Tribalismo e razão

You talking ’bout my mum, yo. Wanna taste some steel, motherfucker?
(The Wire)

 

Assim são as discussões entre membros de gangues: toda fala é uma referência indireta à mãe do interlocutor. Um mundo certamente brutal, herança de valores familiares mal resolvidos. Infelizmente, todavia, onde esperávamos encontrar civilização, não raro encontramos navalhas, socos ingleses e braceletes, esses instrumentos da economia bélica informal dos anos 80.

Observar o comportamento quase tribal dessas gangues e seus líderes e procurar não imitá-los é um bom exercício. Muitos amigos me dizem que aprenderam mais com os maus exemplos dessa turma que com a aristocracia das boas maneiras. Talvez seja esse o motivo do encontrarmos sensatez não apenas nos lares exemplares, mas também naqueles hostis e cruéis. Num antigo documentário sobre violência juvenil — não me ocorre o título agora –, surpreendeu-me o fato de que filhos de pais violentos, que os tratavam na base da surra e dos palavrões, muitas vezes lhes saíam muito diferentes: responsáveis, estudiosos, trabalhadores e viris no sentido correto do termo. (Digo isso porque tenho visto confundirem virilidade com afetação estética de masculinidade. Coisas muito diferentes.)

Encontramos esse comportamento tribal em plena arena intelectual. De acordo com essa visão de mundo, é impossível julgar caso a caso e buscar os fundamentos de cada posição. É preciso primeiro descobrir quais as pessoas secretamente nomeadas por trás da polêmica. Se a tese A favorece meu bro, quem defendeu a tese A está certo, e milagrosamente qualquer tese B contrária a ela está errada. Grupos se aliam a teses, pessoas são vistas com simpatia ou antipatia de acordo com a sua adesão a elas, e finalmente não existe outro critério de julgamento que não o grupal. Tudo é uma questão de família. Perdem-se de vista as razões, porque, no fundo, interessa quem tem essa ou aquela posição, quem está contra quem, quem foi ofendido e quem ofendeu. O trabalho intelectual resume-se à aplicação trivial da teoria dos conjuntos.

Esse é o resultado da politização de tudo, fenômeno já anacrônico, especialmente por envolver um inimigo que não mais existe. (É contra a politização marxista de tudo que essa politização não-marxista de tudo se pretende justificar!) Até debates sobre ciência e filosofia política não transcendem essa esfera imediata das ideologias, partidos e, particularmente, partidários. Quanto mais pessoais e diretas as legendas nesses debates, mais tribal e político, no pior sentido, o ambiente. Por isso não estranhamos mais a presença de navalhas, socos ingleses e braceletes. Nossa resposta a isso deve ser a educação e o silêncio.

* * *

O esvaziamento da política nesse sentido nefasto começa por uma volta à razão e à prudência. A razão permite mapear contextualmente, organicamente, os encadeamentos argumentativos, contra (i) o vício filosófico de em tudo ver apenas o verbal e o discursivo, e (ii) o vício popular de rotular, “dar nomes aos bois”, enxergar conexões mágicas e agir exatamente como o seu adversário ideológico. A vida racional não existe sem contextos, valores, e até desordem. A prudência diz respeito à reta razão na ação, que acontece na lida diária, algo “impuro e desordenado” para os racionalistas, embora não exista outra vida.

O que se costuma perder de vista no terreno da razão é a sua necessária universalidade, que permite transcender as contingências, a autoridade vazia, costumes imemoriais (quando injustificáveis — veja o exemplo da vingança e do pensamento mágico), tendências ou modas passageiras e poder temporal. O perigo da universalidade é o esquecimento da experiência; o que pode ser prejudicial tanto para a ciência quanto para a moral. Por isso, como dito acima, a razão deve ser orgânica, unificadora mas não uniformizadora. É muito fácil perder de vista a razão, e. g., usando ilicitamente a lógica — que não é capaz de estabelecer premissas –, ou aceitando contradições no discurso, ou formalizando o que não pode ser formalizado, ou ainda abusando da retórica. É muito mais fácil errar que acertar quando se trata do papel genuíno da razão e da lógica.

