, lembro que eu mesmo, como tendo feito essa acusação do relativismo em outro lugar, não pensava em uma condenação do nosso tempo e uma glorificação de um passado em que não vivi. Pensava antes na capacidade de se desconstruir coisas que, em um momento histórico imediatamente anterior, claramente não eram desconstruídas – basta ver o que se chama de pós-modernidade, etc.

  2. Leonardo, a base do meu post é uma experiência e uma preocupação com a precisão.

    A experiência é a seguinte: muitos se dizem relativistas. Não é uma caricatura; essa posição é defendida tanto na rua quanto nas academias. Quando alguém diz que “tudo é relativo”, que “não há verdade [moral]”, que portanto “nada é absoluto”, automaticamente tudo o que disser terá de ser confrontado com essa declaração sobre a própria posição. Minha tese é que esse confronto não é considerado quando acusamos a sociedade de ser relativista. Pouco importa o termo, porque a posição relativista é muito clara, apesar de difícil de ocorrer, a ferro e fogo, na prática (o que pouca gente percebe). Ocorre que Gaspar se declara relativista e ao mesmo tempo age como se houvessem valores absolutos. Ele não está disposto a conceder que a sua mãe só vale enquanto perspectiva axiológica, porque se algo colocar a sua mãe em perigo, Gaspar adotará uma atitude que é exatamente a atitude de quem acredita em valores absolutos: defesa incondicional. A atitude de Gaspar, na minha tese, é a mesma atitude de um religioso diante dos valores morais dentro do seu contexto. Não são as declarações, apenas, como pregação de missa de domingo, que dizem qual é nossa posição, mas a conformação entre declaração e ação concreta. Se você não teve a experiência dessa posição e e dessas atitudes, é difícil fazer um juízo de adequação. Por isso ofereci algumas premissas, que se pode aceitar ou não.

    A preocupação com o rigor se expressa no seguinte ponto: o uso de palavras com sentido pressupõe um comprometimento. Não posso dizer: “isso é relativismo” à toa. Preciso mostrar a que isso se refere. Pretendi demonstrar que o uso da palavra para se referir ao problema encontra obstáculos: é provável que o problema sequer exista, e que o uso da expressão seja contraditório. Se não tem lógica — e dizer ‘relativismo’ para se referir a posições cheias de atitudes claramente pautadas em valores não negociáveis não tem lógica alguma –, não passa por um teste mínimo de racionalidade.

  3. Julio,

    O que eu entendo que você diz é que se nós generalizarmos o relativismo, Gaspar – por mais que ele próprio afirme coisas relativistas – será um contraexemplo que contestará a premissa de que:

    “(4) Se A é relativista, A acredita que, para qualquer valor moral x escolhido ao acaso, x é relativo”.

    …pois ele mesmo não escapa à crença em absolutos. Portanto não haveria relativismo para sobreviver e a que pudéssemos nos referir de verdade, porque Gaspar mesmo trai esse diagnóstico, por mais que ele fosse desejável aos seus acusadores ou até pelo próprio Gaspar em certo sentido.

    Só que o que eu estou dizendo é que o próprio Gaspar é um típico relativista na definição mesma de relativismo. O termo é, sim, importante porque você propõe questionar que possamos enunciar tempos predominantemente “relativistas”. E para isso você inicia tratando o relativismo como algo a ser observado em absoluto (vide (4) acima), e termina concluindo que se trata de algo retórico. Mas não creio que o relativismo jamais tenha sido outra coisa senão o que você mesmo conclui (só que isso justamente afirma a sua existência, não a elimina, como você pretende). Nesse sentido, não por acaso o relativismo é como as falácias: não é porque a inconsistência de uma falácia a invalida que ela não existe e que não possamos falar dela. No caso do relativismo, continuamos podendo nos referir a ele. Por exemplo: se Gaspar diz que “Vai Lacraia” pode ser tão belo quanto os quartetos de Beethoven porque a qualidade mesma de belo depende do apreciador, isso é uma afirmação relativista, trata-se do relativismo pronto para ser referido enquanto tal. Que Gaspar disfarce uma suposta descrença na verdade apenas acreditando nos seus próprios interesses é justamente a contradição que o termo “relativismo”, pejorativo por excelência, denuncia.

