House no raio-x

Não há atualmente melhor série televisiva do que House (salvo um possível concorrente: The Good Wife). Personagens marcantes e um mistério envolvente a cada episódio levam-me à tela toda quinta à noite. E me entretém ainda mais a profundidade filosófica da série ao expor com honestidade sua concepção do ser humano e da relação entre razão e sentimentos, concepção aliás muito comum, cujos atrativos e fraquezas ficam explícitos, pois não se foge das possíveis contradições e dos becos sem-saída existenciais aos quais suas premissas básicas naturalmente levam.

Como é comum em tantas séries, House entrelaça duas narrativas: uma de curto e outra de longo prazo. A de curto prazo consiste em House e sua equipe desvendarem e curarem uma doença misteriosa a cada episódio, numa fórmula que pouco varia a cada semana. Isso permite ao espectador não-assíduo acompanhar qualquer episódio, tendo, ao fim dele, uma boa idéia do que é a série. Já a narrativa de longo prazo desenrola-se ao longo de vários episódios e até de temporadas. Nela, acompanhamos as mudanças na equipe do hospital e no relacionamento de seus membros, com o foco nos altos e baixos pessoais de House, que ora parece se afundar ainda mais em seus vícios, ora parece tornar-se, passo a passo, uma pessoa melhor. O que faz dessa série algo muito superior à média é que a narrativa de longo prazo mina e questiona as verdades tidas como evidentes na narrativa de curto prazo.

O curto prazo

O gancho que prende o espectador não é o enredo, mas os personagens, principalmente o protagonista, o médico Gregory House, que encarna à perfeição a idéia contemporânea de racionalidade: no âmbito do pensamento, a busca da verdade pelo método científico e, no da ação, a adequação de meios a fins. Nada que fuja disso é racional. A razão é entendida como oposta a sentimentos, a qualquer fé ou crença não-científica, e à moralidade (todos os três províncias das paixões). Sendo assim, a motivação de House enquanto médico não é salvar vidas (o que seria uma intromissão dos sentimentos, da empatia) mas pura e simplesmente descobrir a verdade, desvendar os enigmas apresentados pelos pacientes que lhe são encaminhados. Sua inteligência lhe permite, além disso, ser igualmente brilhante no diagnóstico das motivações humanas e dos relacionamentos alheios, que também o interessam sobretudo enquanto enigmas e objetos de manipulação. Como não poderia deixar de ser, racionalidade significa ateísmo convicto e uma visão cínica da humanidade (todo indivíduo é egoísta). O que o salva de ser insuportável é o senso de humor, que não se priva de nenhuma tirada espirituosa. Nem a paz de espírito e nem a ilusão de bondade devem vir antes da busca pela verdade que, por mais dura que seja, não nos impede de rir dela.

É até eufemismo chamar House de brilhante, pois o mesmo adjetivo se aplicaria a todos os médicos da série, verdadeiros manuais de medicina ambulantes, com casos excepcionais e notas de rodapé na ponta da língua. A racionalidade superdesenvolvida de House faz com que ele ascenda ao patamar da genialidade. Frequentemente, após tentar, sem sucesso, descobrir de todas as maneiras a doença que aflige um paciente, ele encontra a resposta numa situação não-relacionada ao caso. Uma conversa com seu colega Wilson, ou com a coordenadora do hospital, Cuddy, um comentário espirituoso ou um fato aleatório lhe leva ao insight inesperado que soluciona o caso. O trabalho de processamento e interpretação dos dados é automático e constante, de forma que a resposta apareça quando menos se espera. É essa genialidade do intelecto, essa faísca criativa e penetrante, que faz de House um médico superior aos demais; e é ela também que o torna mestre em decifrar pessoas.

Sua segunda característica distintiva é consequência da aplicação consistente da racionalidade às ações: a total ausência de escrúpulos na adequação de meios a fins. Quebras de protocolo; transgressões da lei, de mandamentos religiosos e de absolutos morais; métodos heterodoxos; procedimentos arriscadíssimos (ex: matar temporariamente um paciente para logo depois trazê-lo de volta à vida); nada o detém. Sua genialidade justifica ações que, num médico inferior, seriam condenáveis. Nos casos mais extremos, está disposto a praticar o aborto e a eutanásia sem titubeios (felizmente, na imensa maioria dos episódios ele salva vidas). Apesar do grave problema moral envolvido aí, é impossível negar que, aceitas as premissas por trás da narrativa mestra, seria arbitrário impor limites éticos (ou seja, sentimentais) à conduta do gênio, o único capaz de chegar ao fim almejado.