A filosofia é o que melhor se conseguiu, depois de 2.500 anos de tradição, em torno da razão — a análise lógico-semântica sem delírio de grandeza. Grande parte da sua matéria original passou às ciências naturais; muitos veem assim, com acerto, a meu ver, o projeto aristotélico: afinar cada vez mais a investigação, experimentar, e eventualmente mudar de método. Questões sobre a origem do Universo não podem ser respondidas pela metafísica; do ser não se segue tal e tal modo de ser, e muito menos a sua origem: a ciência, desde Roger Bacon e Alberto Magno, nos ensinou a buscar os specifics e a desconfiar progressivamente da abstração metafísica, que facilmente se descola da realidade e se põe a pontificar sem qualquer elemento nas mãos, como um brâmane cocainômano. Há muito a física ganhou esse espaço. A lógica, desenvolvida por matemáticos e filósofos com preparação matemática, volta reforçada para se aplicar a problemas filosóficos mais complicados (trabalho que apenas se inicia). A vida da mente saiu também do domínio filosófico para receber tratamento adequado na neurociência e na ciência cognitiva. E por aí vai. Resta a filosofia com o seu papel permanente, insistente: abrir caminho, calar cientistas apressados, apurar conceitualmente teorias físicas com alcance filosófico, esquadrinhar logicamente argumentos, formular e reformular a ética e a estética, refletir sobre a morte e a finitude. E eventualmente calar filósofos apressados ainda presos a um papel dogmático da filosofia. Deve-se tanto à filosofia, que sempre estaremos diante de duas posições antagônicas: a da “morte da filosofia” e a da “hegemonia filosófica” (uma espécie de totalitarismo espiritualista, como dizia um amigo). Cabe aos filósofos responder à altura aos pessimistas e aos otimistas — e depois aguentar as severas críticas dos dois lados, que preferem trabalhar com o mais fácil a resolver problemas efetivos. Como dizia Nicolás Gomez Dávila, “nossos contemporâneos não admiram nada a não ser textos histéricos” (Sucesivos Escolios a un Texto Implícito, Bogotá, 1992).

O modo prudencial está associado — embora não seja esse o objeto precípuo da prudência — ao uso eficaz da razão: a solução de problemas. A razão presta-se mais a um rigoroso emprego local que à “otimização global”, nas palavras de Sark. É exatamente esse o ponto onde se encontram a realidade mais brutal e elementos invariáveis sob toda e qualquer permutação, como nas páginas ensaísticas de Chesterton. Ponto que torna árduo, e às vezes quebradiço, o trabalho do pensamento.

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11 comentários em “Tribalismo e razão

  1. Gostei do texto. Pena que provavelmente os que mais precisariam lê-lo provavelmente não o farão, já que ele cita Chesterton, não Marx, Stálin ou Olavo de Carvalho. Acho que vou postar o link para ele na caixa de comentários do texto sobre a morte de Hobsbawm — pois o que você escreveu acaba sendo um comentário interessante sobre o que se viu ali.

    Um abraço,
    Rodrigo.

  2. Boa, Rodrigo. O pessoal gosta de pirotecnia, que não é meu estilo. E mesmo que leiam, já viu um membro de gangue ser razoável e dar o braço a torcer? Bem, espero que sim. Tenho visto boas surpresas por aí. Abraço!

  3. 50% de cotas para afro-desc…
    Lei da Palmada
    O Circo da Copa de Futebol
    A confecção de novos códigos legais sem qualquer participação da sociedade como um todo, como se apenas um clero (jurídico) fosse capaz de tocar o país.
    E tu consegue a façanha de dizer que o inimigo não existe.
    E pra ti, Lemos, tudo o que não se circunscrever aos cânones da tua razão é “política”. Toda essa ladainha de lógica, ontologias de processo kripkeanas, e a tua “honestidade intelectual” contraposta à “brodagem” dos olavetes…
    O que nesse mundo não é política, Meu Deus? A “Academia” com seus “filtros”? A OAB?
    R.I.P., Dicta.

