As dores do amor

Vou me afastar um pouco dos lançamentos para falar de clássicos: Buster Keaton e casamento. Ao lado de Charlie Chaplin e Harold Lloyd, Keaton foi um dos maiores comediantes do cinema mudo (aqui, um artigo muito bom da Picture-Play Magazine de 1923, comparando os estilos de Chaplin, Lloyd e Keaton, mas principalmente sobre Keaton). Trabalhou em mais de uma centena de filmes, dos quais alguns dos melhores são escritos, dirigidos e produzidos por ele. Tinha como marcas registradas o chapéu achatado, sua expressão de jogador de pôquer (que lhe rendeu o apelido de “O Grande Rosto de Pedra”) e o humor físico muitas vezes acrobático. Nascido em uma família de artistas de vaudeville, foi acostumado desde a infância a dar piruetas e levar tombos em suas performances. Mas o que o destacava dos demais era o risco a que ele se sujeitava. Em 1924, por exemplo, durante as filmagens de Sherlock Jr., Keaton sofreu uma fratura no pescoço que um médico só descobriria anos mais tarde em uma radiografia. A cena, contudo, foi aproveitada no filme:

Um ano antes, em As Três Idades, Keaton já havia incorporado uma acrobacia mal sucedida na versão final do filme:

Já falei de fraturas e fracassos, passo agora ao casamento. Muitos de seus filmes terminam em casamento, provando que os desafios e as dores da conquista não são em vão. Tudo bem que em O Noivo Cara-Dura (Spite Marriage, de 1929) a mocinha que Keaton tanto ama casa com ele já no meio do filme, tudo para fazer ciúmes em outro rapaz, mas até o final ele provará que é digno de consumar o casamento e ser o marido de fato. E que em Seven Chances, de 1925 (filme refilmado com Chris O’Donnel no papel de Buster Keaton, sabe-se lá de quem foi essa ideia infeliz) o casamento é a condição estabelecida por um testamento para que ele receba uma fortuna (mesmo assim, ele foge de centenas de candidatas, atravessa arame farpado, um enxame de abelhas e escapa de um deslizamento de pedras gigantescas para chegar àquela que ele ama). Em Steamboat Bill, Jr., de 1928, após enfrentar sozinho um ciclone cuja destruição é verdadeiramente surreal (para quem não viu a cena histórica, um trecho aqui), seu personagem consegue resgatar sua amada e ainda dá um jeito de encontrar, em meio a destruição, um padre para finalmente uni-los em matrimônio. Em College, de 1927, interpreta um universitário muito pouco atlético que precisa se envolver com o mundo dos esportes para impressionar uma garota. Já em A General, de 1926, sem dúvida um de seus melhores, ele terá de participar da guerra civil se quiser mostrar o seu valor e ser aprovado pela amada. Os problemas, portanto, que seus personagens se envolvem têm muitas vezes a ver com a mulher amada, seja lidando com oponentes mais fortes e espertos (As Três Idades, 1923), com uma família de inimigos mortais (Our Hospitality, 1923) ou simplesmente tentando se sair bem em algum meio profissional para se tornar digno do apreço da moça (The Cameraman, 1928). Tais sacrifícios são necessários para se atingir o objetivo principal: desposar a amada.

O que acontece, contudo, após o casamento?

Sherlock Jr. sugere uma dificuldade extra, algo além do mero final feliz do matrimônio. Trabalhando como projecionista em um cinema, Keaton recebe a visita da mocinha. Sem saber como agir, ele segue algumas dicas do filme sendo exibido; na tela grande, o galã segura as mãos da amada, beija-as, coloca-lhe um anel, beija a atriz nos lábios e a abraça… Na tela menor da janelinha da sala de projeção, um frame dentro do frame, ele repete tudo isso timidamente e sem muito jeito. Na cena seguinte, o casal do filme já está com filhos, a atriz costurando ao lado do marido que regozija de felicidade. Keaton, então, coça a cabeça; como imitar isso? Da mesma forma, se Keaton pode nos ensinar sobre os sacrifícios do amor em seus filmes, com acrobacias, lutas corporais e esforços morais, como podemos fazer o mesmo na prática? Como conquistar aquela felicidade?

Na vida real, Keaton se casou três vezes. Com a segunda esposa, atriz de Our Hospitality, teve dois filhos que foram proibidos de ver ou falar com o pai por anos após o divórcio. Sua terceira mulher, contudo, continuou ao seu lado até a morte. Keaton morreu dormindo, aos 70 anos, pouco depois de um jogo de cartas com ela. As fraturas e os hematomas de uma vida toda devem, então, ter valido a pena.

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