O médico gênio é, no entanto, um fracasso pessoal. Divorciado, solitário, recluso, ressentido. A personalidade anti-social, a língua afiada, a ironia implacável e a facilidade psicológica com que engana e manipula aqueles à sua volta fazem com que seja quase impossível aguenta-lo por muito tempo.

O único amigo de House é Wilson, seu oposto humano (embora também ótimo médico). Wilson vive em contato com seus sentimentos e – mais importante – com os sentimentos dos outros; não para desmascará-los e desmistificar a bondade alheia, como faz House, mas para oferecer consolo a quem precise. Dar conforto emocional é sua razão de existir, e por isso ele não vê grandes problemas em deixar cada um com suas crenças (ao contrário da intransigência cientificista do amigo); a paz interior pode ter prioridade sobre a verdade – mesmo porque muitos dos seus pacientes (ele é oncologista) têm apenas a morte pela frente, enquanto os de House costumam padecer de doenças curáveis.

O longo prazo

O melhor da série é que ela não simplifica e não estereotipa as coisas; há uma honestidade e um realismo maior do que estamos acostumados na TV. A narrativa de curto prazo pinta o quadro do racionalista bem-resolvido que enxerga a realidade como ela é, embora pague um preço alto por isso. A narrativa de longo prazo indica que há mais coisas entre o céu e a terra do que ele sonha. House renega suas emoções e sua consciência, mas nem por isso elas deixam de existir. Diz que sua motivação é puramente intelectual, mas diversos episódios revelam que a empatia e o desejo de curar os pacientes também o movem.

A frieza irônica, por sua vez, é um mecanismo de defesa, fruto de uma personalidade profundamente ferida. Sua vida é marcada pelo arrependimento e pela falta de coragem de ir atrás do que realmente quer (por exemplo, o amor de sua vida). Além disso, uma dor crônica na perna (não se sabe até que ponto física ou psicológica) o deixa permanentemente manco e mal-humorado, e o humor cruel é uma forma de partilhar a frustração que sente. Fica confortável apenas naquela atividade em que exerce total controle e superioridade. O vício em analgésicos é um símbolo dos vícios de comportamento. Longe de transformar House num ser desprezível, contudo, esse lado mais humano torna-o digno da simpatia do espectador. Não se trata, afinal de um psicopata, desprovido de uma consciência que o guie. Por mais que, teoricamente, encare seu senso moral como um entrave emotivo a uma vida puramente racional, também não quer se livrar dele.

Já Wilson, muito mais confortável com seus sentimentos e relacionamentos, também tem uma vida pessoal em frangalhos. Três divórcios (e muitos casos que não levam a nada) e incontáveis arrependimentos. Embora seja uma boa pessoa sempre disposta a ajudar, seu caráter é ambíguo. Ser amigo de Wilson é enredar-se numa malha de culpas, sensibilidades e auto-piedade; é cair numa teia de tentáculos emocionais que constituem uma prisão da alma. Usando a expressão perspicaz de Nietzsche, o oncologista parece ser daqueles sempre a procura de vítimas para suas boas ações, e que termina por sufocar quem dele depende. Assim, se Wilson é o único com a paciência e a disposição para ser amigo de House, House é o único com o devido distanciamento, frieza e ironia para aguentar a amizade de Wilson. Tudo considerado, Wilson é um ser humano mais completo e maduro do que House, e na maior parte das vezes tem bons conselhos a oferecer; mesmo assim, fica claro que a vida dos sentimentos e relacionamentos não oferece uma saída e, assim como a suposta razão pura, ela também pode esconder fraquezas de caráter e desejos mais baixos.

