O mergulho nas trevas

(Francis Ford Coppola visita o Brasil nesta semana, com direito à premiére exclusiva de seu novo filme, Tetro. Abaixo, um ensaio sobre sua obra, uma das poucas na história do cinema que une ambição, tragédia e uma considerável dose de loucura.)

No meio da selva, com apenas um short, sem camisa, barbudo, os olhos faiscando, Francis Ford Coppola fala sem parar, gesticulando os braços como se fossem as hélices de um helicóptero. “O que eu quero fazer”, ele diz, “é um filme no melhor estilo Irwin Allen…. com ação, muita ação, repleto de sexo, com coelhinhas da Playboy balançando seus rabos para a esquerda e para a direita, e bombardeios a cada quinze minutos, e muitos, mas muitos astros…”. A declaração, dada para a câmera de sua esposa, Eleanor, em meados de 1977, é hilária: Coppola está empolgado como uma criança, e sua magreza – estranha para quem o conhece através das fotos dos últimos vinte anos – parece que vai desmoronar a qualquer momento, com uma barriguinha protuberante prestes a explodir.

O tal filme no melhor estilo Irwin Allen que ele tanto falava era “Apocalipse Now” (1979). Produzido ao custo de U$$ 20 milhões, uma fortuna na época, e filmado nas selvas das Filipinas, o filme foi a ousadia que nenhum diretor teria a coragem de fazer. Ninguém, exceto Francis Ford Coppola que, baseado na novela de Joseph Conrad, “O Coração das Trevas”, insistiu que se fizesse tudo em locação, sem nenhuma trucagem para captar, como o próprio afirmou em uma entrevista dada dez anos depois, “a insanidade da guerra”.

A loucura de Coppola volta às telas grandes e pequenas neste final de 2001 e, por incrível que pareça, ela se torna extremamente útil para compreender os nossos tempos após o Terror de 11 de setembro. “Apocalypse Now Redux” (2001), a versão de três horas e meia de um filme que já era insano demais para suportar duas horas e meia na poltrona do cinema, volta às salas neste mês de novembro, com cenas inéditas, nova trilha sonora, tudo devidamente supervisionado pelo próprio diretor. E, como se não bastasse, acabou de ser lançado em DVD a caixa de “O Poderoso Chefão”, com as três partes, mais um disco com cenas que não foram para a edição final, comentários do diretor, documentários, entrevistas – enfim, tudo aquilo que o DVD nos dá se você tiver tempo suficiente para ver e não esquecer.

Neste pacote falta apenas “A Conversação”, o pequeno grande filme que Coppola fez sobre paranóia e destruição espiritual, com o melhor papel de Gene Hackman. Mas aí era bom demais para ser verdade. Os três Chefões, “Apocalypse Now”, “A Conversação”, “O Selvagem da Motocicleta” e “Tucker” são os pontos altos de uma obra irregular em vários aspectos de um cineasta que, graças à sua providencial maluquice, fez o que poucos diretores norte-americanos conseguiram: um mergulho completo nas trevas do ser humano, em que a procura pela redenção é também a procura por uma independência artística que não vê limites para atingir o seu propósito e, por isso, acaba pagando o seu preço.

Falando dessa forma parece que Francis Ford Coppola tem muito do seu personagem mais famoso, Michael Corleone, ou até mesmo do desequilibrado Coronel Kurtz. Não deixa de ser verdade. Nascido em 1939 em Detroit, Michigan, Coppola tem aquele germe da loucura que o artista deveria ter cada vez que se propõe realizar uma obra de alto valor artístico. É a loucura pelo detalhe, pelo real, pelo modo mais verdadeiro de transmitir a realidade implacável da vida – a de que o homem é sempre fadado a finitude. Mesmo nos pontos mais baixos de sua carreira – e ela teve muitos -, Coppola mostra uma humanidade em que os sonhos de paz e tranqüilidade são destroçados em um estalar de dedos e que a única coisa que se consegue fazer, é embarcar numa jornada transformadora onde não se sabe qual será o fim: se a luz ou o abismo.

Filho do compositor Carmine Coppola, foi um garoto que ficou a infância inteira dentro do quarto porque havia contraído poliomenite. Assim como seu futuro colega, Martin Scorsese, um asmático branquelo que não podia sair correndo nas ruas da Little Italy em Nova York, esse isolamento forçado o levou a ter de se contentar somente com sua própria companhia. Devorava romances de aventura, livros sobre carros, guerras, história geral, tudo o que poderia imaginar para um garoto de 12 anos na década de 40. Em uma entrevista dada ao Cahiers de Cinema nos anos 80, ele disse que foi nessa época que surgiu o cineasta: “Tudo o que queria era contar uma boa história”.