  4. Agora que tem um pouco de contradicta na Dicta o pessoal reclama sem parar. Talvez seja porque, depois de tantos anos vivendo de modo anaeróbico, a oxigenação repentina causa tontura (e, curiosamente, indignação e revoltinha).

  5. Prof. Dr. Júlio Lemos, em que posição o sr. lê livros? Pergunto isso porque imagino que, por conta do seu narizinho indefectivelmente empinado, as obras tenham que ficar no teto… Acho que no texto faltaram mais referências veladas a cigarras…

  6. Este para mim é um texto denso. Denso no sentido de compactar em frases curtas um grande número de teses, fatos, idéias e experiências implícitas, lembrando um pouco o estilo feliz dieta nova, ao menos neste aspecto.

    Antes dos três asterísticos, me parece, fala-se de ideologia e cosmovisão de grupos. Uma cosmovisão tem respostas, provisórias que sejam, para tudo no universo, conforma as opiniões políticas, religiosas, artísticas, éticas, etc. Intelectuais poderosos ou ideologias, me parecem, conseguem impregnar seus seguidores de toda a sua cosmovisão e eles acabam julgando tudo segundo ela, como se ela fosse a visão do todo da realidade. Os mais confiáveis separam de tudo o que dizem o que as opiniões que são fruto do esforço de seu estudo, longamente refletidas e testadas, das que são apenas componentes de sua cosmovisão que lhe chegaram pelos mais diversos canais e não foram digeridas filosoficamente. Mas os seguidores constumam ignorar esta separação. Os que partilham de crenças, opiniões ou certezas que não estão contidas no conjunto da cosmovisão destes intelectuais e ideologias parecem estar alheios à verdade e se tornam oponentes a serem combatidos, antes de serem compreendidos. Assim interpretei a primeira parte do texto e se este é o sentido, concordo plenamente.

    Depois dos três asterísticos, fala-se de um duplo efeito da papel universalizador da razão. Se por um lado nos ajuda a distinguir no mundo o que é perene e duradouro do que é fugaz, por outro cria realidades totais inexistentes, por desapego aos fatos. Lembrou-me o paradoxo que um filósofo encontrou na filosofia de Aristóteles, se a interpretou bem, segundo o qual as coisas só existem individualmente, mas só se pode conhecer universalmente, ou algo assim.

    Mas voltando à densidade do texto, a segunda parte traz uma série de assertivas que instigam muito, mas nos deixam um pouco sem saber do que exatamente se está a falar. Gostaria de ver descompactada, por exemplo, a frase “questões sobre a origem do universo não podem ser respondidas pela metafísica.”

    Por fim, acho que esse papo ficou muito abstrato.

  7. Amigos editores da Dicta, eu entendo certamente a necessidade da tal “oxigenação”, mas precisa mesmo ser pro lado da esquerda? Leonardo Boff?????Será que já não basta eles terem todo o controle dos meios de expressão midiáticos, acadêmicos e políticos? Não é possível que vocês não percebam a tremenda importância que uma revista como a Dicta tem (ou tinha?) no cenário cultural brasileiro ou mesmo mundial em termos de “resistência” intelectual. Não precisa ser um órgão militante nem nada disso. Mas querer pairar acima da realidade como se ela não existisse lá fora é um pouco demais. Será que eu vou mesmo ter esse enorme desprazer de ver a minha querida Dicta virar uma Piauí assim na cara dura? Finalmente começo a entender as razões que levaram o Martim a abandonar o barco. Bem, me restará sempre o prazer de ler as seis primeiras edições

  8. Não queria ser chata, mas queria lembrar ao Vinícius de Oliveira que a palavra “asterístico” não existe. O símbolo “*”, por lembrar um pequeno astro, é chamado de ASTERISCO.

