Nós que nos amávamos tanto…

Amantes (Two Lovers), de James Gray, é uma espécie de teste de Rorschach. Quem não gostou do filme, alegando que nada acontece – mais uma história de boy meets girl (no caso, duas), etc. e tal – mostra que ainda tem muito o que capinar na vida. Quem gostou do filme e, mais, percebeu o drama de inner feelings que está em jogo – para não dizer o tema fundamental sobre o qual ele fala – sem dúvida já passou um mau bocado nos jogos do amor e sempre estará disposto a algo mais.

A coragem de Gray como cineasta está em mostrar a história banal de um sujeito ainda mais banal – Leonard, um jovem que anda com o peso do mundo (e dos medicamentos anti-depressão) nas suas costas – que, um belo dia, se envolve com duas mulheres completamente diferentes. A primeira é Sandra, interpretada por Vinessa Shaw, que, filha do futuro sócio do pai de Leonard, representa tudo o que a realidade pode oferecer de bom a um ordinary guy: ela o aceita como é, quer cuidá-lo, e, além disso, a união entre amor e negócios permitirá à família de Leonard a estabilidade que o pai tanto deseja para seu filho. A segunda é Michelle, feita por Gwyneth Paltrow, e é a típica bonequinha de luxo que nossos sonhos adolescentes insistem em se imiscuir em nossas vidas adultas. Nós sempre soubemos que, ao relacionarmos com uma pessoa dessa estirpe, que não tinha como dar certo. Mas, claro, vamos de encontro ao desejo porque, afinal, o que queremos é sempre um pouco mais de kavorka nas nossas vidas*.

Gray tomou a estrutura de Noites Brancas, de Dostoievski, para realizar uma sensível meditação sobre o combate que existe em nosso interior quando nos deparamos com a mentira romântica. Para quem já suspeita, o termo é obviamente tirado de René Girard, que, com seu primeiro livro, Mentira Romântica e Verdade Romanesca (a ser publicado ainda este ano pela É Realizações), mostra como o homem gosta de se envolver em relações miméticas, i.e, de imitação e de apropriação de comportamento, porque, antes de tudo, ele prefere sempre colocar alguém – uma mulher, uma idéia, um modo de vida – como um ídolo absoluto, ao invés de se confrontar com a realidade. Esta é, claro, aquela experiência rugosa e áspera que os críticos modernos adoram jogar de escanteio e que afirmam que se trata de somente “relativismo”.

Leonard, independente de suas tentativas de suicídio e de seus medicamentos anti-depressão, está chafurdado na mentira romântica. Michelle é, para ele, uma forma de escapar de sua realidade mesquinha. Os possessos por esta mentira geralmente são ambiciosos e sempre querem mais. Leonard deseja ser um fotógrafo; e, de fato, ele tem talento, mas, antes de tudo, precisa fotografar pessoas, envolver-se com o real. Sandra é justamente essa abertura para isto; quando ela fala que quer cuidar de Leonard, entrega uma simples e singela luva. Será esta mesma luva que lembrará a Leonard, no momento final do filme, que nem tudo está perdido.

James Gray toma o caminho de criticar a mentira romântica – algo completamente oposto a qualquer filme romântico feito nos nossos dias – e tem a proeza de filmá-la, como bem observou Sergio Alpendre em seu blog Clip Hazard, como um crime. Porque a mentira romântica é exatamente isso: um crime contra o real, contra nós mesmos e, no fundo, contra as pessoas que realmente nos amam. Optar, na delicada cena final, tingida de felicidade agridoce, por Sandra não significa apenas escolher o certo porque a mocinha não é de se jogar fora; é optar pela vida que nos aceita como somos e não como os otários que a mentira romântica nos faz acreditar que seremos.

* Para quem não sabe o que é kavorka, perguntem ao Cosmo Kramer.

4 comentários em “Nós que nos amávamos tanto…

  1. Assisti a esse filme genial no mês passado e só estava esperando você falar dele. A cena final é de uma coragem impressionante! Gray tem cojones.

  2. Tenho grande interesse nesse filme, ainda mais se ele criticar a mentira romântica, que eu não acho que seja um crime. As pessoas não mentem porque querem, mas o fazem de forma inconsciente, para fugir da realidade chata e sem graça, ainda mais se comparada a filmes e livros com histórias geniais.
    O problema disso é que a pessoa deixa de viver a própria vida para viver de imaginação. E deve ser aí que o filme entra, pra impedir mais desilusão com a realidade e consigo.
    Hm, pensando bem, vou olhar os horários desse filme ainda hoje.

  3. Vi esse filme semana passada. Não compartilho do entusiasmo. Concordo com essa leitura – foi basicamente a leitura que fiz enquanto assistia (como estudo Eliot, esse tema da ‘mentira romântica’ está sempre nos meus pensamentos sobre arte e sobre a minha vida também). Mas o problema tem a ver justamente com isso: o filme é esquemático demais, de modo que o personagem principal, apesar da aura de profundidade com a qual o filme tenta cobri-lo desde a primeira cena, é rasteiríssimo. O modo como a mentira romântica se integra à nossa mentalidade hoje em dia é bem mais complexo, mais cheio de sutilezas e camadas. O filme mais parece uma introdução facilitada ao tema. Não é, de modo algum, um filme ruim (embora fique bastante ruim em algumas cenas, como quando sujeito diz “I’m fucked up too!” – algo tão óbio e forçado, que dá enjôo). O que acho louvável no filme é o que você ressaltou: a iniciativa de criticar a mentira romântica. Pena que, para isso, o roteirista teve de simplificá-la.

  4. Martim, finalmente vi o filme.
    Gostei bastante, embora concorde com o Odorico que tem algumas cenas bem ruins (a cena de sexo da Michelle com o Leonard está no nível “vergonha alheia” de ruim).
    Um amigo que viu comigo não gostou, porque achou que o personagem do Joaquim era acomodado e devia fugir de casa pra viver com a “chave de cadeia” (Michelle). Eu, que sou contra arrebatamentos românticos e insensatos, creio que ele fez a coisa mais sensata para a vida dele: parar de se lamuriar e chorar e fazer ceninha e encarar a realidade, com uma menina que gostava dele e um emprego meio so-so, mas que vai garantir o sustento dele.
    É mais ou menos o que acontece em A Felicidade Não se Compra, do Frank Capra (frisando que o Capra é muito muito melhor), no qual o James Stewart tem grandes ideias e quer fugir da cidadezinha mas a realidade é aquilo ali e pronto. E that’s life, né.

    (pausa para falar do tipo de personagem da Gwyneth, que é tudo o que um homem quer numa mulher – bonita, meio babaca, apaixonada (por outro, no caso) e totalmente frágil e dependente. mas fez uma boa média com a Sandra, que é uma mulher normal, inclusive com gordurinhas (omg – não somos todas Gwyneths))

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>