Que Coppola conseguiu isso, ninguém duvida. A parte insólita da sua história é que ele acabou virando, graças à sua vida conturbada, uma parte da História. Para quem não sabe, o apelido de “padrinho” dado por pessoas como George Lucas, Steven Spielberg, Scorsese, Brian De Palma, Robert De Niro e Al Pacino quando se referem ao velho Francis, não é à toa. Coppola foi realmente o primeiro de todos, o pioneiro, o homem que quebrou as regras no cinema americano para uma nova geração de cineastas e atores, conhecidos como “The Brat Pack”, os fedelhos em inglês, em que todos tinham menos de trinta anos e eram formados em universidades.

O filme que possibilitou isso foi “O Poderoso Chefão” (1972). Em 1970, Francis Ford Coppola era mais um discípulo de Roger Corman, o rei dos filmes B, fazendo musicais com Fred Astaire que não arrecadavam um centavo sequer (uma confusão moderninha chamada “Finian´s Rainbow”) ou então escrevendo o roteiro para o filme “Patton”, pelo qual recebeu um Oscar. A Paramount Pictures comprara os direitos do romance de Mario Puzo para um filme que seria dirigido por Elia Kazan, teria Ryan O´Neal como Michael Corleone, Laurence Olivier como Don Vito, trilha sonora de Jack Nitszche e se passaria em Kansas City. Por uma dessas manobras que só Deus explica, Puzo havia pedido que o diretor fosse italiano ou tivesse alguma relação com a Itália. Para completar, Kazan desistiu do filme e seu substituto, Richard Brooks, não queria mexer no tema espinhoso da Cosa Nostra. Então chamaram um roteirista que precisava desesperadamente de um sucesso e, mesmo assim, fez escolhas que levaram os produtores à beira de uma neurose. Coppola reescreveu o roteiro com Puzo, trazendo a história de volta à Nova Iorque; chamou Nino Rota para fazer a música; decidiu que filmaria em locações na Sicília; lutou com unhas e dentes para escalar no papel de Michael Corleone um novato dos palcos, Al Pacino; e chamou para ser Don Vito Corleone o ator mais problemático do mundo – Marlon Brando.

Deu no que deu: “O Poderoso Chefão” é uma das verdadeiras obras-primas do cinema, um dos filmes caseiros mais caros já feitos (Coppola chamou a irmã Talia Shire para ser a caçula Connie e quase toda a família foi figurante na seqüência do casamento) e também uma tragédia que Shakespeare não hesitaria em dar uma mão para escrevê-la. O romance de Puzo é um exemplo de carpintaria literária, apesar de todo o preconceito dos críticos em relação ao rótulo “best-seller”, mas durante os vinte e oito anos em que as três partes foram filmadas, o que era uma mera história de gangster se tornou um épico de busca pela Graça divina, de descida aos infernos e, talvez, uma autobiografia muito mal disfarçada. No caso, a autobiografia de Francis Ford Coppola.

“Eu acredito na América”. É o que diz Amerigo Bonasera a Don Vito Corleone na primeira fala do filme. Mais de nove horas depois, o espectador tem a certeza que quem acredita na América não bate muito bem da cabeça. Mas “O Poderoso Chefão” não é somente um filme crítico sobre o Império Americano e sim a história de um homem bom que, por prezar sua família acima de tudo, vendeu sua alma para preservá-la, fez coisas abomináveis e entrou na solidão do poder. Esse homem é Michael Corleone e o primeiro filme da trilogia é a sua iniciação satânica. Soldado exemplar do exército, noivo da WASP Kay Adams (Diane Keaton), Michael será o anjo da vingança em que assassina os homens que armaram uma emboscada para seu pai. A partir daí, seu caminho natural é ser o líder, com o destino aprontando suas ciladas: a morte do irmão mais velho, Sonny, a fraqueza de Fredo e o casamento fracassado de Connie. O exílio na Sicília é um passo a mais na aproximação das raízes em que Don Vito foi criado, raízes em que a violência tem um fundo moral, justificado, mas que, aos poucos, perde-se o controle. E quem justamente perde isso é Michael que, na sua frieza, é capaz de renegar Satanás no batismo de seu afilhado, ao mesmo tempo que seus capangas eliminam os inimigos da famiglia Corleone sem misericórdia.

O inferno aprofunda-se na segunda parte do Chefão. Entrelaçando o momento histórico da revolução cubana com a tentativa de Michael de legalizar seus negócios, além de fazer uma ousada narrativa paralela que conta o início de Vito Corleone como imigrante nos EUA, Coppola quebra de novo as regras: a de que uma continuação é inferior ao original. A ousadia deu outra obra-prima em que cenas como o encontro entre Michael e Hyman Roth (interpretado por Lee Strasberg, fundador do Actor´s Studio), a discussão com Kay (que termina com um dos tapas mais violentos do cinema), o momento em que Michael descobre que seu irmão Fredo o traiu, o velório de Mamma Corleone são exemplos de crime e castigo – do tormento que é o poder quando se tem tudo, mas não pode se alcançar nada. É impossível não se esquecer do final em que Michael Corleone fica sozinho numa floresta, meditando sobre seu futuro, um futuro que será marcado pela dor e pelo desespero.

