Um passeio noturno

Fazia muito tempo que o seu pai não o chamava para passear, principalmente para os dois observarem a cidade à luz do crepúsculo e, portanto, quando ouviu a voz dele perguntando se queria dar uma volta, sequer titubeou. Abandonou o videogame que jogava compulsivamente no computador há quase duas semanas e foi todo feliz rumo ao Jaguar que chegara em casa naquela semana.

Ele estava sorridente quando o carro começou a se movimentar. Perguntou ao pai:

–         Como foi o seu dia?

–         Cansativo. Muito cansativo. Tive um dia terrível na companhia.

–         O meu também.

–         Na escola?

–         Sim.

–         Mas você mal sabe o que é cansaço. Como pode saber disso? Na escola só se estuda…

–         Sim, mas estudar também cansa.

–         Talvez você tenha razão. Mas o meu cansaço é diferente do seu.

–         O que é isso? Quer medir desgraça?

–         Não, não quero – o pai voltou a sorrir – Quero apenas conversar contigo.

–         Eu também quero.

–         Por quê? Aconteceu alguma coisa?

–         Não, não aconteceu nada, fica tranqüilo. Só também queria conversar contigo, escutar a sua voz.

–         Está tudo bem na escola? Nos estudos?

–         Sim, está. Já disse pra você ficar “sussa”.

–         “Sussa”. O que é isso? Está no dicionário?

–         No meu, pelo menos está.

–         E o que significa?

–         Pra você ficar tranqüilo…

–         Ah, sim, “sussa”. Sossegado, é isso, não é?

–         Acho que sim.

Eles passaram pela praça onde o pai sempre deixava o menino brincar de bicicleta, depois cruzaram a avenida onde metade da cidade trabalhava e onde todos se encontravam para os prazeres da noite e do dia seguinte.

–         E as meninas? Como está com elas?

–         As meninas? Por que pergunta sobre elas. Não penso muito sobre isso.

–         Como não? Você já tem catorze anos. Já deveria pensar sobre isso…

–         Você começou a pensar com qual idade?

–         Hum… Sei lá.. Doze?

–         Foi nessa época que você conheceu a Roberta?

–         Roberta?

–         Sim, a minha mãe.

–         Sim, eu sei que é a sua mãe. Roberta? Você chama a sua mãe pelo nome?

–         Sim. Por quê? Qual é o problema.

–         Você deveria chamá-la de mãe.

–         Não gosto de chamá-la assim. Parece que sou uma criança.

–         Mas você é ainda uma criança!

–         Se você pensa assim, não posso fazer nada…

–         Você não viveu nada, não sabe de nada.

–         E você sabe alguma coisa, certo?

–         Mais do que correto! Sei sim. Sei mais do que você, sem dúvida…

–         E o que você sabe?

–         Eu sei… sei… sei sobre as mulheres.

–         Sabe nada.

–         Sei sim!

–         Então prove.

Pararam em um semáforo. Repararam que um grupo de ciclistas se aproximava do carro. O pai ofereceu um chocolate.

–         Quer?

–         Não, obrigado.

–         Vai dizer também que não sei nada sobre chocolate?

–         É provável.

O semáforo deu sinal verde. O carro voltou a se movimentar.

–         Então não sei de nada… – repetiu o pai, quase em um resmungo.

–         Cara, não quis te ofender, desculpa aí.

–         Cara. É assim que você me chama!? De cara?

–         Você queria que o chamasse do quê? De Ethevaldo?

–         Não, de pai. Só isso. Pai! É pedir muito?

–         Você não ouviu o que eu disse antes. Não gosto disso.

–         Por que você não é uma criança, certo?

–         É isso aí.

–         E eu não sei de nada, certo?

O pai resolveu aumentar a velocidade. O filho gostava quando começava a fazer aquilo.

–         Não disse isso. Disse que é provável que você soubesse de pouca coisa nessa vida.

–         De pouca coisa? Escuta…

–         O quê?

