‘A Estrada’ e a natureza humana

Humanidade: hecatombe moral?

A premissa de A Estrada é simples: algum desastre não-especificado destrói a Terra: o céu fica cinza, há terremotos intermitentes e chuvas de fogo e poeira à noite. Toda a vida vegetal perece e a civilização colapsa irremediavelmente. Tudo o que resta é lutar para não morrer de fome coletando restos e enlatados cada vez mais raros e evitar tornar-se vítima do estupro e canibalismo onipresentes. Mulheres e crianças são especialmente visadas.

Leva-se às últimas conseqüências o pessimismo de um Ensaio Sobre a Cegueira. Só que em A Estrada, ao mesmo tempo em que a situação é mais desesperadora (a humanidade vai acabar), há, talvez por isso mesmo, mais abertura a uma possível transcendência. O bem ainda resiste: um pai e seu filho pré-adolescente mantêm viva a dignidade humana e caminham para o sul em busca de algo melhor, embora não saibam ao certo o quê. Rejeitam terminantemente o canibalismo e o roubo. Carregam, diz o pai – que, ao mesmo tempo em que oferece esperança, contempla desesperado o suicídio – um fogo dentro de si, que se apagaria se capitulassem à conduta geral.

É uma experiência cinematográfica lúgubre como poucas. O cinza predomina, a atmosfera é de solidão e paranóia; numa cena particularmente chocante num porão escuro, vemos seres humanos num estado de degradação e violação indizível, o que produz um horror existencial profundo que nos acompanha o filme todo. A humanidade sai mal na foto.

A discussão é antiga: O homem é bom ou mau? As relações humanas consistem, fundamentalmente, em cooperação ou guerra? Aristóteles ou Cálicles? Locke ou Hobbes? No plano teológico: o homem absolutamente perverso em quem a graça deve eliminar a natureza má (Sto. Agostinho em momentos mais pessimistas, a doutrina calvinista da “depravação total”, os franciscanos, Pascal); ou o homem corrompido mas cuja natureza permanece essencialmente boa, sendo papel da graça aperfeiçoá-la (Tomás de Aquino, os dominicanos e jesuítas)? Na economia: Karl Marx ou Adam Smith? O marxismo, ao pintar a vida social como baseada na exploração, tende, na prática, ao pessimismo; já o liberalismo clássico enxergava a prevalência da cooperação, e via o mercado como mecanismo harmonizador dos desejos individuais.

Os pessimistas gostam de se ver como realistas, os únicos que não adocicam a verdade cruel escondida sob a fina e frágil camada da sociabilidade. Será? Discordo. Mesmo em meio à guerra, mesmo onde o braço do Leviatã não alcança (aliás, este sim é capaz do mal numa escala sobre-humana), o que prevalece no mundo real é a vida normal, a cooperação e a coexistência pacífica, ainda que o que venda jornais sejam os crimes. Na Somália sem governo, o mercado de telefonia e a Internet popular floresceram; nas favelas brasileiras há lan houses, bares e lojas. Voltando um século, lembremos que os soldados de ambos os lados na Primeira Guerra, para horror dos comandantes, saíram das trincheiras e confraternizaram na noite de Natal. O homem é capaz do mal, mas esta não é sua vocação e nem sua natureza.

A capacidade agregadora do bem

Mas quem é mau, sem escrúpulos, se dá melhor, não é mesmo? Em situações pontuais, no curtíssimo prazo, talvez. No geral e no longo prazo, o bem é mais poderoso. Falta essa percepção ao filme. Os bandos de canibais eram compostos de assassinos e estupradores. O que garantia sua unidade? A traição e o motim deviam ser medos constantes para homens desprovidos de qualquer sentido de honra, de amor ou de uma causa maior.

São justamente os bons (na medida em que são bons) que têm a capacidade moral de formar e sustentar agregações duradouras e produtivas. Exposta em termos diferentes – menos moralistas – esse ponto faz parte do currículo de qualquer curso de administração. A empresa que não cria uma cultura interna positiva, de respeito mútuo e confiança, que não facilita a comunicação entre as partes, mas que permite ou até incentiva intrigas, falta de transparência e autoritarismo, arca com altos custos inexistentes numa empresa mais sadia, o que pode botar tudo a perder, como no caso da WorldCom. Monastérios (católicos, ortodoxos, budistas) perduram séculos enquanto comunas hippies de amor livre e gangues do tráfico definham em anos; esperávamos o contrário?

Se o cataclismo de A Estrada ocorresse de fato, seria de se esperar que os bons, os mais confiáveis e respeitosos, fossem bem-sucedidos em montar grupos e pequenas sociedades; todos teriam a ganhar. A divisão de tarefas (uns procuram alimento, outros preparam esquemas de defesa, etc) eficiente precisa de um mínimo de confiança e comprometimento. Seriam eles que se defenderiam com mais eficácia. Digam o que quiserem sobre os EUA e Israel, mas é um fato que sua conduta bélica é eticamente superior à dos seus adversários: há práticas que eles se negam moralmente a adotar (terrorismo, homens-bomba, seqüestro, escudos humanos). Será mera coincidência que sejam também militarmente superiores?  Os bárbaros, os canibais, as tribos de guerreiros nômades, condenam-se à miséria perpétua, pois a aposta nos ganhos imediatos da falta de escrúpulos (pilhar é mais fácil do que produzir) destrói suas chances de crescer. Um bando armado no qual, na hora de dormir, teme-se que os colegas do dia anterior metam-lhe uma faca no peito para garantirem o almoço de amanhã não é uma instituição particularmente estável.

