A literatura do trauma

W.H. Auden dizia que qualquer ser humano precisava de um trauma. Segundo ele, o trauma era uma espécie de cicatriz, de vácuo, que a vida deixava preencher e só então a pessoa podia levá-la a sério, justamente porque o sujeito tinha de encontrar algum sentido.

O trauma é o leitmotiv obsessivo que estrutura dois belos romances da literatura brasileira atual: Perácio – Relato Psicótico (Leya), de Bráulio Mantovani, e Minha mãe se matou sem dizer adeus (Record), de Evandro Affonso Ferreira.

Ambos os livros giram em torno desta cicatriz e criam seus respectivos sistemas literários que, por sua vez, se destroem de maneira instigante, especialmente para quem ainda acha que a literatura deste país vai mal das pernas. Neste caso, Mantovani e Evandro vão na contramão de tudo o que está aí.

Em primeiro lugar porque não falam de favelados e outros problemas sociais; e em segundo, mesmo que os próprios autores se afirmem céticos no aspecto metáfísico-existencial, estão abertos a esta realidade invisível e conseguem traduzi-la em metáforas e símbolos que provam que talvez exista algo que está – e do qual não sabemos.

No romance de Evandro, o trauma está explícito, logo no título: a mãe do narrador se matou sem dizer adeus. O personagem principal é nada mais nada menos do que a sua própria consciência, uma torrente de palavras controladas com precisão cirúrgica (exceto por um ou outro hífen entre as palavras, que trava a fluência da leitura, mas que também pode ser interpretado como uma paródia a lá Heidegger) e que inverte toda a tradição literária do flaneur flaubertiano. Se o peregrino precisa caminhar para mostrar as suas impressões sobre a desgraça da vida, aqui o flaneur não anda: é um velho de oitenta anos, sentado em uma “mesa-mirante” de uma confeitaria de shopping center, observando os vizinhos do bairro de Higienópolis e que, subitamente, afirma que sabe que irá morrer e que não concluirá a sua obra literária.

Já na estrutura intrincada elaborada por Manovani para o seu Perácio, o trauma deve ser decifrado pelo próprio leitor conforme o romance se desdobra em sonhos, alucinações e diversos focos narrativos. A linguagem labiríntica, de um coloquialismo insano, também ajuda na investigação policial interior que o romance quer provocar em quem o lê. O personagem-título é alguém que literalmente contagia quem se aproxima dele; da mesma forma que Cervantes fez com o Quixote, o Perácio de Mantovani é um louco sobre o qual, sabe-se lá porque, todos ficam fascinados e, conforme a progressão da loucura se acumula junto com a progressão dramática do próprio livro, cada personagem passa a ter uma característica peraciana, entre elas a de querer medir o caos e a de não saber mais o que é a realidade e o que é o sonho.

Minha mãe se matou sem dizer adeus também parte do mesmo princípio de tensão dramática – entre o que é real e o que não é – mas opta pela solução já defendida por Vargas Llosa sobre a fascinação que a verdade das mentiras provoca em nossas vidas: a de que a ficção é uma forma de suplantar a desgraça que é a condição humana. Para o narrador de Evandro, ele sabe que vai morrer porque fez um pacto com a própria morte. O motivo? Terminar sua obra nunca concluída. Se conseguirá, isso é algo que se mantém em suspense por todo o livro. O drama do personagem surge do modo como a tensão é acumulada em pequenos detalhes que se transformam em historiazinhas que ficam umas dentro das outras: a dos judeus que brincam com a proximidade do fim, a da garçonete ruiva, a da mulher que se apaixona por esta última e vai se matar por amor, a da amiga-filósofa que também teve uma mãe suicida (mas esta disse adeus) – uma sequência que, se o autor quisesse, poderia se estender para um infitito etc. Contudo, não é esta a sua intenção. Chega um momento que a morte não admite negociação. E então o leitor percebe que o narrador não está a usar de um joguinho literário ao afirmar que pressente que irá morrer. Não, ele sabe que morrerá porque isto já é um fato – e é só uma questão de instantes.

