Lincoln em Dois Takes

 

por Adriano Correia

Filmes são imagem e ação da fantasia humana; quer dizer, dependem da faculdade da imaginação para se os rodar e pôr à luz. Dependem também de um roteiro, de uma ideia mestra a guiar uma trama, que pode ser verossímil ou, em algum grau, surreal. Lembrar-nos dessas obviedades pode ser interessante quando consideramos filmes que retratam personagens e acontecimentos históricos, dada a distância que há entre fatos históricos ou biográficos e o modo como os reconstruímos em uma narrativa, seja literária, seja teatral (e a sala de cinema nada mais é que um teatro virtual com uma tela sobre a qual se projeta uma construção audiovisual artificial).

Pode-se fazer um paralelo com a situação em que se encontra alguém que enfrenta uma partitura musical, que é um artefato histórico cujas regras de reprodução musical são apenas parcialmente intrínsecas e conhecidas, considerando-se o caso de compositores mortos, cuja intenção para o modo de execução é (quase?) inacessível. Isto é, em uma reprodução da música da partitura se está obrigado a interpretar e, em decorrência de tal, obtém-se alguma expressão íntima e particular, que depende de um artista e de sua performance. Com o que se tem uma reprodução sempre virtual do original, dirigida por um intérprete, o músico — incluindo ou não a interferência de um exegeta regente.

Lembrá-lo, mais uma vez, pode ser interessante considerando o caso que temos em mão: uma breve comparação entre dois filmes que retratam um personagem histórico, que nunca conhecemos pessoalmente, com quem não convivemos, e sobre quem não pudemos formar preconceitos derivados do convívio pessoal e imediato; e não, pois personagens e eventos históricos exigem a mediação de outros que registraram fatos e anedotas, a partir dos quais então formamos algum juízo, mas sempre distante e mediado, diferente da experiência em primeira mão, que é íntima e imediata (no sentido apenas de que não depende de um relato alheio), embora também comporte algum bom grau de subjetividade e deformação.

Assim, toda experiência cinematográfica é uma experiência virtual, do mesmo modo como não deixa de ser algo virtual toda e qualquer narrativa histórica; só que no caso do cinema há um grau maior de virtualidade, e por isso é interessante comparar narrativas e construções — até para que se possa ter algum elemento para explicitar e tentar entender diferenças de apreciação e valoração estética.

Young Mr. Lincoln de John Ford, estrelando Henry Fonda, é um filme de 1939 parcialmente histórico que romantiza o período de formação do futuro presidente, que cedo perde um amor, Ann Rutledge; mesmo não tendo frequentado muito a escola, Lincoln se mostra o modelo de self-made man, pois acaba adquirindo alguma cultura política e jurídica com os poucos livros que calhem em suas mãos. A maior parte do filme se passa com sua chegada em Springfield, em que toma para si a defesa de dois irmãos num caso de homicídio, posto que esses teriam matado um homem em legítima defesa, visto que ele dera um tiro (apenas ouvido) e então um dos dois teria usado um instrumento cortante para matar o homem.

A habilidade de manejo das emoções mais baixas e pungentes do populacho é mostrada em uma cena a seguir, quando uma turba enraivecida parte para matar os dois irmãos presos na delegacia da cidade. Lincoln os acaba convencendo a nada fazer recorrendo ao velho discurso de que não se deve tomar a justiça pelas próprias mãos, cabendo a um acusado o devido processo de direito. Menciona também as paixões que movem a massa que clama pela diversão do enforcamento, e lembra que mesmo ali há homens honestos, que se não estivessem numa multidão raivosa vexariam por seu comportamento.

O resto do filme, sua maior parte, retrata a defesa dos dois rapazes. Contar algo mais seria revelar um spoiler, que deixaremos para o fim do texto, seja para os que já viram o filme, seja para aqueles que irão querer saber por que o filme de Spielberg seria melhor que o de Ford.

