O glamour da bandidagem

E agora deram a descobrir que Michael Mann é um cineasta excepcional – justamente quando lança um de seus filmes mais fracos, Inimigos Públicos. Fizeram uma mostra sobre a sua obra na Cinemateca Francesa; páginas na Internet dedicaram-se a decifrar suas obsessões visuais, em ensaios repletos de referências e malabarismos teóricos; e até o Inácio Araújo, que torcia o nariz para Mann, admitiu que ele é um cineasta invulgar.

Contudo, as coisas não são tão bonitas assim. É claro que Inimigos Públicos tem momentos de grande cinema – Mann continua sendo um esteta ímpar e há, pelo menos, dez cenas no filme que eu não hesitaria chamá-las de “brilhantes”. Mas falta aqui justamente o moral background que havia em Heat, O Informante, Ali, Collateral e Miami Vice. Michael Mann sempre foi um cineasta que mostrava os dois lados da moeda, sem julgamentos a respeito do policial ou do bandido. Já em Inimigos Públicos, ele faz a equivalência moral dos lados opostos: polícia e bandido não são tão diferentes assim – e, em alguns momentos, a polícia chega a ser pior do que os marginais. Sob a máscara de um Johnny Depp que imita Clark Gable (que, por sua vez, imita o próprio John Dillinger, personagem central da película), Mann cai na armadilha do fascínio da bandidagem, e faz o público simpatizar-se e torcer por um sujeito que, convenhamos, matava pessoas e roubava bancos.

Não posso deixar de pensar nisso nesta confissão explícita feita por Mann neste trecho de uma entrevista:

“Dillinger foi um ser humano em toda sua complexidade. Eu não vejo nele nem um monstro, nem um sociopata. A vontade dele era ser popular, ser amado pelas pessoas, encontrar o grande amor… Ele não era alguém sedento de sangue. Quando foi acusado de ter intencionalmente matado um tira em Indiana, ele sempre alegou ser inocente. De fato, ele matou o tira, mas no calor da ação. Ele não pretendia ser o Super-Homem. Mesmo quando estava no auge da celebridade e era manchete de jornais, ele continuou a preparar os assaltos com sobriedade e democraticamente, em acordo com seus cúmplices. Ele nunca se deixou cegar por sua atividade e pela celebridade de suas ações, sempre manteve cabeça fria”.

E ainda bem que não estou sozinho na minha opinião

(não que me importe, antes só do que mal acompanhado, mas supõe-se de que uma ajudinha de alguém não é de todo mal)

pois James Bowman apontou os mesmos problemas em sua corajosa crítica em que, ao contrário de todo mundo, atinge a venerável figura de Mann. De fato, ele continua um cineasta invulgar; mas não precisava fazer um filme tão vulgar assim.

3 comentários em “O glamour da bandidagem

  1. Não me julgo competente para analisar esse filme sob a ótica da “sétima arte”, mas assisti a ele ontem à noite e me surpreendi “torcendo” por Dillinger no final…

    E convenhamos que a “graúna” é charmosa…

  2. Ainda não assisti ao filme, mas ao menos o LIVRO não passava essa idéia “glamourisante”.

    Aliás, o livro é ótimo – bem documentado, bem ambientado e com uma prosa agradável. Recomendo.

  3. Caro Martim Vasques da Cunha,

    Faz pouco tempo que eu descobri o seu site. Ele é muito bom, pois aqui há algumas discussões, principalmente sobre cinema, que não se vê em outros lugares. Creio que geralmente a crítica de cinema no Brasil, a que se encontra nos jornais e revistas mais conhecidas, é um tanto formatada e superficial. Talvez, poucos leram André Bazin ou mesmo François Truffaut, para aprenderem um pouco mais sobre como escrever a respeito de um filme. Aqui se vê críticas e análises instigantes. Eu vi também um site seu antigo que você fazia análises de filmes, com muita desenvoltura. Muitas delas excelente!
    Em relação a este novo filme de Michael Mann, gostaria de discordar de você em alguns pontos. A questão da glamorização do bandido é um tanto subjetiva, pois esta não é ênfase principal do filme, há talvez alguns momentos que podem ser interpretados dessa forma, como as “belas” fugas de Dillinger da prisão. Por outro lado, por exemplo, muitas das pessoas que viram o filme e depois comentaram comigo sobre ele, não torceram por uma pessoa que roubava banco e matava pessoas.
    Não quero defender pessoas deste tipo, e, em que pese a opinião de Mann sobre a “humanidade” Dillinger, o filme, como se sabe, mostra a história de diferentes homens obcecados, para o bem ou para o mal, por seus deveres e funções, dentro de uma lógica de regras que eles crêem ser necessária. Assim, por este ponto de vista, não haveria equivalência moral entre eles, porém forçosamente algumas éticas “louváveis” ou “condenáveis”, como nos filmes de Howard Hawks. Aliás, o tema da obsessão humana é a grande tese que vem sendo trabalhada de diferentes maneiras nas obras de Mann, desde Manhunter até culminar com “Inimigos Públicos”.
    Todavia, o interesse maior do filme, que poucos até observaram, é o uso fabuloso da câmara digital de alta definição. A construção esmerada dos planos e seu rigor formal na narrativa, o uso excessivos de closes, imprimem uma singular noção realística da imagem cinematográfica e fazem deste filme, um marco da arte fílmica do século XXI. Resguardadas as devidas proporções, “Inimigos Públicos” pode ser considerado o “Cidadão Kane” do nosso tempo. No filme de Mann, há uma nova configuração e uma nova relação imagético-temporal que se estabelece no cinema, proporcionada diretamente pelo uso peculiar do digital. Por esta razão, a obra consegue ser ao mesmo tempo, tradicional, e moderno-contemporânea. Uma obra-prima!

    Abraços.

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