    Quanto ao que me pareceu caricatural, não foi a sua crítica ao relativismo, que é válida, nem o seu cuidado no começo do texto, a que me referi apenas para mostrar como o assunto pede mais do que um tratamento determinista. O que me pareceu caricatural foi na verdade o seu retrato da crença no absoluto usando o lado mais biofílico do Gaspar – já que de certa forma, ao dizer que nosso tempo não pode ser acusado de ser predominantemente relativista, você diz que vivemos tempos de muitas teses absolutas. Mas isso seria de fato outro exemplo pra nos concentrarmos.

  4. Leonardo, acho que seu comentário procede, com excelentes pontos.

    Só penso que prevalece a necessidade de se observar com cuidado o uso do termo ‘relativismo’, que não é nada pejorativo, ao contrário do que você diz. Um relativista não pode prestar assentimento a nenhuma declaração de preferência por algum valor com base ‘vital’ ou natural, e que esteja acompanhada (ou seja implicada por) de uma atitude de defesa necessária do valor correspondente (como a atitude de Gaspar com os animais e sua mãe). Portanto Gaspar só se declara relativista, porque mesmo no plano teórico ele não consegue ver as consequências, e muito menos agir de acordo. E isso não é relativismo. Exemplo de relativista consequente, ao menos no plano teórico, é Stanley Fish, teórico norte-americano, e mesmo, no lado continental, Derrida, Baudrillard, Paul DeMan e outros menores; às teorias deles corresponde uma prática moral, que é praticamente impossível (na hora do vamos ver todo mundo defende a mãe como valor absoluto). A qualidade de uma obra de arte depender do apreciador não é necessariamente uma doutrina relativista. Até Tomas de Aquino defende isso, segundo Pieper, com sutilezas mil. Em geral, a ética de Aristóteles me parece ‘circunstancialista’, como seus comentadores costumam dizer, mais do que informada por princípios, como a ética kantiana — essa sim, universalista. E por aí vai.

    O fato é que dizer que nosso tempo é relativista, além de não dizer nada de muito preciso, é de uma falsidade manifesta. As pessoas que conhecemos defendem teses, dentro e fora do espaço público, com unhas e dentes. E isso é o contrário do relativismo. É só isso o que quis apontar.

  5. Em relação a si próprio, pensando no que é prioritário para si, ninguem é relativista. É um truísmo. O contrario do relativismo é o perenialismo, por mais que seja considerado ridículo.
    É. A esquerda venceu.

  6. O contrário do relativismo é o universalismo, em ética. O perenialismo é uma curiosidade histórica. E a tal ‘esquerda’, mesmo que nada tenha que ver com o assunto aqui, não venceu de maneira alguma. Suponha que a esquerda seja relativista. Meu post mostra — se estiver certo — que o relativismo genuíno é um fenômeno raro, porque quase sempre os indivíduos, mesmo os que se consideram ‘amorais’, possuem valores e os defendem ativamente.

  7. Julio,

    É mesmo, se fala em relativismo em filosofia de maneira particular também. Mas o problema a que tenho chamado a atenção é que sob esse tipo de escrutínio nenhuma tese sobreviveria. Acho que o fato do texto ter se referido a um indivíduo, ao invés de a um argumento ou a uma ideia, evidencia isso: nem o relativismo nem o universalismo ou qualquer -ismo estaria isento de contraexemplos tomando-se a conduta de indivíduos ou uma amostragem abrangente suposta a ser conferida em absoluto. Grave todas as coisas que uma pessoa fala durante todo um dia, e muitas coisas contradirão outras, o que apenas mostra que o desempenho da realidade é múltiplo e paradoxal. No caso do relativismo, se ele fosse suposto a ser entendido conforme o que você exige dele de início, nem mesmo o termo poderia existir! Já que o que ele subentenderia seria impossível por definição. Por isso o ajuste de conceito é inevitável, pra que a própria linguagem funcione em um nível mínimo.

    Por isso digo que é possível diagnosticarmos um relativismo em nosso tempo, no sentido de vermos o uso de argumentos e crenças relativas, que concebem “verdades” que não se excluem, mas isso como um pólo de tendências, naturalmente. É verdade, como no exemplo que dei, que o reconhecimento da subjetividade na concepção do belo pode não garantir um argumento relativista em si – da mesma forma eu não pude deixar de pensar que não é preciso crer no absoluto pra se acreditar na ética quando comentei da primeira vez. Mas ainda assim há argumentos em que conseguimos reconhecer um eixo relativista, e o critério de um valor deixado à mercê da subjetividade sem qualquer complementariedade me parece um exemplo relativista pleno, possível de verificarmos nessa qualidade enquanto argumento.