Lincoln, de Steven Spielberg, estrelado por Daniel Day-Lewis, retrata o fim da Guerra de Secessão e a batalha pela aprovação da décima terceira emenda, aquela que abole a escravidão. Dizê-lo resume o filme, que não seria muito mais que isso, se a emenda não fosse uma desculpa para mostrar quem e como era de fato essa figura enigmática, soturna e algo sábia em que foi esculpido o maior presidente dos Estados Unidos depois de George Washington.

Do ponto de vista da pintura do personagem, Day-Lewis parece ser o mais próximo que se terá de Lincoln. Embora Fonda faça um bom trabalho, o figurino, a maquiagem e a produção fazem de Day-Lewis a estátua viva de Lincoln.

Ao ponto do texto, porém: se há uma anedota aparentemente muito mais interessante em Young Mr. Lincoln, por que o último filme, lançado 73 anos depois, seria melhor? Ora, pois dado o que dissemos no começo, uma cinebiografia é a representação virtual de um ente histórico, e, nesse quesito, Day-Lewis apresenta um Lincoln com muito mais gravitas e senso de propósito que o jovem, que, mesmo que recorra a subterfúgios de toda sorte para convencer ao júri da inocência de seus clientes, ainda assim não tem a expressão, o conhecimento de mundo e a sagacidade pragmática para realizar algo muito mais complexo que um julgamento que se ganha com o recurso de um almanaque.

O grande problema do primeiro filme é a inocência excessiva com que se age (como nas excessivas e impróprias risadas do juiz e de toda a corte quando o jovem Lincoln faz palhaçadas e humilha o acusador público); a música é algo ingênua e nos faz pensar em desenhos do Pica-Pau e do Pernalonga, em que se toca o mesmo gênero musical, mas com algum contra-evento que mostra a alegre ingenuidade a mover o personagem que acaba por se ferrar.

Já o Lincoln de Spielberg não cai jamais no pastelão, a começar pelo início do filme em que soldados negros e brancos recitam discurso do presidente amado.

Mas é interessante também ver a coincidência entre as atuações de Day-Lewis e Fonda. Ambos fazem um personagem socialmente sagaz, que sabe se portar muito bem nas situações em que se encontra — embora nos dois filmes o maior problema psicológico de Lincoln se alumia em suas relações com as mulheres, sempre conflituosas e algo estranhas. Vemos isso na versão de Ford, em que nada diz quando se encontra na varanda com uma moça que o tirara para dançar; no segundo Mary Todd, sua mulher, questiona-o o tempo todo, não lhe dando tempo para respirar, e exigindo dele uma paciência emotiva enorme.

Nos dois casos tem-se um Lincoln contador de causos, que, aliás, é bem-sucedido socialmente por sua habilidade de encantar e divertir os outros. Isso é boa parte de seu charme, como também seu caráter soturno, pela perda de tantas pessoas em sua vida (como Ann Rutledge e sua mãe). Mas partindo dessa tristeza que ele carrega em si, e da qual nunca se livra, Lincoln acaba praticamente por se fazer num sábio estoico, em cujas mãos reside o futuro de toda uma população negra que é vista como de segunda ou terceira classe.

No final ele acaba aprovando a emenda num esquema corrupto de oferta de empregos na máquina estatal. É curioso como um caso de profunda corrupção tenha dado liberdade a uma classe de humanos que não era considerada humana.

Pode-se dizer que temos em mãos dois casos de glorificação de um homem comum que se fez grande e poderoso. E o cinema tem neste caso o papel ideológico de insistir na heroicidade deste homem, pondo em movimento a vida de um morto que carregou em si as maiores potencialidades e que ajudou a refundar uma nação. Este homem, porém, não é o jovem Lincoln que fazia gracinhas em um tribunal, para que todos rissem espalhafatosamente; era o quieto e velho sagaz.

5 comentários em “Lincoln em Dois Takes

  1. Adriano,

    Um dos pontos capitais de sua resenha é essa noção de “representação virtual de um ente histórico”. Confesso, no entanto, que não entendi muito bem esse conceito; é possível, portanto, que nossas divergências sejam fruto do pano de fundo teórico que guia nossos julgamentos estéticos, mais do que o julgamento em si. Digo isso porque, ao menos até onde posso ver (e não estou certo do *moon bright*), o filme de Fonda é mais coeso esteticamente, enquanto o de Spielberg escorrega um pouco. Explico.

