Filosofia do terrorismo

Responda rápido: qual o grupo que mais sofre violência e discriminação no mundo? Se você respondeu os cristãos, acertou. E o fato mais alarmante é que a situação tem piorado; onde outrora cristãos e muçulmanos viviam em paz agora vigoram a intolerância e o terrorismo. No Oriente Médio a situação é extremamente grave. O êxodo de cristãos é maciço. Países com grande população cristã tradicional, como Líbano e Egito, têm virado palco de violência constante.

No Egito, particularmente, o fim do ano foi marcado pelos ataques a igrejas coptas (a principal Igreja do Egito, que se separou do ramo maior da Igreja no século V). O jornal Ahram publicou um editorial exaltado, no qual o autor, incrédulo quanto às mudanças de atitude islâmica que ele observa, acusa não só os fundamentalistas, mas também os moderados que, ainda que não partilhem das conclusões, aceitam passivamente as premissas do preconceito que alimenta o terrorismo, e os intelectuais que, embora deplorem a violência, não tomam atitude nenhuma. Resta saber, contudo, qual a “única opção” que o autor tem em mente; seria a resistência armada? O Papa Shenouda III (“Papa” é como o Patriarca de Alexandria – ou seja, o bispo supremo do país – é tradicionalmente chamado), num comunicado algo decepcionante, espera que a solução venha do governo e da lei que torna a todos iguais. Num momento em que as próprias instituições políticas refletem os preconceitos crescentes na sociedade, parece-me ingênuo; seus chamados à calma, à paz e ao diálogo são sensatos e justos, mas só funcionam se o adversário der um mínimo de valor à dignidade humana enquanto tal, o que não é o caso dos fundamentalistas. Por outro lado, mostrando que as palavras do Papa egípcio têm sabedoria, uma iniciativa muito positiva foi tomada por muçulmanos que se comprometeram a servir de escudos humanos nas igrejas para evitar futuros ataques. Isso eleva o cacife do jogo, pois a cada novo ataque tenderá a aumentar a rejeição da população muçulmana normal ao islamismo fundamentalista e político. Isso é o que se espera; na prática, até agora, o discurso fundamentalista tem encontrado mais e mais eco na maioria moderada.

Quais as causas desse crescimento da tensão religiosa? Há um fato observável: o islamismo de tipo salafi, ou fundamentalista (considera que a regra do Islã são as práticas das primeiras três gerações de fiéis; tudo o que veio depois deve ser recusado), tem crescido. Seu principal idealizador foi o sunita Abd-Al-Wahhab, fundador da detestável seita wahhabita. O maior incentivo institucional ao wahhabismo vem da monarquia saudita, que sempre aderiu a essa escola de pensamento, tendo até destruído lugares santos islâmicos (como a tumba do neto de Maomé e a de Fatima, uma de suas filhas) por supostamente incentivarem a idolatria. Que os EUA continuem a ter os Sauditas como aliados ao mesmo tempo em que levam adiante uma guerra ao terror é no mínimo embaraçoso. Mas é claro que o wahhabismo não é a única fonte do terrorismo. É só lembrarmos de Sayiid Qutb (Martin Amis nos introduz à vida e pensamento desse personagem singular, dentre muitas outras considerações sobre o Islã, o Ocidente e a religião em geral neste artigo de 2006), cujo pensamento revolucionário é uma da grande influência dos membros da Al Qaeda. Em comum todas têm o desejo de um Islã puro e sem acréscimos.

O Cristianismo também tem seu fundamentalismo, seu movimento de volta às raízes supostamente puras pré-institucionais, presente em alguns grupos protestantes. A diferença é que eles, por mais questionáveis que sejam suas crenças e atitudes, não estão explodindo ninguém. Há algo diferente no Islã.

Qual a causa espiritual mais profunda dessa facilidade para o fundamentalismo e a militância violenta (que existe em todas as religiões, mas aqui encontra condições mais propícias)? Algo da resposta pode ser econtrado aqui: The Closing of the Muslim Mind. Na opinião de Robert Reilly, o autor, o problema não é uma consciência revestida do sobrenatural (como argumentaria Martin Amis acima linkado), mas sim o tipo de sobrenatural do qual ela se reveste.  O Islã já nos deu grandes mentes. A teologia racional, no entanto, bem como todo o ímpeto científico, foram condenados no berço; houve um período de conflito intelectual, assim como houve no Cristianismo (e a vitória, no Ocidente ao menos, foi para o lado que afirma o valor da razão), mas no final das contas a posição denominada asharita venceu. O que ela ensina? Tudo é vontade arbitrária de Deus e ponto final. Na filosofia da natureza, isso significa negação da causalidade; na ética, negação da lei natural. Na prática, sociedades miseráveis e homens-bomba. Ao homem cabe calar sua razão e se submeter; aniquilar tudo que não a fé. Isso coincide com o que viu e descreveu V.S. Naipaul na sua Wriston Lecture no Manhattan Institute em 1990.