O Perácio de Mantovani é um morto-vivo – e quem se aproximar dele ganhará estas mesmas propriedades, por assim dizer. É um infeliz e tanto: tem sonhos, alucinações – aliás, cenas em que Mantovani mostra uma inventividade ímpar e que prova que ele é muito mais do que o roteirista de Cidade de Deus e Tropa de Elite, como querem impor alguns resenhistas de meia-tigela – e um sentimento de tristeza que permeia cada uma de suas escolhas. Aqui, a paranóia não é apenas uma forma de ver o mundo; é também uma forma de fugir da realidade – e isto não tem nada de fascinante ou de bonito. Mantovani deixa claro a sua posição moral a respeito deste joguinho literário: isso não vai – e não pode – terminar bem. Entretanto, ele jamais impõe ao leitor a sua visão; apenas a mostra e exibe, em detalhes repletos de anagramas e inside jokes, a investigação que o próprio leitor deve fazer para descobrir qual é o trauma de Perácio.

E talvez aí se encontre o único obstáculo para uma leitura verdadeiramente emocional do romance. Mantovani é tão engenhoso em seu estilo, tão ambicioso em suas intenções e, ao mesmo tempo, tão cheio de panache ao não querer se levar a sério, que quando descobrimos o trauma de Perácio, ele está encoberto em camadas e mais camadas de ambigüidade – e ficamos sem saber se devemos ou não nos sentir tocados por aquilo. Sem dúvida, o trauma de Perácio é de fazer qualquer um chorar – e obviamente não contaremos aqui para não estragarmos a sua surpresa. Mas onde está a emoção? Como posso ficar simpático a um personagem que não sei se existe de verdade? Afinal, ele pode ser a invenção de CFD, o primeiro narrador da história, ou de Bráulio Mantoan, il diavolo, alter-ego do autor e que, parece, resolveu seguir o caminho de morto-vivo de Perácio. São perguntas que o leitor fica na cabeça ao terminar o romance – e que nos impede de entrar de cabeça na suspension of disbelief que Mantovani estruturou com tanto carinho.

Isso não acontece com Evandro Affonso Ferreira. Depois de quatro romances publicados, repletos de trocadilhos lingüisticos que disfarçavam a emoção de suas tramas, Evandro atingiu uma espécie de sensibilidade comovente em Minha mãe se matou sem dizer adeus. É a sensibilidade do escritor que reconhece suas limitações estéticas e formais e, através de muito malabarismo literário, consegue transformá-las em uma forma literária específica e única. Nós acompanhamos cada detalhe da consciência do velho de oitenta anos e, surpresa das surpresas, o que parecia ser apenas uma esterilidade esteticista, transforma-se em uma meditação de memento mori. Dessa forma, as dez páginas finais do romance é a prova de que um cético pode escrever sobre uma epifania que, como tudo nesta vida, também será rompida como um trauma. Contudo, trata-se de uma outra espécie de trauma: a da realidade invisível que invade a nossa e não admite novos acordos. Nada pode salvá-lo: nem a literatura e talvez nem a Santa Teresa D´Ávila que o narrador imagina estar personificada na garçonete ruiva vulgar e que acende o coração de esposas insatisfeitas. É neste “talvez” que Evandro se equilibra; se ele vai cair ou não da corda bamba, só o próximo livro irá dizer.

O mesmo pode ser dito de Bráulio Mantovani. Mesmo com o distanciamento emocional provocado pela descoberta do trauma peraciano, seu primeiro romance mostra que se trata de um escritor que sabe e domina o que faz. Se Evandro Affonso Ferreira conseguiu encarar os seus demônios somente depois de quatro livros, talvez Mantovani precise do mesmo tempo para que o leitor – e ele mesmo – consiga enfrentar até o fim as sombras que só o trauma pode nos dar, seja como benção ou como maldição. O que importa é que são dois autores que levam a literatura e a vida a sério. E no nosso Brasil brasileiro, em que as coisas são vistas como uma farsa de mau gosto, isto é uma vitória que nenhum trauma pode nos arrancar.

17 comentários em “A literatura do trauma

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  2. Martim,
    Como você e o Joel continuam a escrever artigos que são excelentes, mas insistem que sejam quilométricos (este agora até que não foi tão quilométrico assim), transcrevo abaixo, à guisa de comentário, artigo da ótima jornalista pernambucana Tereza Halliday:

    Tereza Halliday – Artesã de Textos
    terezahalliday@yahoo.com

    Atento leitor e amigo pergunta se eu estou sem tempo ou com preguiça de escrever mais. Notou que meus artigos nesta página encurtaram. Preguiça e falta de tempo eu tenho para fofocas e conversa de mesa de bar sobre a situação nacional.