    Ambos os filmes são *dramas*, isto é, procuram retratar um conflito centrado no personagem que figura em ambos os títulos, Lincoln. No entanto, no caso do filme de Spielberg, o protagonista divide a cena com um outro personagem, igualmente grandioso, quer seja, a aprovação da 13ª emenda. Isso geram um problema: por um lado, o retrato do acontecimento é entrecortado por cenas nos quais se procura desenvolver o drama central, retirando o peso que se poderia dar ao desenrolar dos fatos; por outro lado, o drama pessoal também não encontra espaço para se revelar, sendo esguarçado pela trama do jogo político que se densenvolve quase que à sua revelia (de fato, a própria esposa de Lincoln comenta esse movimento: a política é indiferente aos seus conflitos internos). Nesse sentido, creio que o filme de Spielberg acaba preso na armadilha de tentar retratar, a um só tempo, dimensões que pedem um tratamento estético muito diverso: o jogo político por detrás da aprovação da 13ª emenda e o conflito interno de Lincoln.

    O problema é exacerbado pela clara função ideológica que você também destacou, a consumação de Lincoln como herói (daí o *post-scriptum* ridículo a que se presta o filme). Para tanto, Spielberg precisa retratá-lo quase como onisciente: através de sua aparente indiferença, de seus casos e parábolas, encontraríamos uma sabedoria incomum, capaz de desvendar nitidamente o tortuoso labirinto da burocracia parlamentar. Somos assim apresentados a um personagem pacificado, sem dúvidas ou conflitos. Ao meu ver, isso traz pelo menos dois problemas: do ponto de vista do jogo político, obtém-se uma simplificação significativa, na qual a trama política da lugar ao político urdidor, que, sozinho, costura uma nação harmônica (um pouco como se Lincoln realizasse o velho ideal platônico exposto no *Político*); do ponto de vista do conflito dramático, há um certo achatamento, pois, dada a disparidade entre a estatura de Lincoln e dos demais personagens, não há possibilidade do conflito se colocar.

    Já no caso do filme de Ford, curiosamente, penso que são precisamente as características que você aponta como defeitos que permitem uma obra mais coerente. O fato do drama ter como eixo um acontecimento local, de pouca magnitude, digamos, faz com que haja mais espaço para o protagonista se desenvolver. É verdade que, assim como no filme de Spielberg, o jovem Lincoln também se sobressai aos demais, manipulando a situação até seu grande desfecho. Porém, novamente, o fato de ser um acontecimento de dimensões reduzidas torna o contraste mais plausível. Além disso, as cenas dedicadas a desenvolverem certos traços do protagonista, os quais Ford, seguido aqui por Spielberg, mais sugere do que desenvolve, não se dão ao largo do acontecimento central, mas o integram, dando profundidade aos personagens que o compõem. Até porque, diferentemente do que se passa com Spielberg, se trata aqui de uma espécie de romance de formação.

    O filme de Spielberg barra, de antemão, qualquer possibilidade de desenvolvimento por parte do personagem, já que envolve, como você mesmo coloca, o velho Lincoln em cena, já mestre do seu ofício. Ford, ao contrário, nos mostra os primórdios desse suposto herói. Creio que o humor empregado no filme corresponde um pouco a essa intenção estética bem definida, nos permitindo relativizar um pouco a grandeza do protagonista (ainda que, sutilmente, Ford coloque elementos que permitem entrever seu futuro, como aliás Deleuze bem nota: Lincoln, guardião da lei escrita contra a lei da turba, do logos contra o nomos, adentrando a cidade, como Cristo, em uma mula…).

  2. Daniel, repare que sua avaliação estética coincide com a de Ieda Marcondes (um post atrás). Concedo que é provável que vocês tenham razão e que o *Lincoln* de Ford tenha um valor estético maior, sendo melhor costurado e elaborado.