Em dias normais sou um otimista e acredito no que há de sadio, tolerante e belo no Islã. Mas notícias como as atuais acentuam seus aspectos mais sombrios: o vazio interior, a violência, o totalitarismo do sagrado na vida do indivíduo. Resta saber se são aspectos contingentes ou necessários dessa que é a segunda maior religião do mundo e com a qual, querendo ou não, teremos de conviver.

7 comentários em “Filosofia do terrorismo

  1. Já há algo disso, da omniarbitrariedade divina, na sura xviii, no conto do enviado de Deus, que parece ser importante porque seria recitado toda sexta-feira. Mas o pior da cultura ocidental do século passado tem seu papel. Os nazistas tinham uma rádio transmitida em árabe, e a União Soviética treinou muitos dos grupos terroristas islâmicos nas décadas de 70 e 80.

  2. Essa pior parte da cultura ocidental é exatamente a negação da cultura ocidental: o coletivismo, o ódio à razão, ao mercado. E o Islã aparentemente era muito receptivo a ela, e por isso mesmo tantos grupos islâmicos hoje têm nítidos traços soviéticos. O próprio Qutb era um revolucionário radicalmente anti-americano e sonhava com uma utopia da sharia: o mundo no qual a sharia é tão bem seguida que não é mais necessário que exista um Estado para fazê-la valer.

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  4. EL ISLAMÍSMO Y EL JUDAÍSMO SON AFLUETES DE LA LETRINA OSCURANTISTA QUE IMPONE POR LA FUERZA LO QUE NO ACEPTA LA RAZÓN, ADUCIENDO FALAZMENTE QUE ES PALABRA DE DIOS. ACTUALICEMOS EL CRISTIANISMO A FIN DE DERROTARLOS: Formulando un cristianismo que se pueda vivir y practicar, no en y desde lo religioso y lo sagrado, sino en y desde el humanismo secular laico, la pluralidad y el sincretismo, resaltando la importancia genérica de Cristo y sus enseñanzas. Y para poder lograrlo tenemos que actualizar la teología, la cristología y la liturgia, enmarcadas en la doctrina y la teoría de la Trascendencia humana, conceptualizada por la sabiduría védica, instruida por Buda e ilustrada por Cristo; la cual concuerda con los planteamientos de la filosofía clásica y moderna, y las respuestas que la ciencia ha dado a los planteamientos trascendentales: (psicología, psicoterapia, logoterápia, desarrollo humano, etc.). Sincretismo religioso expresado por Raimon Panikkar, para explicar su sincretismo y pluralidad: «Me marché cristiano, me descubrí hindú y regresé budista, sin haber dejado de ser cristiano». http://www.scribd.com/doc/42618497/Imperativos-Que-Justifican-y-Exigen-Urgentemente-Un-Nuevo-Enfoque-Del-Cristianismo-A-Efecto-De-Afrontar-Con Éxito-Los-Retos-De-La-Modernidad

  5. Acho que não tem nada a ver com religião:

    Embora apareça como oposição entre grupos religiosos, o motivo da briga é dinheiro

    Tem sido assim, o conflito mais observado é entre os que “tem” e os que “não tem”, desde há tempos

    É formidável como a ralé tem essa capacidade de usar um livro, “uma escritura”, pra dar legitimidade à violência contra à propriedade, aos roubos e aos saques.

  6. Um comentário na lateral do campo.

    O artigo linkado em “iniciativa muito positiva” remete a um fenômeno bacana, especialmente para quem tem a chance de observá-lo fora das páginas dos livros (ok, passar um tempinho no Oriente não é tão fácil, mas também não é tão raro). Há em sociedades culturalmente muçulmanas um “Islã da rua”, ou “convivial”, que nada tem a ver com entrincheiramentos miméticos, por assim dizer. Humanamente é enriquecedor quando esse convívio “microcósmico” de todos os dias se dá em clima de equilíbrio, e sim isto é possível e não implica apagamento de diferenças em vagos esquemas pseudo-abraâmicos.

    Por outro lado, gente que conhece a realidade no campo – refiro-me agora a Alexandria e ao Egito – conta que de fato há mudanças negativas de uns tempos para cá no clima sócio-político incidente sobre as expressões de fé cristã. E é claro que isso não se limita a Alexandria nem ao Egito.

    Mesmo que seja terreno batido, no mais, é sempre bom recordar que essas manifestações de barbárie reemergem como fenômenos de massa ao mesmo tempo em que no Ocidente nos afastamos tão completamente de referências que há apenas uma geração constituíam terreno comum. Sinal dos tempos: editorial do “Guardian” agora em dezembro dava conta do fato de que no Reino Unido, no espaço de uma geração, o cristianismo tornou-se minoritário. Aqui: http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/dec/24/religion-respecting-the-minority

    Por fim, e para quem se interessa por tema tão específico – mas importante à beça – este livro mais ou menos recente sobre a situação dos cristãos na Terra Santa é leitura despretensosa e esclarecedora: http://www.amazon.fr/Chr%C3%A9tiens-Terre-sainte-Disparition-mutation/dp/2226180583

  7. Excelente artigo, Joel.

    Somente uma correção: Fatima não foi esposa do profeta Muhammad; mas sua filha, a predileta, fruto do casamento com Kadija.

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