    Pra se dizer que é impossível diagnosticarmos o relativismo em nosso tempo, como o texto diz, seria preciso pressupor que esse diagnóstico faz essa mesma generalização absoluta que o texto coloca à prova desde o início, mas acho que ninguém quer dizer isso quando descreve a tendência relativista do nosso tempo. Isso seria a tal patrulha antigeneralista, que aplica uma generalização em absoluto para contestar o seu sentido.

    E ainda sobre a crítica ao relativismo: eu concordo plenamente com a crítica que o texto oferece, mas acho até que, caso descontemos que o texto talvez ofereça um escrutínio muito “absolutista” e muito pessoal ao exigir uma tese representada irrevogavelmente por uma pessoa (o Gaspar), há até outros problemas mais oportunos pra se apontar no relativismo. Creio que o fato do relativismo se propor a relativizar o estabelecimento de paradigmas, mas ao mesmo tempo precisar se posicionar a partir de certo paradigma pra afirmar o que quer que seja, é a contradição mais séria que ele tem que resolver – já que ele precisaria excetuar a si mesmo pra afirmar o seu próprio relativismo!

    Mas no todo, acho que eu só tenho a ressalva mais pontual sobre considerar possível o diagnóstico do relativismo no nosso tempo – o resto é mais uma discussão pra aprimorarmos as ideias.

  8. Leo, só uma coisa me parece que lhe escapou, e na qual tenho insistido: o relativismo é diferente de outras posições éticas porque seus contraexemplos são praticamente a regra, em virtude de uma incapacidade de explicar, em termos simples (ou seja, aproveitáveis para as massas e para a opinião pública), por que escolhermos certos bens e não outros. A minha exposição soa drástica porque é mais exata do que precisava ser; se poucas teses sobreviveriam a ela, ainda há que ver quais resistiriam melhor. A sociedade britânica, por exemplo, é predominantemente utilitarista. Eu encontro muitos contraexemplos, mas não o suficiente para dizer que não há utilitarismo, praticamente, em UK — isso seria absurdo. Um utilitarista diz que existem valores, tende a dizer que não são absolutos, mas não diz que não existam critérios válidos e racionais de escolha; o relativista (como Stanley Fish) nega tudo isso com uma sofisticação inacessível para o João da esquina, e mesmo para filósofos sem muito treino. Eu posso surpreender um utilitarista dizendo que ele não percebe que considera certos bens como absolutos, aplicando a mesma crítica que apliquei ao relativismo; mas ainda sobra alguma coisa de interessante na sua teoria e na sua prática, como o critério de maximização da utilidade (afinal de contas, quase nenhuma teoria ética nega a existência dos bens úteis). O utilitarismo explica melhor a atuação dos agentes econômicos do que, por exemplo, a ética das virtudes. Por isso encontro cidadãos razoavelmente acomodados numa posição utilitarista, com alguma coerência entre assentimento e ação. Minha crítica não pode se aplicar, sem muitos reparos, a outras posições em ética. Dizer que a sociedade britânica, ou qualquer outra, é predominantemente relativista, embora isso deixe contentes outsiders como Stanley Fish (e quem mais?), é de uma imprecisão intolerável.

    P.S. A minha crítica não é novidade. O artigo sobre relativismo da Stanford elenca, entre as objeções, a seguinte:

    “Relativistic claims often sound better in the abstract than they do when we get down to cases (a point that made an unusual appearance in the public press in 1996 with the Sokal hoax).When we turn to concrete examples, extreme relativistic claims are often not at all true to experience. No one really supposes that a postmodernist witness can justify his testimony, come what may, that he saw Jones commit the murder on the grounds that everything is a social construction and this is just how he constructs things. Indeed, our belief that such practices are unacceptable is much stronger than our beliefs in most of the premises used in arguments for stronger versions of relativism.”

    Essa objeção dificilmente se aplica a qualquer outra posição ética.

  9. Hmmm, isso especifica mais a discussão no campo da ética então, e aí o exemplo prático do sujeito ao invés da ideia ou do argumento isolado faz mais sentido.

    De fato, relativismo não parece resistir a exemplos extremos na prática – ainda há quem aponte pra variantes antropológicas e históricas pra desconstruir a ética, mas ninguém consegue se afastar de verdade das crenças que adota dentro dela. (No melhor dos casos relativistas, aponta-se a ética como relativa também à natureza humana – com seu repertório de valores vindo dos “instintos” -, o que poderia conferir à ética certa estabilidade debaixo de suas variações sociais, mas sem deixar de se tentar vê-la de maneira relativista).