Portanto, parece-me inverossímil que os maus sejam organizados e poderosos e os bons solitários e indefesos. Notem que nossa situação difere da do filme apenas em grau: todos morreremos, e a espécie humana certamente se extinguirá (ao final do processo irreversível de entropia cósmica, se não antes). Só mudam o número de gerações até essa data terrível (uma ou duas no filme, indeterminadas, provavelmente muitas, no nosso caso). Vamos já para a guerra de todos contra todos? Para quê construir, se dá trabalho e tudo virará pó? É aí que entra a esperança em alguma transcendência  – o reconhecimento de valores que vão além da vida e a fé em algo maior que a justifique – , à qual os protagonistas estão abertos, e que os difere da massa de malvados. Vã ou não, no fim das contas, é ela que os salva. Tomistas e agostinianos sorriem em pleno acordo.

7 comentários em “‘A Estrada’ e a natureza humana

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  2. ótima resenha, joel. vc chama atenção para um ponto q ficou rodando minha cabeça: a lógica hobbesiana das asociações entre pessoas más. a suspeita dq vc poderia a qquer moento ser traído realmente envenena qqer tipo de associação ou cooperação possível. deve ser por isso q eles sempre aparecem juntos – os outros devem estar sempre à vista para coibir alianças de uns contra os outros.

    d resto, ma chamou mais a atenção o fato dq cuidar do menino era uma benção para o pai – “se ele não era a palavra de deus, então deus nunca falou” – e uma maldição insuportável para a mãe.

    no mais, essa busca pela transcedência necessariamente deveria ser religiosa? no filme, sem dúvida. mas no marxismo, ela é bem material – a revolução comunista. vc devia incluí-los no sorriso de acordo entre os tomistas e agostinianos.

  3. É verdade. Inicialmente eu tinha escrito “esperança (não necessariamente religiosa”). Mas como no filme ela tem conotações explicitamente espirituais (a crença na vida eterna, a cena do pai e filho dormindo na igreja), tirei a ressalva.

    A esperança marxista, a meu ver, tem duas vertentes (ou dois níveis): o primeiro é aquele benéfico de querer um mundo melhor – mais justo, mais humano – e estar disposto a se sacrificar por esse sonho. Claro que isso não é monopólio do marxismo.

    O segundo é o nível em que se aceita instrumentalizar outros valores (a dignidade humana, as vidas inocentes, a verdade) para chegar à revolução. E este já me parece até mais nocivo do que a falta de esperança animalizante que produz os canibais e estupradores.

    Boa observação acerca de como o pai e a mãe viam o filho! Para o bom, tudo concorre para o bem; para o mau, tudo concorre para o mal.
    Isso me lembra dos amigos e colegas que dizem não querer ter filhos (mais especificamente, [i]filhas[/i]) porque “o mundo de hoje é muito mau”.

  4. bem, eu não acho q a mãe do garoto [nem seus amigos] seja . egoísta e fraca tvez por ter cedido ao desespero e pensado mais em si doq naqueles q a amavam. mas como éq vc se sentiria sabendo q deu à luz uma criança num mundo q está morrendo e vc despreza?

    o pai tb fica à beira de sacrificar o filho por vários momentos e isso, na minha opinião, não é por maldade. por maldade entendo justamente a instrumentalização de outros seres para satisfazer seu desejo. como os libertinos de sade.

    minha observação [bastante vaga, assumo] foi mais no sentido dq algo não é uma benção/maldição em si. isso depende da sua disposição para assumir o fardo [a cruz, se preferir] de estar vivo sob certas condições.

    tb essa instrumentalização não é privilégio do marxismo, mas de toda e qquer crença levada ao fanatismo. vide o terrorismo islâmico, a inquisição espanhola e o macartismo.

  5. Adorei o último comentário do luizgusmao. Evidente que a mãe não é má, que cedeu ao desespero exatamente pelo amor ao filho, por saber que sua morte, que ela já amaldiçoa de antemão, é preferível a ver seu filho ser estuprado, assassinado e sua carne comida num mundo que, para ela, é sem esperança. É um caminho comum, embora pouco desejável. Ela abdica de uma existência que para ela não faz nenhum sentido. Para o pai, continua, apesar de tudo, a fazer sentido.

    “foi mais no sentido dq algo não é uma benção/maldição em si. isso depende da sua disposição para assumir o fardo [a cruz, se preferir] de estar vivo sob certas condições.”

    Lembra um pouco o Viktor Frankl, não?

  6. Joel, muito boa mesmo essa sua resenha. Gostaria muito de tb ler uma resenha sua sobre “Onde os Fracos Não Têm Vez”. Abraço.

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