Há um certo pessimismo acerca do lado “humano” da vida. Se na ciência chegamos a verdades e certezas, na vida pessoal não há solução. Todos os casamentos e relacionamentos amorosos terminam em separação ou são vítimas da infidelidade, e todas as amizades e lealdades, quando não baseadas desde o início em alguma ilusão, estão sujeitas ao desapontamento e ao rompimento.

Um diagnóstico?

No final das contas, a série não se decide. É possível um ato não-egoísta? Qual é a postura mais de acordo com a realidade: a racionalista ou a sentimental? Oscila-se entre duas possíveis concepções de moral: uma positiva, segundo a qual a ética consiste em sentimentos que nos levam a ajudar os outros e nos sentir bem – paixões irracionais, é verdade, mas a constituição humana demanda uma certa irracionalidade e o resultado final é bom; e outra negativa, segundo a qual a ética é um resíduo de instintos e pressões sociais acumulados que nos torna infelizes e, pior ainda, serve de máscara para o  egoísmo.

Felizmente, é a primeira visão que costuma prevalecer nos momentos mais importantes. É uma visão pobre, admito, mas é tão longe quanto a série pode ir sem abandonar sua concepção de mundo inicial: a idéia de que razão e sentimentos, verdade e moralidade, ciência e fé, vida profissional e pessoal ocupam esferas completamente separadas, quando não antagônicas. Na ciência, verdade objetiva; no trato com pessoas, na conduta ética e na religião, apenas subjetividade. A idéia antiga de uma ciência da felicidade (ou seja, a ética), de que as paixões humanas devem obedecer a um ordenamento racional e que a razão recebe delas dados importantes, em suma, que a objetividade seja possível tanto nas “humanas” quanto nas “exatas”, é totalmente alheia ao seriado.

Bem, quase totalmente, pois há duas exceções. A primeira delas, bem pouco explorada, é a arte, em particular a música, que funciona como a válvula criativa de House. A segunda é o sentimento de culpa, cujos efeitos devastadores sobre os personagens a série não tem pudores de mostrar. Isso indica a percepção de uma ordem objetiva nos atos humanos, passível de ser violada. Contudo, ninguém sabe o que fazer com ela. A confissão da falta é frequentemente vista como um ato egoísta, um alívio da consciência às custas de quem ouve a confissão. E o perdão, mesmo quando sincero, é incapaz de restabelecer a ordem moral e a paz de espírito ao pecador. Fica-se entre duas escolhas ruins: a verdade dolorosa e que nos torna solitários, ou a felicidade e o companheirismo numa vida de ilusões. E não poderia ser diferente num mundo onde o Cristianismo enquanto possibilidade real de salvação morreu mas em que seus juízos de valor e idéias da importância do perdão permanecem como um resíduo sentimental que exige uma resposta. Mas se tudo que não é científico é subjetivo, então a razão é incapaz de nos tirar desse impasse.

No final das contas, temos que concluir que a concepção de razão da série (que é, enfim, a concepção moderna) é incapaz de lidar satisfatoriamente com a realidade. House não é o homem racional, e sim o homem que baniu a razão de todas as esferas de sua vida exceto uma, ainda que nessa uma ela opere excepcionalmente. Não há equilíbrio e nem justa medida. A razão elenca meios para se chegar aos fins, mas é incapaz de mostrar quais os fins nobres e dignos de serem perseguidos. Será possível uma mudança em House nessa direção de uma razão mais completa, ou seja, uma mudança outra que a mera intrusão irracionalista dos sentimentos na conduta, que o tornaria um médico pior e, pior ainda, nos privaria das tiradas satíricas pelas quais ele é tão amado? Não sei. Sei que, se isso acontecesse, a série acabaria; mas não deixaria de ser um belo final.

28 comentários em “House no raio-x

  1. Prezado Joel,

    acredite: descobri House há cerca de um mês; e, claro, viciei. A vantagem de começar a assistir à série com algumas temporadas de atraso é que há episódios novos todos os dias (pelo menos para quem tem o Universal Channel).

    Gostei muito de sua análise, bem escrita, detalhada e completa. E mais ainda da sugestão para o final da série! Seria bem surpreendente ver um House como um homem amadurecido na virtude… entretanto, bem pouco provável mesmo…

    Abraços.

  2. Joel,

    Nunca assisti a nenhum espisódio dessa série, mas me impressionou sua análise – ao menos em tese – da ‘ratio’ moderna.