    Como um diagnóstico geral do relativismo ao nosso tempo, consigo pensar em mais exemplos morais do que éticos de fato, e acho que por isso é que o seu contraexemplo me pareceu um tratamento radical. Mas resta pensarmos se esse diagnóstico do relativismo ao nosso tempo precisa ser entendido em relação especificamente ao fundamento ético das pessoas ou se em relação à disposição para a legitimação de uma pluralidade de verdades e paradigmas, à tendência para a desconstrução, etc., etc.

  10. Isso, Leo. No texto mesmo eu anuncio que falarei de relativismo em sentido restrito, em ética. Sobre seu último parágrafo, acredito que nesse segundo sentido se possa dizer que o relativismo tem certa influência — uma tentativa de legitimar um pluralismo radical, etc. Se entramos nesse assunto, aí valem todas as objeções — esmagadoras — contra o modo teórico pós-moderno de pensar. (Derrida foi exato ao dizer que, matando o logos, que era o objetivo do desconstrucionismo, matávamos Deus, a razão, a possibilidade de legitimação, a racionalidade, o sentido, a história, etc. Mas o que é que fica? Nada.) Mas aí é fácil demais. Não gostaria de perder tempo chutando cachorro morto… Já dizia o Christian Clemente: “profissão: iconoclasta de ícones já quebrados”. Taí uma profissão indesejável.

  11. “A mim me parece que contradições não servem para nada.”

    Pô, Júlio. E “quem quiser salvar sua alma terá de perdê-la, e quem quiser perdê-la terá de salvá-la”?

    E “amor é fogo que arde sem se ver etc.”?

    As contradições – em termos, é claro – servem para dar força a uma mensagem, não?

  12. Pedrão, em poesia a contradição aparente é bela, se bem utilizada (ainda que irrite bastante, mesmo na poesia barroca de hoje e de ontem). Contradição aparente, veja bem.

    A segunda parte do “quem quiser salvar a sua alma, etc” eu não conhecia. Não existe em nenhuma versão da Bíblia, tio. De qualquer forma, a passagem não é uma contradição. A rigor, nenhuma contradição serve — em poesia e em textos espirituais, ela só aparece no nível da linguagem natural, mas nunca no logos, a não ser que você seja budista. Vamos pensar nessa frase: quem quiser salvar a sua alma, terá de perdê-la. Ora, perder a alma é não ter mais alma. E não é isso o que se está dizendo. A função real da metáfora “perder a alma” é colocar a vida a serviço do Reino, etc. Portanto não há contradição alguma.

    Em filosofia ou qualquer discurso racional, a contradição deve ser evitada a todo custo, pois “ex contradictione quodlibet”, do falso se segue qualquer coisa. É uma catástrofe para qualquer um, porque ela inutiliza completamente a mensagem.

  13. Isso é interessante, às vezes a poesia parece usar a contradição de termos pra que talvez o seu choque revogue a racionalidade discursiva e atinja o leitor de modo mais subjetivo, estético, etc. Como Anacreonte dizendo: “amo e não amo, enlouqueço e não enlouqueço”, que Catulo renderia como “amo e odeio”. Ou geralmente as descrições do amor na poesia do renascimento. Talvez como se na transgressão dos limites da linguagem conceitual a poesia quisesse incorporar um sentido que justamente transcende essa linguagem.

  14. Julio, a segunda parte tem em qualquer Bíblia, embora em algumas traduções conste ‘vida’ (nas duas partes) ao invés de alma. Mas concordo com você: só contradição no plano da linguagem.

  15. Creio que seja essa, Marcos: ὃς γὰρ ἐὰν θέλῃ τὴν ψυχὴν αὐτοῦ σῶσαι ἀπολέσει αὐτήν: ὃς δ’ ἂν ἀπολέσῃ τὴν ψυχὴν αὐτοῦ ἕνεκεν ἐμοῦ εὑρήσει αὐτήν (Mat. 16:25; vulgata: qui enim voluerit animam suam salvam facere perdet eam qui autem perdiderit animam suam propter me inveniet eam). A trad. de S. Jerônimo, como sempre, é perfeitamente kata poda. O que confunde na citação do Pedro — “quem quiser salvar sua alma terá de perdê-la, e quem quiser perdê-la terá de salvá-la” — é que ela não captura, nem de longe, a lição mais básica do texto fixado, porque omite o ἕνεκεν ἐμοῦ, “por minha causa”, e dele diverge em todos os sentidos: na verdade, o texto diz “quem perder a sua alma por minha causa, encontra-la-á” na segunda parte. Então não existe nenhuma contradição, mas apenas o uso de uma metáfora com hipérbole (o que é característico da retórica, no bom sentido, espiritual).