  9. Vinícius, acho que você compreendeu bem o post. A segunda parte é bem geral, como você percebeu, mas não creio que seja abstrata (acho que você quis dizer vaga) demais. Não é minha tendência natural. Com razão, cobram-me mais “generalismo”, já que eu tendo a ser específico demais. De fato há muita afirmação ali a expandir. Pretendo fazê-lo em posts futuros.

    Sobre a questão da origem do universo, em termos bem toscos, temos diante de nós um fato em que muitos acreditam: que nosso universo teve um início. Há metafísicos que discordam e há os que fortalecem a tese. Quem resolve a questão? Obviamente, em se tratando de um fato natural, capaz de mensuração, só as ciências naturais podem dar uma resposta sólida. Um exemplo desse problema é o correlato da eternidade do mundo; para a cosmologia cristã, o mundo aparentemente terá um fim, mas isso não pode ser provado metafisicamente. Mas é um problema que pode ser objeto de teorias cosmológicas em física, aparentemente sujeitas a eterna revisão… Mas é também evidente que essas teorias cosmológicas sempre estarão impregnadas de especulação metafísica. O que não pode ser dito, de maneira nenhuma, é que o problema da origem do mundo tem uma resposta meramente metafísica. É como dizer que a lógica pode me dizer se fulano nasceu no Texas ou no Arizona; se beltrano nasceu de fato ou se na verdade nunca chegou a ser concebido. Acredito, todavia, que argumentos como o impossibilidade de uma cadeia de causalidade infinita podem ser explorados pela filosofia — como de fato são; só não de modo dogmático. No fim das contas, nunca poderemos convencer aqueles que creem que nosso universo sempre esteve aí, contra a teoria do Big Bang e etc. Porque é uma posição igualmente razoável, com base em certos modelos interpretativos da física quântica. Os gregos, por exemplo, acreditavam que o universo era eterno “para trás” com base no mesmo argumento costumeiramente usado na Idade Média: do nada, nada sai.

    O objeto da metafísica, “filosofia primeira”, é a estrutura ou base ‘lógica’ da realidade (ou seja, aquilo que se pode dizer, com apoio na apenas na razão e nos dados dos sentidos, sobre a estrutura do universo no nível mais abstrato: forma, matéria, distinções reais, não-contradição, temporalidade e espacialidade, etc). O problema é que, com o desenvolvimento das ciências naturais e da física matemática, os “specifics” da questão passaram do domínio da filosofia para o seu domínio (o das ciências). É uma tendência natural. Até o século XIX, ninguém era chamado “cientista”. É uma invenção novecentista. Leibniz era o que? Pascal, Descartes, Hume? Quando o terreno não era a pura técnica e a experimentação, os filósofos esgotavam tudo por meio de teorias físicas e especulação filosófica. Hoje não é mais assim. Como houve uma divisão de tarefas, os filósofos ficaram com a precisão conceitual, a “lógico-semântica” (parte essencial, por exemplo, das investigações de Platão e Aristóteles lá nos inícios, e mesmo nos pré-socráticos — embora não possa mostrar isso aqui), e os cientistas com a teoria restrita e modelos sobre os dados obtidos por meio do método experimental. Por isso muitos filósofos, hoje, se querem lidar com fenômenos naturais ou mentais, precisam ter formação nas ciências respectivas, como o tiveram Leibniz, Pascal, Descartes, e mesmo Alberto Magno e Aristóteles. Eles eram todos cientistas, e às vezes estavam entre os maiores do seu tempo. Hoje a acumulação de saber é tanta que o trabalho dos filósofos enfrenta suspeitas e, além disso, cresceu em dificuldade. Por isso a sua importância é ainda maior, na minha opinião. Porque se os cientistas fazem o que querem e começam a tirar conclusões, vão acabar dizendo besteira (como é comum em uma parte do trabalho do Hawking). Besteira semelhante à que dizem os filósofos despreparados ao falarem sobre ciências.

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