    Uma pergunta: há questionamento dos personagens sobre o sentido da vida? Há uma resposta sobre o porquê viver?

  3. Há muito questionamento sobre o sentido da vida, embora não haja respostas. A única que surge com mais consistência é “fazer aquilo que se quer, respeitando os direitos dos demais”. Não há fins racionais; quem dita os fins são as paixões, que podem mudar de pessoa para pessoa, embora (e aqui voltamos ao grande mérito da série) haja certas pulsões e desejos naturais que, por mais que os neguemos, continuam a existir.

  4. Joel, parabéns pela análise.
    Em resposta ao Wagner, eu diria que em um episódio se chegou perto disso: trata-se de quando um homem em estado comatoso há anos é “ressucitado” pelo House, em funcao de ter um filho com uma condicao cardiaca que necessidade de um transplante.

    No final, depois de várias revelacoes de ambos os lados, mas especialmente no lado de House, o pai (spoiler alert!!) se mata para deixar o coracao ao filho.

    O diálogo de Cuddy e House depois disso, apesar de curto, curtíssimo, explica muito o que House (i.e. os roteiristas) pensam sobre o assunto.

    Outro episódio que, na minha opiniao, mostra essa concepcao referido pelo Joel é o do casal de mulheres, em que uma doa seu rim a outra, mesmo sabendo que o relacionamento nao vai bem.

    Joel, que tal um breve comentário sobre uma das frases mais marcantes da série, estranhamente do primeiro episódio da primeira temporada:

    “Our bodies break down, sometimes when we’re 90, sometimes before we’re even born, but it always happens and there’s never any dignity in it. I don’t care if you can walk, see, wipe your own ass. It’s always ugly. Always. You can live with dignity, we can’t die with it.”

    Cinismo ou realismo?!

  5. Boas recordações, Pedro. Lembro que nesse episódio do paciente em coma que ressuscita, seu único desejo (ele sabe que dentro de um dia voltará ao coma irreversível) é comer um certo sanduíche numa lanchonete especial em outra cidade. – Ou seja, o fim é determinado pelo gosto subjetivo; meu gosto pode parecer absurdo para alguns, mas na realidade é tão válido quanto todos os outros.

    No final das contas, ele percebe que há coisas mais importantes que ele pode fazer, como ajudar o filho. Infelizmente, aqui entra novamente o conseqüencialismo da série: cometer o suicídio é meio válido para se salvar uma vida.

    Esse episódio também vai um pouco mais a fundo na psique de House, mostrando os motivos pelos quais ele quis entrar na medicina (embora não fique 100% claro que ele está contando uma história verdadeira ou apenas inventando-a para satisfazer a curiosidade do paciente): na ciência, mesmo os fracos e rejeitados podem ser respeitados; basta que tenham razão.

  6. House está cheio de frases cínicas e pessimistas, mas no fundo sabe que há mais para ser dito; só tem medo de expressar esse seu outro lado, mais profundo.

  7. Excelente análise, Joel!

    O programa pode ter algo de materialista, mas é um materialismo com inquietações – que não acha tudo óbvio – , o que torna o diálogo possível (e interessante!).

    Pra quem quiser aprofundar, sugiro estes escritos: “House, sweet House…” (http://henriquecal.blogspot.com/2010/03/house-sweet-house_2298.html) que também traz uma seleção de suas melhores frases!

    Por último, a bela canção que toca nos momentos reflexivos de House tem uma letra que me parece semelhante ao que se disse por aqui sobre o personagem. Ouçam em: http://www.youtube.com/watch?v=vIMOdVXAPJ0

    Espero que gostem das indicações!

  8. “You can live with dignity, we can’t die with it”

    Parece que eles têm tendências nihilistas, não?

    Gosto de pensar que a vida só tem sentido se a morte puder ser vencida. Sem isso só vejo racionalidade no nihilismo.

    Muito bom esse thread.

  9. “Sua genialidade justifica ações que, num médico inferior, seriam condenáveis. Nos casos mais extremos, está disposto a praticar o aborto e a eutanásia sem titubeios”
    “Infelizmente, aqui entra novamente o conseqüencialismo da série: cometer o suicídio é meio válido para se salvar uma vida.”

