O demônio pasteurizado

Dizem que me preocupo demais com demônios. Como recentemente escrevi dois textos que relacionavam a literatura brasileira atual com exorcismo, engraçadinhos acharam que, em breve, eu iria começar a falar dos gibis do Alan Moore – um autor que, aliás, estimo muito. Também reclamaram de que eu não saberia explicar onde se encontrava na geração atual a tal temática de favelado – pois parece que estes novos autores fogem da periferia como o diabo foge da cruz (desculpem-me pelo trocadilho).

A minha intenção em escrever estes textos sobre a literatura brasileira atual é a de apresentar um panorama, não um sistema. Ainda assim, é necessário trazer à tona alguns pontos, talvez como uma espécie de critério para que depois ninguém venha a reclamar que coloquei demônios demais e literatura de menos.

O fato é que demonismo, literatura e a favela têm muita coisa em comum. Talvez tenham razão ao afirmarem que, na literatura brasileira que entrou em voga – repleta de jovens descolados e que sabem mais sobre estilo do que sobre substância – a favela não é mais um símbolo preponderante. Contudo, se o símbolo sumiu, a mentalidade permanece – e eis o perigo disso tudo. De qualquer forma, a literatura permanece dentro de um horizonte provinciano, por mais que pareça cosmopolita, com suas referências trendy e as citações cinematográficas.

Este provincianismo mostra que o autor é incapaz de extrair de si a loucura exigida pela literatura. Quando falo de demônios, falo exatamente disso: loucura, meus amigos, loucura – aquilo que Henry James, já na fase old pretender, afirmava ser the madness of art. Mas um aviso: não se trata de uma loucura qualquer, como a que nos fazem acreditar que será curada em hospícios e sanatórios. É uma insanidade que deve ser disciplinada, controlada, para que os tais demônios que as pessoas têm tanto medo de chamá-las não se apossam não só do escritor como também do seu estilo, da sua arte – enfim, para que não a transforme em futilidade.

Porque, de todas as mentalidades de favelado, a mais perigosa é a de ser futil – ou, se quisermos usar termos mais sofisticados e suaves, a do esteticismo. Kierkegaard definia três estilos de vida que alguém poderia experimentar: o estético, o ético e o religioso. A literatura brasileira, salvo raras exceções, não conseguiu passar do primeiro estágio. É algo ruim? Não, se quiser permanecer provinciano – uma característica que não precisa ser exclusivamente brasileira. Mas se o escritor tiver alguma ambição, então temos problemas – pois quanto mais alto se sobe, mais rápido pode-se cair.

Quem relacionou o problema do esteticismo com a da realidade brasileira foi o ensaísta e pensador Mario Vieira de Mello. Em seu Desenvolvimento e Cultura, ele argumenta com toda a razão que nunca tivemos idéias próprias, que sempre as copiamos e adaptamos conforme nossas necessidades. Já prevejo o leitor sabichão me alertar que este mesmo raciocínio se encontra também em Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda; mas, agora, com uma diferença: Sergio afirmava que tal cópia levava ao esgarçamento das instituições e à falta de respeito a res publica. Vieira de Mello vai além: é a própria cultura que sai prejudicada, incapaz de se desenvolver de forma autônoma porque se prende às estruturas de poder e não consegue mais perceber a diferença entre a liberdade exterior e a liberdade interior.

Se fizermos uma analogia – o que é sempre perigoso pois analogias são saltos no escuro que podem nos levar para o outro lado ou direto para o abismo, já nos ensinava Indiana Jones e a última cruzada – a preocupação da literatura brasileira atual com as referências da moda e com um estilo mais apurado é um sintoma de liberdade exterior, mas nota-se também como os jovens escritores não estão preocupados com os demônios que são obstáculos para alcançarem a liberdade interior. Esta última não é um direito dado pela natureza; é algo a ser conquistado, domado. Portanto, quando falam sobre seus próprios demônios, o medo os leva a pasteurizá-los – a estetizá-los como se fossem joguinhos de criança, impedindo de vê-los como um problema que nunca terá solução.

Vejam bem: apesar do termo religioso, quando uso a palavra “demônio”, não quero fazer uma relação a lá “veja-como-a-nossa-literatura-é-uma-merda-porque-perdemos-o-contato-com-o-Nosso-Senhor”. É claro que isso é um problema – mas deixamos isso para os apologetas e os téologos (que, por sua vez, pouco entendem de literatura). O que importa é perceber como uma literatura se torna estéril porque vive o desconhecimento de que o desejo ontológico, o de querer ser uma coisa que nunca foi, nunca é e nunca será, é uma lei que nos come por dentro e que nos causa mais armadilhas interiores do que pensamos. Não podemos ter medo de falar em “demônios” porque nós somos justamente o que não queremos nomear. Para usar um termo dostoievskiano, nós somos os possessos – eu, você e todos que não aceitam que um exorcismo bem feito e sem futilidade é tudo o que precisamos. And good luck with that.

5 comentários em “O demônio pasteurizado

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  2. Muito claro e sanou estupefações que ficaram do texto sobre Mahler. Era tudo uma analogia, uma imagem que o compositor formou para descrever lutas interiores. Certo?

  3. Martim,

    Dizer que os teólogos não entendem de literatura não seria injustiça com alguns? Romano Guardini é um dos maiores comentaristas de Dostoievski, por exemplo. Pelo menos ao que me consta.

    Abraços.

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