  16. O cientifiscmo é relativista porque a verdade científica é temporária. Agora podemos comer ovos e barras de chocolote, por exemplo, porque pesquisas recentes na Suécia provaram que o hábito de comer chocolate previne o derrame derebrla (ufa).

  17. Sim, JV, o cientificismo de banca de jornal é relativista, na prática; porque quem lê as manchetes não encontra nenhum critério racional, fora o “cientistas dizem que…”. Mas não foi isso o que eu disse.

  18. O correto, creio, é ‘cientificismo’, que se define como a busca da verdade exclusivamente pelo método científico.

  19. Julio, em que sentido você fala em verdade? Ou melhor, primeiro, você “crê” que a ciência possa nos mostrar a verdade?, e segundo, em caso positivo, em que sentido você falaria de uma verdade cientifica?
    Falo isso pensando lá atrás no Parmênides de Platão e na sua análise do um (ser uno) como realidade integralmente plena que poderia ser alcançada pelo pensamento, ideia esta que penso era a do Parmênides histórico, mas que acabou sendo rechaçada por Platão.
    A verdade, mesmo a científica, não seria no fundo esta busca pela plenitude do ser, a qual, está irremediavelmente fora do alcance humano (mesmo pela razão), por conta da linguagem e da distância que ela impõe para o homem em relação ao ser (objeto). Para que pudéssemos alcançar a verdade do ser não teríamos que romper essa distancia “absorvendo” de alguma forma o objeto de conhecimento, algo penso eu absurdo?
    Neste sentido, a ciência não se basearia sempre em ínfimas partes da realidade que nunca disponibilizariam a verdade?

  20. Julio, você “crê” ser possível encontrar verdade pelo método cientifico?
    Falo isso pensando lá atrás no Parmênides de Platão e na sua análise do um (ser uno) enquanto realidade plena que poderia ser conhecida pelo homem, ideia esta que penso era a do Parmênides histórico, mas que acabou por ser rechaçada por Platão.
    O conhecimento pleno (verdade) de um objeto não fica condenado pela linguagem (mesmo se entendida como logos) por conta da distância que ela impõe ao homem em relação ao ser (objeto)?
    Imagino que você me responderia que a lógica pode fornecer esquemas que nos livrariam das limitações da linguagem. Contudo, mesmo a lógica, ainda que forneça esquemas em acordo com a realidade, não nos forneceria apenas uma parte da realidade, e não a verdade plena? Esta verdade absoluta que estou pensando realmente é impossível para nós e a verdade científica que você afirmou se dá de outra forma? A ciência não nos fornece apenas “fatias” da realidade?

  21. Arnaldo, você fez excelentes perguntas, mas responder bem a cada uma delas levaria muito tempo, e nem sei se obteríamos algo de útil. Não vejo como minha opinião possa interessar, mas vamos lá. Vou ser vulgar e sintético.

    1. Sim, o método científico permite encontrar a verdade, ou seja, aferir com certa exatidão o valor de verdade de proposições empíricas como “a velocidade da partícula tal no meio tal sob essas e aquelas circunstâncias é tanto”; “as condições iniciais do universo eram provavelmente tais”. Essas proposições podem ser realmente complexas, e muitas vezes sua matéria se confunde com assuntos que antes eram propriedade dos filósofos (a cosmologia contemporânea é uma mistura de ciência e filosofia; e às vezes não é sequer bem vista pelos cientistas). Dada a limitação de nossas faculdades cognitivas e dos instrumentos técnicos (que ampliam essas faculdades), nunca poderemos saber tudo.