    Joel, como um católico que você sempre afirmou que é, você realmente consegue ficar tão excitado com a série House? Definitivamente, catolicismo e o consequencialismo da série, que você reconhece existir, estão em lados diametralmente opostos.
    Cara, pare e preste atenção no que você acabou de elencar: aborto, eutanásia e suicídio! Tudo isso mostrado como algo positivo desde que se alcance com sucesso os fins almejados.

  10. Só complementando. Não há texto bem escrito, com bons diálogos, direção bem conduzida, estética refinada que justifique a adesão de alguém que se diz cristão a séries (ou qualquer outro produto de arte ou entretenimento) deste tipo.

  11. Não é niilismo, é puro e simples realismo.

    Se velhos ou moços, no hospital ou em casa, de repente ou lentamente, todos morremos; e não importa quão digno alguém classifique sua morte, no final das contas, o que você faz da sua vida é o que importa. Seus atos aqui, agora.

    Siga pensando que a morte pode ser vencida e certamente sua vida não fará o menor sentido…

  12. Rodrigo, a apreciação de criações artísticas não deve se pautar, antes de tudo, pelo juízo moral. Que a série tenha aspectos moralmente condenáveis é fato; e a causa disso está nas concepções filosóficas que a animam, como tentei mostrar. O bom da série é exatamente a capacidade dela de enxergar que suas concepções básicas podem ser seriamente inadequadas.

    Além disso, os episódios em que se cometem esses atos são poucos, e a avaliação moral deles é frequentemente deixada em aberto (em um ou outro episódio, infelizmente, há uma aceitação geral de um ato do tipo, mas é raro). A série não é uma apologia do aborto, da eutanásia ou do suicídio. Não se trata de propaganda, mas de uma exposição honesta de uma visão de mundo, com as fraquezas inerentes a ela.

    A apreciação moralista (que coloca o valor moral das ações descritas acima de tudo) da arte é pobre e obtusa, e acaba por condenar a maior parte das grandes obras da humanidade (claro, House não é uma delas, mas não deixa de ter seu valor).

    Por acaso a Odisséia de Homero passa no seu crivo moral? Óbvio que não. Mas o papel da arte não é dar lições de moral. Aliás, qualquer obra que tenha isso como seu primeiro e principal objetivo provavelmente não será uma obra muito boa.

    Falando em Catolicismo, a própria tradição católica tende para a minha visão. Cito um decreto do Concílio de Trento (fonte inesperada, hein?): “Livros que lidam ostensivamente, narram ou ensinam coisas lascivas ou obscenas estão absolutamente proibidos, já que não apenas matérias de fé mas também de moralidade, que é em geral facilmente corrompida pela leitura desses livros, devem ser levadas em consideração, e aqueles que os possuem devem ser severamente punidos pelos bispos. Livros antigos escritos por pagãos podem, em razão de sua elegância e qualidade de estilo, ser permitidos, mas em hipóstese alguma lidos para crianças.” (negrito meu, tradução minha do inglês: leia os outros decretos sobre livros em http://www.fordham.edu/halsall/mod/trent-booksrules.html )

    Veja só, isso sobre livros obscenos e lascivos, coisa que a série House definitivamente não é (e o conteúdo obsceno foi sempre considerado o motivo moral mais sério para não se ler ou assistir uma obra, dado que, diferente dos outros pecados, a própria descrição neutra de atos obscenos pode levar o leitor a pensamentos lascivos). Mesmo os padres do Concílio de Trento, num momento de grande fechamento e centralização do poder da Igreja reconheciam que o valor artístico não é função direta do valor moral.

    Por fim, numa nota mais pessoal: Rodrigo, não sei o que fiz para que você, mas, sinceramente, deixe passar! Quanto à minha Fé, minha alma e minhas supostas inconsistências enquanto católico, peço apenas que você reze mais por mim e se preocupe menos em me condenar.

  13. “A apreciação moralista (que coloca o valor moral das ações descritas acima de tudo) da arte é pobre e obtusa, e acaba por condenar a maior parte das grandes obras da humanidade (claro, House não é uma delas, mas não deixa de ter seu valor).”