    Aliás, eu atentava para essa possibilidade no início do texto, quando tentei deixar claro que toda obra de arte (estou generalizando o que disse para o cinema e insinuei durante o texto) depende da capacidade imaginativa humana, pois a imaginação (*phantasia*) nada mais é que uma potência ou faculdade que põe em movimento o produto do movimento perceptivo (a tal da *aisthesis*). Há algo que acabei não registrando e que pretendo desenvolver mais tarde (em um post), e que se coaduna com o que eu acabo de escrever: penso que todo juízo estético — confundindo propositadamente *estética* enquanto filosofia da arte e *estética* enquanto capacidade perceptiva — depende da tal estética transcendental, embora todo juízo parta da faculdade do entendimento (talvez se o possa chamar também de intelecto ativo, agente ou poiético). Ao cabo, portanto, todo juízo de valor estético (e há aqui, pois, uma axiologia da obra de arte) é subjetivo, visto que depende da capacidade perceptiva de um indivíduo e de suas especificidades, como também da imaginação (*phantasia*) do fulano, o que se prevê na estética transcendental. Que diz? Estou viajando na maionese?

    Assim posto, nossas diferenças de valoração dependem de mediações perceptivas e imaginativas, assim como de uma retórica dos afetos, pois o cinema (lembremos de *kinesis*) efetua um movimento perceptivo que deságua na imaginação e que é julgado seja pelo entendimento, seja pelo intelecto agente, que é judicativo.

    Tudo isso para voltar ao velho tema da intersubjetividade, que talvez seja uma ilusão, pois não haveria como postular um padrão do gosto.

    Enfim, tudo isso para dizer que as possíveis respostas a suas objeções já estão no texto e que provavelmente o reino da avaliação estética seja um reino doxástico, lembrando de *dokeō* (parecer). Ou seja, x parece bom ou mau para indivíduo y, e não há muito o que fazer.

    E, sim, deixei de lado a discussão material (de conteúdo) dos filmes acima para tentar falar formal ou teoricamente de juízos do gosto.

    No mais, na parte final do texto, em que aproximo os dois filmes, acabei me convencendo de que os dois Lincoln completam um ao outro, da formação à maturidade política cínica e, ao mesmo tempo, sábia e pragmática (afinal, *he gets things done*). E o pragmatismo do Lincoln de Spielberg fica claro na figura do idealista anti-escravagista e humanitarista, na interpretação de Tommy Lee Jones, que precisava abandonar o famoso principismo para alcançar o que é factível.

    Quanto à virtualidade, ela é medida de distância do atual ou do real (lembrando de *res*, coisa; ou seja, o mais real é o mais próximo ao objeto, à coisa). Quanto mais virtual, mais possível ou mais potencial, e menos real. Dada toda a potencialidade ou virtualidade do Lincoln de Ford, pode-se concluir que ele é mais universal. Só que me interessa mais a humanidade em concreto e em ato. Daí meu juízo de que o Lincoln de Spielberg pareça (em minha imaginação) mais próximo do Lincoln histórico, que não conhecemos senão por mediações várias. De novo, o Lincoln de Spielberg parece ter menos mediações, e, por isso, assemelha-se mais ao que seria um ente histórico real. Dada essa menor virtualidade que vejo na atuação e na construção do personagem de Day-Lewis, concluo por sua superioridade.

    Quanto à décima-terceira emenda, ela não é outro personagem senão uma parte de Lincoln, sem o qual ela nunca teria se tornado real.

    É isso.

    Um abraço!

  3. Adriano,

    Uma preliminar: com relação à questão da virtualidade, não sei se concordo com sua oposição entre virtual e real. Me parece que a oposição seria, antes, entre virtual e atual (atual, no sentido de “em ato”). Me parece que há uma certa confusão aí entre, por um lado, as virtualidades de um objeto (que podem ser pensadas, de uma certa maneira, como suas capacidades ou potência), e, por outro lado, as possibilidades envolvidas. A discussão aqui é complexa, mas eu diria que, pelo menos logicamente, ambos não se confudem (há uma possibilidade lógica que meu computador fosse mais veloz, mas, infelizmente, ele não possui essa capacidade).