    2. A linguagem não é um obstáculo, e muito menos um sistema, mas um meio. Toda a ciência está expressa por meio de uma linguagem. Se não há outra saída, não faz sentido reclamar das suas limitações. Sobre sua frase: “a lógica pode fornecer esquemas que nos livrariam das limitações da linguagem”, isso é só em parte verdadeiro. Onde é possível, a formalização da linguagem natural nos livra de imprecisões. Basta ler manchetes de jornal e prestar atenção às conversas, e mesmo aos discursos de cientistas: o tempo todo são (e somos) ambíguos e, quando a conversa fica séria, isso é uma catástrofe. Por isso Frege inventou a sua Begriffsschrift ou ‘conceitografia’, que marca o início da lógica moderna: para se desfazer de uma vez por todas das imprecisões inevitáveis da linguagem natural em estado bruto. Mas há uma boa revolta da linguagem natural, que é mais imprecisa, mas em compensação muito mais rica. A própria lógica só se desenvolveu quando percebemos que o silogismo aristotélico era brincadeira de criança se comparado ao que era realmente demandado do raciocínio em ciência e filosofia, algo que Aristóteles, os medievais e Leibniz intuíram toscamente, mas que não conseguiram desenvolver satisfatoriamente. Pode-se dizer que não tínhamos, antes de Frege, um instrumental sofisticado o suficiente para mostrar o que acontece quando concluímos algo mais complicado, especialmente em matemática (a lógica aristotélica não consegue lidar, a rigor, nem com a aritmética).

    3. A lógica permite explicitar inferências a partir de premissas — e isso vai do simples silogismo aristotélico às deduções em sistemas epistêmicos, modais, deônticos, relevantes, temporais, etc, que constituem as lógicas sintatica- e semanticamente estendidas –, mas não diz nada a respeito dos fatos (sejam quais forem esses fatos). O lógico vê a realidade das proposições com um microscópio. Às vezes vê mais, às vezes menos que o cidadão comum. Mas o mínimo domínio da lógica permite, na pior das hipóteses, não dar ouvidos à confusão e a essa espécie de mística da linguagem em que se meteram tantos pensadores desde os anos 30 do século passado.

    4. A ciência nos fornece fatias da realidade. A unidade, seja por ficção, seja de modo bem fundado, nos é dada por outras instâncias: pela ética, pela religião, e até, com muitas ressalvas, pela filosofia. E ninguém que seja racional vai querer abdicar da sua sanidade e pensar que atingirá diretamente a verdade absoluta. Isso, até os mais místicos tendem a afastar com cautela. Mas, óbvio, há uma turma de loucos que diz que a filosofia (que não traz, a rigor, nenhum conhecimento especial sobre o mundo, e absolutamente nenhum conhecimento empírico) permite contemplar diretamente a verdade. Esse platonismo enlouquecido já fez muitas vítimas. Mas, veja: dentro do que é possível, todos buscam a verdade, mesmo os que negam essa finalidade. Não vejo muito sentido nessa obsessão com a verdade absoluta, que é comum aos niilistas e aos platônicos a que me referi.

  22. Julio,

    A expressão “ditadura do relativismo” não explicita exatamente essa contradição do autodenominado relativista? Isto é, ela não ‘acusa’ essa contradição dos que querem combater valores morais tradicionais com o uso do “relativismo?

    Se sim, ela não tem uma validade e ‘utilidade’ enorme?

  23. Wagner, até onde eu sei, não existe uma ditadura do relativismo por dois motivos: 1) não se trata de uma ditadura, nem no sentido mais largo do termo, porque não existe coação, nem física, nem moral, que dirá policial (e toda ditadura, mesmo ‘metafórica’,* coage nesses três sentidos, ou ao menos em alguns deles); 2) sendo uma impossibilidade prática, e sendo pouco defendido explicitamente, o relativismo não é perigoso a não ser para si mesmo. Portanto me parece inútil, e até equivocado, combater o relativismo com a expressão ‘ditadura do relativismo’. Escolas de pensamento mal fundamentadas não sobrevivem. Por fim, um equívoco não justifica outro (e uma contradição não justifica outra). Não concorda comigo? Veja, estou analisando os méritos da expressão por si própria e pelo seu contexto intelectual imediato. Não considero, aqui, o programa pastoral ou assuntos semelhantes.

    * Só se você considerar que a moda, por ditar tendências, é uma ditadura (daí a expressão equívoca “ditadura da moda”). Conhece alguém concretamente oprimido, coagido moral, fisica ou policialmente pela moda? Se houver, o problema é mais do indivíduo, por fraqueza moral e paranoia, que da moda. O mesmo vale para o relativismo.

  24. Julio,
    Antes de mais nada, eu postei 02 comentários mas era somente 01. É que achei que havia ocorrido algum erro e o meu primeiro comentário não havia sido salvo.