    Apesar de ter gostado o suficiente da sua resposta para não escrever nada além. Ainda
    citaria um episódio. Uma menina que sofre abusos e decide-se no fim por abortar. Ela ao que parece pela narrativa do episodio, estudou a fundo alguma religião, creio que seja o cristianismo e é uma praticante de sua religião, ela mesma condena a atitude que está prestes a tomar. No entanto, a impressão é de que já não segue estritamente sua própria fé, porque parece ser incapaz de perdoar seu agressor, então o que seria “um pecado a mais” que no caso, diz respeito ao aborto. Conto o fato só para situar o momento seguinte, em que ela e o protagonista House, estão sentados numa praça, e então surge o tema religião, que é deixado em aberto aos espectadores, no entanto é citado sem pejorativos, como um cristão mesmo com a fé mais intacta pode viver em algum momento dúvidas e cometer “erros” pecados. Afinal Pedro negou, Paulo perseguiu, “não vim para chamar os justos mas os pecadores arrependidos”, de qualquer maneira, a série pode ser vista de milhares de pontos de vista, esse episódio, a qualquer ser humano mais sensível, poderia até ser um encontro à conversão.
    Independente dos valores que qualquer meio apresente, quando o seu sistema de valores é sólido, será que ele pode ser corrompido tão facilmente? E será que estar completamente enclausurado dentro de um mundo de virtudes te faz um virtuoso realmente? São válidas as regras respeitadas apenas por convenção, sem um pensamento critico e sem a compreensão de porque respeitá-las é algo bom? Osmose, pragmatismo, chegamos a algum lugar melhor por essas bases, que não pela própria inteligência, dom do Espírito Santo? Não estou dizendo que abrir uma revista pornográfica é uma boa coisa, ou que se pode tirar de lá algum valor moral, mas nem tudo que parece corrompido de fato está, talvez falte a House uma cruz pendurada no pescoço, no entanto o peso desta ele carrega ao longo de toda série, mesmo não tendo consciência, ou não aceitando o fato, ela está ali nas suas culpas, dores, e no seu sentir falta de algo.
    Quem sabe o autor não surpreende com um final como o sugerido, rs, seria no mínimo tão auspicioso quanto todos os demais episódios.

    Joel Gostaria muito de ver um raio X de “The Good Wife” (minha série preferida desde a estréia).

  14. “Cara, pare e preste atenção no que você acabou de elencar: aborto, eutanásia e suicídio! Tudo isso mostrado como algo positivo desde que se alcance com sucesso os fins almejados.”

    Vocês às vezes exageram…

  15. À parte o texto primoroso do Joel, acho que os comentários dão mostra de que a série é realmente capaz de nos provocar, no bom sentido.

  16. Beatriz

    “no final das contas, o que você faz da sua vida é o que importa. Seus atos aqui, agora.”

    Sim, é mais que óbvio, mas importa para o quê?

    E eu não afirmei que não importa o que fazemos aqui e agora.

  17. Adorei sua análise, embora não concorde plenamente com ela. Dois tópicos que acho não são explorados devidamente pelos críticos: primeiro a discussão de valores (morais, religiosos, éticos, jurídicos, etc.) que as séries americanas apresentam quase diariamente para as massas e que aterrorizam os políticos socialistas e totalitários (vejam recente declaração do top-top garcia) e, segundo, o elevadíssimo nível das séries law & order, especialmente a série special victims unit, a qual a cada episódio nos traz aspectos de decisões jurídicas sobre a eutanásia, o aborto, o tráfico, a manipulação e falsificação de dados científicos e também nos apresenta a sociopatia, a psicopatia e nos faz pensar sobre a onipresença e a natureza do mal.