    Meus artigos encurtaram porque obedeço às diretrizes do novo projeto gráfico do Diário: fontes/tipos maiores, dando maior conforto à leitura. Basta observar as colunas de Luce Pereira, João Alberto, Miriam Leitão, Marisa Gibson. Muito maior legibilidade. Na era dos blogs e twiteiros,os artigos desta página devem ser enxutíssimos. Agora, o limite máximo é 35 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 11. Assim, os temas são expostos sem recheios nem desvios, equilíbrio nem sempre conseguido por articulistas tendentes a circunvoluções no dizer por escrito.

    É a segunda vez, nesta década, que requisitam uma lipoaspiração nas matérias dos colaboradores. O primeiro arroxo inspirou-me o artigo “Em prol da Palavra Enxuta”(DP-10/08/2000, p.A-3), hoje disponível no site http://www.terezahalliday.com. Agradeço ao jornal por esse treinamento compulsório que me ensinou a escrever sem derramamentos nem redundâncias. Continuo defensora de textos claros, concisos e elegantes – metas a cumprir na criação ou editoração de um texto, a fim de comunicar bem.

    Como “escrevente”, faz-me bem o desafio de podar aqui, burilar ali, reescrever, reescrever, reescrever até conseguir um produto final enxuto. Artesã de textos com muitas horas de voo nas rotas da palavra escrita, “trabalho com as palavras como o carpinteiro e o ourives com a madeira e o metal”, na explicação lapidar de Thiago de Mello. Para adequar-se às novas regras, mesmo o mais verboso dos escritores nesta página, não mais cometerá este desperdício: “O que eu queria dizer é que…” – sete palavras inúteis. E somos instados a evitar penduricalhos como “bastante significativo” e “sem dúvida alguma”.O poeta Bastos Tigre acertou em cheio: “nada mais fácil do que escrever difícil. Na simplicidade está a grande complicação que dificulta o ofício”.

  3. Caro Virgilio,

    Bem entendo o que queres dizer, já que os sites parece que não se adaptam a textos longos; contudo, deixa o Martim e o Joel escrevem quanto se lhes vai na cabeça.

    Lembra-me que fizeram algo parecido com o Carpeaux e, confesso, quando pego o volume dos Ensaios Reunidos e comparo os primeiros e longos artigos com os últimos, curtinhos, dá vontade de chorar de raiva.

    Ora, o enfeite e o atavio também podem ser do estilo, por que não?

  4. Virgílio,

    Concordamos plenamente que escrever bem implica, entre outras coisas, economia de palavras. E também que, para muita gente, texto lido na tela tem que ser curto ou então não será lido.

    Contudo, acho que textos maiores (e note, os maiores costumam ter de 2 a 3 páginas; não são exatamente tratados) têm o seu lugar, pois nem tudo pode ser dito em meia página. Por outro lado, nem tudo precisa de várias páginas. Note, a esse respeito, que muitos posts aqui no site são curtos.

    Talvez um equilíbrio perfeito nunca seja alcançado; e certamente (falo por mim agora) meu estilo poderia ser mais econômico e portanto melhor. Quem sabe com o tempo e com a prática ele melhore. Até lá, não vamos deixar nem de fazer posts curtos com indicações e comentários rápidos, e nem textos mais longos com reflexões um pouco mais extensas.

    Nem tratado, nem twitter.

  5. Martim,

    Como sempre, excelente artigo e excelentes indicações.

    Você tem um estilo muito confortável para se ler (tanto no papel como na tela do PC). Ainda bem que você escreve para o Leo Strauss e não para um bando de jecas que tem preguiça de ler.