–         Você já comeu uma mulher?

–         Não preciso disso, já te disse.

–         Como não precisa? Não vai me dizer que você é viado

–         Não preciso disso também.

–         E do quê você precisa, vossa senhoria?

–         Pouca coisa. De uma cama. De comida. E de um videogame, é claro.

–         É só disso que você precisa?

–         Basicamente.

–         Nada de mulher.

–         Muito menos de dinheiro.

–         Puta merda. O que foi o que eu fiz?

–         Você sabe muito bem o que você fez comigo. Olhe na frente.

Lá na frente havia uma multidão de ciclistas. Todos coloridos, saudáveis, com suas respectivas bicicletas exatas e perfeitas, prontos para um passeio noturno comunitário, todos integrados, imersos em uma comunidade onde os dois – o pai e o filho – jamais fariam parte.

O pai perguntou:

–         O que você acha que eles precisam?

–         Precisam menos do que nós.

–         Como assim?

Agora sim o passeio começava a valer a pena, pensou o filho.

–         Por que você sempre faz a mesma pergunta?

–         Ora, porque faz parte das regras do jogo, meu filho.

–         Faz?

–         Sim.

–         E quais são as regras do jogo? Por favor, você poderia repeti-las?

–         Você sabe muito bem quais são as regras do jogo. Afinal, foi você quem as criou.

–         Não fui eu não. Fomos nós dois juntos.

–         Você tem razão. Fomos nós dois juntos.

–         As regras do jogo são as seguintes: primeiro, sempre pergunte se a presa merece ser eliminada. E segundo, sempre se coloque no lugar e veja do que ela precisa antes de ser eliminada.

–         E por que essa segunda regra, filho?

–         É a regra da misericórdia. E não me chame de filho, já te avisei.

–         Sim, mas não foi comigo que aprendeu essa regra?

–         Sim, foi. O que você quer que eu diga? Que você me ensinou muito? Tá bom. Você me ensinou muito.

–         Você se lembra do dia em que nós lemos sobre a história da regra da misericórdia? Eu me lembro – ah, como me lembro – e neste instante o pai resolveu aumentar a velocidade e o filho começou a ficar com a face ruborizada e a respiração palpitante – era um dia de chuva e estávamos lendo na varanda de casa. Eu estava lendo um livro para você. Estávamos completamente sozinhos. Você tinha uns dez anos. Isso me lembro bem. Também me lembro do livro. Qual era? Ah, eram as memórias de alguém que participou do Julgamento de Nuremberg. O sujeito perguntava a um dos carrascos nazistas se ele tinha alguma alma, algum coração. E o carrasco afirmava que sim. “Por que devo acreditar nisso se você matava pessoas a sangue-frio? Como pode ter um coração se não tinha a capacidade de se colocar no lugar da sua vítima?”, perguntou o investigador do tribunal. “Mas justamente por isso!”, respondeu o carrasco muito educadamente. “Eu podia matá-la com misericórdia justamente porque me perguntava do que ela precisava e chegava à conclusão que, em breve, não precisaria de mais nada já que morreria pelas minhas mãos!”.

Os dois trocaram um olhar e começaram a gargalhar. O carro parou novamente. A multidão de ciclistas se transformava em uma muralha humana.

O pai apertou no acelerador.

–         Vamos? – perguntou o filho.

–         Sim, vamos. Mas antes temos de cumprir a segunda regra: do quê eles precisam?

–         De nada.

–         Por quê?

–         Porque em breve estarão mortos.

A única coisa que o filho se lembrou antes chegar em casa foi a do olhar azul petrificado da moça no vidro e no capô. Estacionaram o carro na garagem. Desceram e se abraçaram.

–         Obrigado, pai. Foi um passeio muito bacana.

O pai quis corrigi-lo pela falta de sofisticação na linguagem. Abandonou a intenção assim que viu que teria de retirar a amostra de pele humana encrustrada no pára-lama do Jaguar que, droga, tinha comprado naquela mesma semana.