A Força Aniquiladora em Um Método Perigoso

Se vivemos em tempos científicos, racionais (ao ponto de nossos sonhos serem interpretados como meros impulsos sexuais; como se fôssemos “cães errantes e gatos de telhado”, diria Nelson Rodrigues) devemos isto a Darwin, Marx e Freud, a trindade sagrada do humanismo secular. Darwin ocuparia o espaço do Pai, Marx o do Filho e Freud o do Espírito Santo, trindade esta responsável pelo fim da alma imortal do homem. Um Método Perigoso, dirigido por David Cronenberg, lida com uma destas entidades: Sigmund Freud.

No livro A Negação da Morte, Ernest Becker narra os conflitos entre dois dos maiores expoentes da psicologia, discutindo inclusive as crises de desmaio que Freud teve durante discussões com Carl Jung:

“O desmaio representa, como sabemos, a mais maciça negação, a recusa ou incapacidade de continuar consciente diante de uma ameaça. As duas ocasiões em que um grande homem perde o total controle de si mesmo contêm certas informações vitais sobre o cerne de seu problema de vida.

Freud enxergava na figura de Jung um possível herdeiro; ele seria o “filho” que garantiria o sucesso e a continuação da psicanálise. E com a defecção de Jung do movimento, ele invocaria o símbolo do assassinato do pai, a representação da morte de Freud. Tal aspecto, que por si só já valeria um filme inteiro, está presente em Um Método Perigoso, mas não é explorado como merece. Apesar da performance irreprovável de Viggo Mortensen como Freud, o que prevalece no filme é o envolvimento de Carl Jung (Michael Fassbender) e Sabina Spielrein (Keira Knightley).

Sabina é apresentada aos berros sendo carregada por funcionários da clínica em que será internada e tratada pelo Dr. Jung. Jung discorda das ideias de Freud de que todas as neuroses possuem fundo sexual, mas, no caso de Sabina, é justamente isto. Punida fisicamente pelo pai quando criança e confrontada com um sentimento de prazer vergonhoso, ela se tornou doente, histérica. Influenciado por Otto Gross (Vincent Cassel interpretando, mais uma vez, o depravado de plantão), Jung começa a achar que livrá-la de sua repressão sexual é a única forma de realmente curá-la; sem falar, é claro, da própria atração que sente por ela. Assim, eles começam a ter um caso, com Jung muitas vezes assumindo o papel do pai de Sabina.

Contudo, o que parece reabilitá-la de fato é o seu envolvimento com o trabalho de Jung e, mais tarde, com as suas próprias teorias e prática. Jung é casado, mas torcemos pelo seu caso com Sabina porque os dois são tão compatíveis e trabalham tão bem juntos. Há uma crise, é claro, quando Jung resolve terminar o caso, mas Sabina só é completamente curada quando passa a estudar e a trabalhar de forma independente. Mais tarde, ela se casa e engravida. Jung lhe pergunta como é seu marido e ela responde “gentil”, sugerindo talvez que os antigos fetiches sexuais já não existem mais.

Os adeptos de Cronenberg parecem, em geral, decepcionados com o filme porque não há uma atenção excessiva às práticas sexuais de Jung e Spielrein e não há também a confirmação das ideias de Freud de que todos nossos problemas teriam uma raiz sexual. O diretor parece concordar com Jung. Além disso, a repressão de nossos impulsos não é totalmente malvista, pois se trata de um mecanismo regulador do indivíduo para viver em sociedade. Aquele que prega a liberdade total de todos os impulsos, Otto Gross, é justamente quem acaba morrendo de fome – ou seja, uma pessoa assim jamais poderia se estabelecer em um só lugar, trabalhar continuamente com os outros sem ofendê-los ou atacá-los.

Na filmografia de Cronenberg, sempre houve um certo fascínio com a doença, o sexo, a falta de repressão. Um Método Perigoso é um trabalho mais sóbrio e maduro, pois nele há algo mais além do sexo no que diz respeito à condição humana. O filme aborda também quais são as consequências de quando cedemos a nossos impulsos (tema semelhante ao de Shame, de Steve McQueen).

Uma das teorias que Sabina elabora é a de que o sexo, além de sua força obviamente criadora, capaz de gerar unidade e vida, possui uma força aniquiladora, destrutiva, comparável à morte. O sexo seria uma forma de destruição do ego, mas não destrói somente isto – pode destruir carreiras, famílias, amizades e vidas inteiras.

3 comentários em “A Força Aniquiladora em Um Método Perigoso

  1. A teoria da Sabine é, na verdade, a teoria do próprio Freud sobre o sexo. O filme dá a entender que ela serviu como inspiração tanto para a ideia de animus/anima de Jung (quando ela diz “something male in every woman and something female in every man”) quanto para Freud (a ideia da sublimação da libido, o sexo como força de criação e destruição).

  2. Não conhecia o filme. Vou assistir. Assim como sergio no comentário acima, me surpreendi com a citação de Ernest Becker. A Negação da Morte é “o livro do século XX”!

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