    Eu falei de verdade tendendo para aquele absolutismo unitário eleata mas minha intenção era realmente falar das verdade, ainda que pequenas, da ciência.
    Só mais uma coisa rápida: se entendermos o objetivo da ciência como a aferição de valores de verdade com base em experimentos baseadas em proposições empíricas, não estaremos nos afastando da lógica, entendendo-a como você disse inferência de premissas?
    Ou a melhor forma de ligar o método científico e a lógica seria justamente identificar as proposições empíricas às premissas lógicas?

    Agradeço a atenção.

  25. Arnaldo, tive alguma dificuldade para compreender a sua pergunta, mas vamos lá: “se entendermos o objetivo da ciência como a aferição de valores de verdade com base em experimentos baseadas em proposições empíricas, não estaremos nos afastando da lógica, entendendo-a como você disse inferência de premissas?”

    Vamos pensar num exemplo. Suponha que alguém diga: “a distância entre a Terra e o Sol é de 100 milhões de quilômetros”. Eu vou lá e uso a ténica testada para aferição da distância d(T,S) e obtenho o valor: 150 milhões de quilômetros. A ciência (embora aqui, por simplicidade, se trata apenas de uma técnica) permitiu, com o uso de um instrumento e de algumas fórmulas, dizer que d(T,S) = 100.000.000 km é uma proposição [contingentemente, diria um filósofo] falsa, e que d(T,S) = 150.000.000 km é uma proposição [contingentemente] verdadeira. A lógica tem alguma influência direta nesse resultado empírico? Não. A lógica usa uma valoração v(d(T,S) = 100.000.000 k) = Falso e v(d(T,S) = 150.000.000 km) = Verdadeiro como premissas na hora de provar alguma conclusão; por exemplo que, se a distância entre o Sol e a Terra é maior do que 100.000.000 km, então é possível que d(T,S) < 110.000.000 km e, conjuntamente, é impossível que d(T,S) = 99.000.000 km. A ciência dá as premissas e a lógica diz o que é possível e o que não é possível concluir, e o que é necessário concluir e o que é contingente, o que foi deduzido corretamente e o que não foi, etc. O exemplo pode parecer complicado, mas é a coisa mais trivial do mundo. Por isso, dizer que a ciência trabalha com experimentos e a lógica com inferências necessárias, dadas premissas fornecidas por qualquer área (não só pela ciência), não significa afirmar que estamos, com a ciência, nos afastando da lógica. É que cada um tem o seu âmbito, o seu objeto material e formal. A lógica é o âmbito mais neutro que se pode imaginar. Até a matemática é menos ‘neutra’, por assim dizer, que a lógica, porque às vezes faz uso de postulados não-lógicos, como o da infinitude (pressupondo que os objetos do mundo possuem uma propriedade que a lógica não pode assumir como sendo lógica, meramente formal ou, mais tecnicamente, invariável sob permutação). Por fim: “Ou a melhor forma de ligar o método científico e a lógica seria justamente identificar as proposições empíricas às premissas lógicas?” De modo algum! É até difícil dizer o que seria uma premissa lógica. A rigor seria uma proposição necessária ou tautológica, como “ou chove agora ou não chove em tais e tais coordenadas”. É possível transformar todas as proposições empíricas em proposições necessárias; mas sabe o que ocorreria? Tudo o que acontece e acontecerá seria logicamente necessário, e teríamos um problema sério filosófico para resolver. Lógica e ciência andam juntas assim: a ciência dá as premissas e a lógica diz o que é correto concluir.

  26. Julio,

    Segundo o Houaiss, ditadura, em sentido figurado, pode ser entendida como “excesso de autoritarismo ou tirania”. Você pensa que é contraditória a expressão, por exemplo, “tirania paterna”?

    E creio, sim, que haja coação moral impetrada pelos áulicos do relativismo (que me parece algo intrinsecamente contraditório) via um “patrulhamento ideológico” através da mídia, da academia, etc. Uma espécie de “bullying” social.

    Pessoas com a estatura moral e intelectual como a sua certamente não se curvam diante disso, mas tenha certeza que você está mais para as exceções do que para a regra.