  18. Joel, não sei como os clássicos entraram nos meus dois pequenos comentários. Quem disse que eles não passam no meu crivo foi você e não eu.
    Por nenhum momento eu tentei “filosofar”, se é que você me entende. Só critiquei o fato de uma série que toma posiçao contrária (sim, alguns episódios não são neutros, tomam posição a favor) a valores tão caros ao cristianismo despertar o interesse entusiástico de cristãos. Você não apenas analisou a série. Você fez foi uma vigorosa apologia da mesma. E outra, tenho convicção de que não fui “moralista” nem “puritano”, no sentido popular que estes termos têm. A menos que agora seja puritanismo ou moralismo ser contra o aborto, a eutanásia ou o suicídio.
    E mais Joel, tente perceber o perfil, não de todos, mas da maioria dos fãs da séris. Conheço muita gente que aprecia House. E o perfil da maioria é de pessoas niilistas. Sejam adolescentes ou homens e mulheres maduroes.
    E não se preocupe que não tenho nada pessoal contra você. Implico sim contra muita coisa que você escreve. E, sendo textos públicos, faço críticas públicas. Portanto, como um católico pecador e cheio de falhas que sou, nunca tive a intenção de julgar o ser humano Joel em seu íntimo. Somente julgo (com razão ou sem razão, esta é outra questão) os seus textos.

  19. Rodrigo, você só assiste/lê/ouve obras que sejam a favor de seus valores morais? Está perdendo muita coisa, então…

    Mas não vou me estender. Pelo contrário, vou é evitar as caixas de comentários do blog. Juro que há por aqui umas coisas que não acredito que possam ser verdade. Vai ver eu sou secular demais.

  20. Olá, Joel,

    Gostei muito de sua análise. Acho injustas as afirmações do Rodrigo Leandro acima, que demonstram uma confusão (milenar!) entre descrição e apologia. Conforme você indicou, a série descreve o estado presente da sociedade, com suas cegueiras e seus dualismos, sem ilusões, mostrando ainda, por parte dos personagens, um incomum apreço pela busca da verdade (científica ou pessoal – e sim, de vez em quando, metafísica). Isso é maravilhoso em um mundo que tem a ciência como um substituto para a religião e deixou de se questionar sobre tudo o mais. As falhas psicológicas e morais dos personagens são justamente as fissuras através das quais a graça de Deus poderia alcançá-los, e isso fica muito evidente para o espectador cristão (no meu caso, cristã protestante).

    Obrigada por deixar isso tudo mais claro para mim através desse artigo.

    Abraços!

  21. Boa análise. Continuem assistindo a série…

    A última temporada tem apresentado desdobramentos interessantes e relances curiosos sobre o que House esconde (de si e dos outros)… O último episódio apresentado nos EU – chamado “Black Hole” (15 março) – e alguns dos anteriores foram excelentes…Mostram até House apelando para um método não-científico como última chance de alcançar um diagnóstico, mesmo que a contragosto de sua equipe, que se espanta ao vê-lo sugerir “mágica” como forma de buscar respostas…

    Certamente a série ainda tem algo a oferecer antes de terminar…

  22. Ao leitor Rodrigo Leandro, cito abaixo um pequeno trecho do Editorial da 1ª Edição da D&C, quando do lançamento da mesma:

    “Ao contrário do que talvez se possa imaginar ao ver o título, não temos a intenção de criar polêmicas, mas de incentivar no Brasil o hábito da discussão de idéias, algo que se pode fazer com toda a nobreza e boa educação. Porque formar opiniões, expô-las à critica, descartar algumas e aperfeiçoar outras, faz parte de qualquer trabalho intelectual honesto.”

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  25. House, de fato, é um seriado polêmico.
    Chama a atenção pelo seu brilhantismo e ineditismo. Chama a atenção entre outras coisas para questões morais, éticas e religiosas.
    é um seriado inteligente, interessante, e ao mesmo tempo, assustador, devido ao seu niilismo. Eu que não entendo praticamente nada de filosofia, identifiquei um certo niilismo nietzschiano. Acho que o House é o a tentativa de super-homem que o Nietzsche queria ser e jamais foi. Acho que conseguir tal proeza, só na ficção (felizmente). Até a loucura aparece no House no final da 5.ª temporada e início da 6.ª.
    Gosto da série, mais pelo humor que é muito inteligente do que pelo seu niilismo e materialismo.
    Por fim: é interessante o texto do doutor Carlo Bellieni, diretor do Departamento de Terapia Intensiva Neonatal da Policlínica Universitária de Siena (Itália) e membro da Academia Pontifícia para a Vida: http://www.zenit.org/article-22558?l=portuguese

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