    Me parece que isso interfere em sua análise, pois você posiciona o virtual ao lado do universal e em oposição à “humanidade em concreto e em ato”. Essa me parece uma falsa oposição, até porque um personagem universal certamente não se opõe à “humanidade em concreto e em ato”, mas a “um homem em concreto e em ato”, se é que se opõe. Eu diria, ao contrário, que ao expor as virtualidades contidas em um homem concreto e em ato, a universalidade de um personagem é geralmente um fator que contribui para uma maior compreensão dessa “humanidade em concreto e em ato”, não o contrário (daí que Aristóteles considere a poética como mais séria que a história).

    Em todo caso, continuo sustentando minha tese, de que ao propor um obra mais consistente, o filme de Ford dá uma maior profundidade ao personagem. Voltamos então à minha ideia, de que, ao centrar seu filme na aprovação da 13ª emenda, Spielberg prejudica a unidade do seu filme, perturbando assim o desenrolar da ação que poderia conferir maiores dimensões ao seu protagonista.

    Você diz que a 13ª emenda funciona menos como um outro personagem do que como uma parte de Lincoln, argumentando que, sem ele, essa emenda não existiria. Isso só mostra que as ações de Lincoln são condições necessárias, mas não suficientes para a efetivação da emenda. Considero esse ponto importante porque a aprovação (e, provavelmente, mesmo a proposição) da emenda não dependeu exclusivamente da vontade do presidente. Ao contrário, boa parte do filme é dedicada a mostrar como, para a aprovação da emenda, Lincoln precisou do apoio de diversos políticos e lobbystas. E é justamente essa parte que cria um problema, pois rouba o espaço que se poderia dedicar ao desenvolvimento do personagem (ou, vice-versa, poder-se-ia sacrificar totalmente o drama e se elevar a aprovação da emenda ao posto principal).

    Por fim, discordo do seu solipsismo estético. Embora conceda que o juízo estético dependa da capacidade perceptiva do sujeito, não acredito que as diferenças entre os sujeitos sejam tão grandes a ponto de tornarem qualquer consenso impossível. Aliás, como bem argumenta o próprio Hume, isso se torna claro quando nos referimos aos extremos: ninguém *corretamente educado* julgaria Melville pior que Dan Brown. Isso já evidencia algo que Kant mais tarde argumentará: se é verdade que muitas vezes é díficil convecer racionalmente alguém do valor estético de determinada obra de arte, esse esforço, no entanto, não é vão. Na realidade, por estar ancorado em um sentimento de pertença a uma mesma comunidade (somos todos humanos), esse esforço nos leva precisamente a um estreitamento dos laços comunitários envolvidos. Não seria esse precisamente o atrativo de filmes como os de Ford e Spielberg, como você aliás chamou atenção em seu post? Nos propor, para além de nossas particularidades, um ideal de uma *fraternidade* humana?

  4. Daniel, pois é, até entendo que se possa considerar *possível* como mais amplo que *potencial*, mas, por exemplo, por que se fala em intelecto possível ou potencial como sinônimos? Usando seu exemplo, todo computador pode ser mais rápido com a troca de algumas peças, o que quer dizer que ele também é potencialmente mais rápido. E para fugir da definição conceitual de Bergson e Deleuze — que, até onde li, provém de Proust! —, tomo virtual por possível e potencial. Para mim são sinônimos. Assim como atual e real são sinônimos, e também atualizar e realizar. Realizar é pôr em ato o possível, potencial, ou virtual. *Conflating is also confusing*. Não faço distinções entre esses termos.

    Por exemplo, uma semente é virtualmente uma árvore por contê-la em si como possível ou potencial.

    Quanto à poética ter mais valor que a história em Aristóteles, isso é óbvio; eu atentava para tanto quando falava em a história estar ligada ao particular, pois, para Aristóteles, não só é assim, como a poesia está ligada ao universal. Donde o filme de Ford ser mais virtual, poético e universal, e o de Spielberg mais real, histórico e particular.

    Eu não disse que é impossível que se chegue a uma resolução estética partilhada, apenas insinuei que é difícil. Fico feliz que Hume e Kant preservassem algum otimismo, e acho que é possível buscar critérios (até poético-retóricos) para se tentar chegar à concordância.