    Abraços,

    Henrique Santos

  6. Luis e Joel,
    Concordo com vocês em grande parte. Eu mesmo sou da escola antiga e, por isso, pródigo em palavras. Embora parentes próximos, o texto jornalístico difere do ensaístico e já discuti isto com Tereza, pois ela é basicamente jornalista (uma vez chamou livro meu de “tijolo”, e era!).
    O problema é que, como eu já disse antes e ela diz no artigo, a internet mudou tudo com a tal da “comunicação instantânea”, tipo facebook, twitter, etc. A moçada está “desaprend. a ler, já invent. té um cód. de palav. abrev.” e é urgente trazê-los de volta ao idioma e à cultura. Infelizmente não conseguiremos isto com textos ótimos, porém longos.
    Por gostar imensamente do que vocês escrevem, tornei-me leitor assíduo da Dicta e gostaria que todos fossem também, sobretudo os jovens, porque os velhos, como eu, já aprenderam o que tinham que aprender e sua tarefa agora é repensar e transmitir tudo aos novos. É disto que o futuro depende.
    Grande abraço.

  7. super dicas Martim…
    só o que me pergunto ao fim do seu artigo é:
    e nós que não escrevemos livros, quando vamos vencer nossos próprios demonios?
    será que encontro essa nesses ai!!! rs

    você escreve intimamente, é sempre uma delicia lê-lo.

  8. Ora, há sites e sites. Quem acessa o site da D&C já sabe o que vai encontrar e não tem motivos para reclamar do tamanho de alguns artigos.
    Quem tem laptop pode, muito bem, ler na cama, no sofá ou debaixo de uma árvore. Se alguém reclama de um texto um pouco mais longo na tela do PC é porque não leria mesmo se fosse numa revista ou jornal.

  9. Ricardo,
    Sua colocação, além de inverídica, mostra elitismo e desprezo pelo que se passa à nossa volta. Querer reduzir os ótimos textos da Dicta e de outros excelentes sites à uma “roda de iluminados” não contribui para a difusão da cultura e da civilização.
    Sou um velho e já li em tudo quanto foi lugar; tendo sido fazendeiro, até mesmo quando saía a cavalo e parava pra descansar, tinha sempre um livro comigo e o lia debaixo de árvores, sentado em pedras ou em toros caídos; não me diga que ler num lap-top é a mesma coisa!
    De qualquer forma, sempre coloco os textos da Dicta em meu mural no Facebook e os partilho; se o pessoal os lê, não sei dizer.
    Mesmo que não leiam, eu gostaria que lessem e me esforço pra isso.
    Grande abraço

  10. É Virgílio a fazer jus do nome que tem. A tarefa de recuperação da língua é para escritores de raça, que vão pegar este caçanje hodierno e transformar em língua de cultura.

    Caso exemplar: amigo meu me contou que, enquanto zapeava, deparou no canal Futura um prof. do curso de Letras da USP pontificando que já hoje em dia o pretérito-mais-que-perfeito é arcaísmo e não se deve usar. Este aqui é da raça de gente que pulula em cursos de jornalismo e quejandos (e que me perdoem a ênfase).

  11. Virgílio,

    É um fato provado que as pessoas, na internet, costumam frequentar sempre os mesmos sites. Nada mais natural, afinal pra que alguém vai perder tempo lendo algo que não lhe interessa?
    Quanto a você ler em tudo quanto é lugar, mesmo em seus passeios a cavalo, bem… devo dizer que você é a excessão da regra, meu caro! Infelizmente.
    Abraços.

  12. Talvez fosse mesmo, Ricardo, mas o engraçado é que os humildes moradores da fazenda admiravam a “esquisitice do doutor”. O pior é que não era passeio coisa nenhuma, mas trabalho, procurando com o meu vaqueiro boi perdido na caatinga. Sem ter a resistência dele, eu parava pra descansar e mandava ele continuar enquanto eu ficava lendo um pouquinho debaixo de um pé de pau. Parece que eu atrapalhava mais do que ajudava, pois ele logo aparecia com o boi fujão e voltavamos pro curral com ele cantando aboios. Parece piada, mas é verdade!
    Seria bom se a minha esquisitice pegasse na moçada de hoje, mesmo com lap-top e tudo!

  13. Martim,

    voce menciona no começo do texto que os livros vão na contramão da literatura brasileira atual por não falar de favelados e problemas sociais.

    quem seriam esses autores badalados que falam de favelados e problemas sociais?

    a década de noventa já passou, amigão. Tezza, Galera, Carvalho, Bensimon, Lísias. O povo bem-resenhado não fala de favela, não.

  14. Pingback: O Chamado do Barqueiro - O Camponês

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