Gramáticos e Dialéticos, ou o prazer do debate

A ignorância mútua entre “cigarras mágicas” e “formigas engenheiras” não é tão solene como comenta Julio Lemos em seu artigo sobre a morte de Michael Dummett – um dos mais controversos desta Dicta online. Ambos se “cutucam” sempre que podem e, para seguir nos termos facebookianos, se “descurtem” a cada nova ocasião. Eu não sou treinado em filosofia, treinado em coisa alguma, como bem sabem meus amigos diletos, e me resigno a ficar na arquibancada.

O melhor da discussão, no entanto, não estava na distinção entre filósofos sistemáticos e assistemáticos – uma mera provocação do Julio, pelo que entendi. Sei, e imagino que todos saibamos, que há os bons e maus profissionais em uma fileira e noutra. O melhor veio quando o professor Olavo de Carvalho habilidosamente mudou o rumo da prosa, tomando um aspecto tangencial do texto de Julio, o da relação entre filosofia e lógica, e desta com o conhecimento humanístico, e chamou para si a conversa.

Soou o gongo, e cá estamos. A platéia, que quase nunca entende do bom esporte, só quer ver sangue, o que é natural. Eu aguardo as tréplicas, os clinches e o devido pedido de tempo, não por sadismo mas pela oportunidade de ver atualizada uma discussão que já conta alguns séculos e que me deparei casualmente ao ler a obra completa de Marshall McLuhan, mais especificamente sua tese de doutorado “The Classical Trivium – The Place of Thomas Nashe in the Learning of his Time”. O futuro comunicólogo e causeur era aquela altura, ainda, um aplicado estudante de literatura a se debruçar sobre uma bibliografia monstruosa, com objetivo de traçar a história das disciplinas do ensino medieval, de Agostinho a Erasmo. Usa para tanto, como estudo de caso, a discussão pública dos oradores e polemistas Gabriel Harvey e Thomas Nashe. O livro é um barato, embora denso e difícil. Deve estar a esta altura sendo traduzido pela É Realizações (informação de bastidores…).

Once one has stablished the main traditions as they are formulated by St. Augustine, one knows how to tackle the Middle Ages. Medieval culture was to be grammatical and not rhetorical because St. Augustine, though himself a Ciceronian, determined the mode at once of science and theology as that of grammar. The Caroligian renaissance is a renaissance of grammar. The renaissance of the twelfth century is the renaissance of dialectics and is a period of strife between dialectics and grammar, with dialectics achieving complete ascendancy in all places save Italy. The Grand Renaissance which traditionally is associated with Petrarch is, in the first place, the reassertion of the claims of grammar against the Goths and Huns of learning at Paris. From the point of view of the medieval grammarian, the dialectician was a barbarian. Thus it was Petrarch the grammarian glaring at the dialectical triumphs of the twelfth and thirteenth centuries who provided the modern journalist with his cliché ‘the barbarism of the Middle Ages’ (…) From the time of the neo-Platonists and Augustine to Bonaventure and to Francis Bacon, the world was viewed as a book, the lost language of which was analogous to that of human speech. Thus the art of grammar provided not only the sixteenth-century approach to the Book of Life in scriptural exegesis but to the Book od Nature, as well.

Se me permitem a “poetice”, uma fascinante briga entre “lógica” e “analógica”. O debate entre Olavo e Julio pode ser oportunidade para retomarmos uma discussão antiga e muito estimulante: qual a precedência da lógica frente às demais ferramentas do conhecimento filosófico? Pelo que parece, uma escola advoga ser ela uma necessidade, outra, um subsídio. Questão de ênfase, poderíamos dizer, mas a coisa é intrincada pois nomeamos por lógica diversas coisas desde a reinvenção que faz Petrus Ramus das técnicas da escolástica – e dali, o céu (ou o inferno) foi o limite. Não tenho como entrar no tema assim de gaiato; deixo para os profissionais.

Parafraseio Arthur F. Leach: “não chega a ser um exagero dizer que os assuntos e métodos da educação seguem os mesmos desde os dias de Quintiliano…”. Torço para que siga o debate e que todos respeitem a linha de cintura. Só posso participar nos intervalos de cada round.

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