  27. Wagner, estamos em terreno perigoso, onde costumamos ser flexíveis diante de amigos ideológicos e inflexíveis quando o inimigo está em jogo. Lembro-me do caso das jogadoras de vôlei que rezaram em agradecimento pelo título. Um ateu reclamou, dizendo que se tratava de uma coação moral* exercida sobre as jogadoras que não quisessem rezar. Eu creio que não tem razão o nosso ateu, porque reza quem quer. Existe uma coaçãozinha? Existe. Mas isso não pode ser entendido como ‘bullying social’ ou tirania ou ditadura ou o que seja. Isso é um exagero que cristãos e ateus cometem o tempo todo. Os primeiros dizem que são coagidos a não manifestarem suas crenças em ambiente público. Os segundos, que se sentem coagidos pelos cristãos a esconderem a sua crença ateia, etc. Você acha que existe “excesso de autoritarismo ou tirania” no caso do relativismo? Isso é um exagero grotesco. Aliás, as pessoas aprendem a pensar indo na contramão. Essa “via de mão única” que costuma reinar — minha tese é que o relativismo não é dominante, mas suponha que seja — é só um parâmetro tosco lançado espontaneamente pela opinião pública, que se dissolve com a argumentação.

    Penso que é inadequada a expressão “tirania paterna” quando o pai não é excessivamente autoritário, ou seja, nos casos normais; mas creio que ela seja adequada quando o pai usa de coação moral — intimidação — ilegítima ou física. Alguém já sofreu coação moral ilegítima ou física por não ser relativista? Essa sensibilidade extrema é comparável à dos ateus, ao reclamarem das jogadoras por terem ‘coagido’ a pobre colega de time a rezar.

    Não podemos usar dois pesos e duas medidas. Esse é um dos flagelos da direita no Brasil, que imita com perfeição o fanatismo da outra facção. A direita faz patrulhamento ideológico o tempo todo, quando se sente confiante e rodeada de pessoas que pensam de modo semelhante. E não existe pensamento autêntico nesse ambiente.

    * Estou usando o sentido mais preciso de ‘coação’ do direito civil, que você parece também ter compreendido e utilizado: constrangimento físico ou moral.

  28. Julio,

    Entendo o seu ponto, mas ainda me parece que ele tem apenas “pessoas bem-pensantes” como parâmetro ou métrica.

    Não é fácil para o “comum dos mortais” suportar a pecha (coação moral ou ‘bullying social’) de retrógrado, ‘medieval’, fanático, fundamentalista, ignorante, etc porque, sei lá, não deixa a namorada dormir no quarto de seu filho em casa ou porque acha o “casamento gay” errado ou pensa que a “Marcha das Vadias” é algo de extremo mau gosto. E isso é o que certos ambientes impõem hoje.

    De resto, concordo com você que a direita é igualmente opressora quando em seu ambiente.

  29. Wagner, concordo. Não é fácil às vezes. Mas é uma excelente oportunidade para aprender a pensar por conta própria; todo mundo tem esse dever, e mesmo os que não têm muita formação. Isso sempre aconteceu; e agora não podemos chamar de bullying as contrariedades normais da vida em sociedade. Pois assim tudo vira lamúria e vitimismo. E acho que você concorda comigo. Valeu pela ótima conversa!

  30. Julio,
    Entendi o que você afirmou e eu estava pensando isso também: a melhor forma de ligar o método científico e a lógica seria justamente utilizar as proposições empíricas como premissas para a lógica, e não “premissas lógicas”. Acabei me expressando mal.

    Sem estender muito e entrando na conversa paralela que você manteve com o Wagner, creio que você fala que não há tanto relativismo assim no sentido de que as pessoas não são relativistas em suas posições, ou seja, elas são firmes em suas posições, independentes de quais sejam. Outra coisa, que acho que é o que o Wagner tem em mente, é o fato de que as pessoas, embora muito convictas (não relativistas), creem em qualquer coisa ditada em nosso tempo. Ele esta falando em relativismo no sentido de as pessoas estarem tomando posições cada vez mais relativistas em relação à, digamos, tradição, aos valores que reinavam no ocidente.

  31. Arnaldo,

    Sim, acho que você fez um link interessante. Se não me engano, Ratzinger em alguns textos que critica o relativismo parece deixar claro que o entende não como absoluta falta de convicções, mas, antes, como aquele sistema cujas convicções são baseadas no consenso social ou, ao menos, no consenso das elites intelectuais.

    Basta ver a crítica que faz disso no famoso debate com Habermas quando cita o exemplo nazista para combater esse tipo de relativismo (consensual e, portanto, mutável) como fonte de verdade

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