    Só não sei como se o faria neste caso particular.

    Quanto à emenda, achei seu comentário um tanto confuso. Só se a busca aprovar por meios não totalmente lícitos por vontade do presidente. Inclusive há a contratação de assessores para que se busque convencer congressistas de que deveriam votar pelo fim da escravidão. Mas essa contratação só se dá com a intervenção do presidente, que inclusive protela discussões de paz para que a emenda possa ser aprovada. Daí que eu a considere parte do protagonista histórico, único personagem central.

    Por fim, por mais que eu queira acreditar na bela ideia de fraternidade humana, tenho muita dificuldade, considerando-se, por exemplo, a própria resistência à aprovação da emenda, por parte de um bando de preconceituosos (democratas reacionários) que simplesmente consideravam o negro como aquém humano.

  5. Adriano,

    Indepentemente de Bergson ou Deleuze (os quais também não quero, aqui, comentar), sustento ainda minha distinção entre virtual e possível, pois a acredito bastante útil (aliás, “possível” também é algo ambíguo, veja as inúmeras discussões sobre uma *possível* distinção entre “possível lógico” e “possível metafísico”). Continuando o exemplo do computador (e adentrando em uma seara ainda mais complexa), o problema é que caso trocássemos as peças necessárias, ele não seria mais este computador, mas outro computador, este sim com a capacidade para ser mais rápido.

    Já com relação ao seu exemplo da semente, eu diria que a virtualidade inscrita na semente é bem real, e não somente possível. Não por outra razão a árvore, enquanto causa final, guia o desenvolvimento da semente. Se essa virtualidade não fosse real, não vejo como explicar a causalidade teleológica do fenômeno. Mas posso estar enganado.

    Novamente, penso que essa questão possa estar influindo em nossas respectivas avaliações do filme. Você diz ser “óbvio” que, para Aristóteles, a poética tenha mais valor do que a história, no entanto, não era esse o ponto para o qual que chamava atenção. Antes, chamava atenção a uma possível razão para tanto, tentando, por aí, desarticular a oposição que você montara entre, por um lado, virtual e universal, e, por outro, real e particular. Sustentei então que (i) o real se encontra do lado do virtual assim como do particular; (ii) que não há oposição necessária entre um interessse pelo que há “em concreto e em ato” na humanidade e uma pesquisa que se centre nas virtualidades de um homem. Não creio que você respondeu a esses pontos.

    Com relação a emenda, volto a insistir: a vontade do presidente pode ser considerada condição necessária para a aprovação da emenda, mas está longe de ser condição suficiente. Esse é precisamente o problema: para se dar conta desse acontecimento, se é necessário ir além de Lincoln para retratar o complexo jogo político no interior do qual essa manobra se desdobra. Só que esse jogo politico ultrapassa o próprio Lincoln, dependendo de vários outros fatores que não ele (contratação de assessores, acordos com políticos do próprio partido, etc.). Compare com o julgamento do filme de Ford, cujo desenvolvimento é obra quase que exclusiva do jovem Lincoln. Aprovar uma emenda é bem mais complexo do que resolver um caso com a ajuda de um almanaque, como você bem enfatiza, e isso é um demérito, não um mérito, do filme de Spielberg. Diria que Spielberg se encontrou em uma encruzilhada: ou fazia um filme político de ponta a ponta (mas daí não seria mais um filme sobre Lincoln), ou fazia um filme dramático (mas daí teria que reduzir o componente político). Quis fazer os dois, o que resultou num achatamento de ambos. Pessoalmente, penso ser esse um bom critério para se avaliar um filme: se ele executou adequadamente seus propósitos. Pelas razões expostas acima, não me parece ser o caso com *Lincoln*. Caso eu esteja errado, bem, corrija-me! Afinal, não devemos preferir o que nos corrigem?

    Aliás, esse é um ponto interessante: se crescemos mais com o que nos corrigem do que com os que nos adulam, então, dada nossa imperfeição, o conflito é uma dimensão necessária para nosso crescimento, certo? Desse modo, duvido que o ideal de uma fraternidade exclua todo e qualquer conflito de sua esfera…

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