Pois é isto que Coppola reserva ao seu personagem (e a si mesmo) neste filme incompreendido que é “O Poderoso Chefão III”, uma obra-prima que, apesar de todas as suas falhas (e elas se chamam Andy Garcia e não Sofia Coppola, como podem pensar os desavisados, já que o fato de ter escolhido sua filha para este Chefão terá um sentido especial para Coppola), continua sendo uma obra-prima. Al Pacino faz sua interpretação mais humana, sondando como poucos os meandros da alma de Michael Corleone, agora velho, cansado e amargurado, querendo a qualquer custo um pouco da sua redenção. A união financeira com pessoas escusas da Igreja Católica dá a chance de Coppola discutir também o que aconteceu com o homem durante os dois mil anos de cristandade. Numa cena magnífica, em que Michael se confessa ao um cardeal que será o futuro papa João Paulo I, o sacerdote pega uma pedra de uma fonte, bate-a forte no chão, consegue reparti-la ao meio e diz: “Cristo é como a água da fonte que não entrou nesta pedra. Ele está por toda a parte, mas é muito difícil deixá-Lo entrar dentro da nossa alma de verdade”.

Apesar de sua fama de lunático, Francis Ford Coppola é um cineasta com uma inusitada preocupação metafísica na sua obra. Católico de nascimento, ele deixa que o tormento espiritual dos personagens se traduzam em imagens e sons e, muitas vezes, manipula-os para que nem as imagens e nem os sons pareçam o que são. É o que faz como poucos num pequeno filme que fez entre 1972 e 1974 e que lhe deu a sua primeira Palma de Ouro em Cannes: “A Conversação” (1974). Nesta lição de narrativa cinematográfica, Coppola conta a história de Harry Caul (Gene Hackman), um perito em escuta e espionagem que se envolve numa conspiração que sempre existia embaixo de seu nariz e só ele não sabia. Com a ajuda de Walter Murch, a montagem minuciosa entre som e imagem provoca no espectador uma confusão que só vai ser percebida também no final. E quando tudo fica claro é também quando tudo parece mais terrível. Caul enlouquece e seu primeiro ato é quebrar uma pequena estátua da Virgem Maria. Depois disso, o que lhe resta é tocar um saxofone dissonante a noite toda.

Michael Corelone não quebra estátuas em “O Poderoso Chefão III” porque ele já fez o suficiente na arte da destruição: ele acabou com vidas. E o pior: fez isso por uma boa causa – a família. Afinal de contas, tudo o que queria era ser amado. É o que ele diz, num monólogo de arrepiar na terceira parte, ao velar o corpo de Don Tommasino, assassinado por um matador siciliano. “O que me traiu?”, sussura, “Minha mente, meu coração, minha alma? Você foi tão amado, Don Tommasino…. Eu só vejo ódio ao meu lado”. Coppola dirige o capítulo final de Michael como um adagio em que a melancolia impregna cada foco de luz dourada que emana da fotografia de Gordon Willis. Com exceção de “Il Gattopardo” de Visconti, nunca a Sicília foi tão bem-filmada – e nunca ela foi palco de uma tragédia tão cruel como a que ocorre na escadaria da ópera, depois da apresentação de “Cavalleria Rusticana” de Pietro Mascagni. Com uma crueldade ímpar, um tiro tira a vida de Mary Corleone, a filha de Michael, interpretada por Sofia Coppola. “Mataram a menina Maria!” escuta-se o grito de uma siciliana. E lá na escadaria, Al Pacino faz o berro de dor mais silencioso do cinema. Se o sofrimento encontrou uma forma de exprimir toda a impossibilidade de explicação, o rosto de Michael Corelone gritando ao som do final da “Rusticana”, é a imagem para essa finalidade.

Por que Coppola escalaria alguém da sua família para um papel crucial? Qual é a função de Sofia Coppola numa saga que acaba com seu personagem principal morto, caído no chão, com um cachorro lambendo sua face? Para explicar isso, teremos que voltar ao início deste texto, em 1977, quando Coppola queria fazer o tal filme no estilo de Irwin Allen e tudo terminou em “Apocalipse Now”.

O leitor deve entender que, para cineastas como Francis Ford Coppola, fazer um filme não é um mero entretenimento. É uma aventura, muitas vezes uma experiência próxima da guerra. ” ‘Apocalypse Now’ não é sobre o Vietnam”, ele afirmou certa vez, “É o Vietnam”. Por isso a existência benéfica do germe da loucura que o leva a verdadeiros saltos de fé, saltos que o colocam também à beira do abismo, pois, na busca pela independência artística, temos um profundo mergulho nas trevas em que Coppola se expõe nu. Não é a vontade de fazer charme que ele chama um exército das Filipinas para a cena de helicópteros ao som de “Cavalgada das Valkírias”, de Richard Wagner, ou então leva ao extremo a interpretação de Martin Sheen, dando-o de presente não só o seu melhor papel, mas também um belo ataque cardíaco. É a vontade de realizar uma obra honesta que mostre o combate de luz e sombras que o homem sofre enquanto o mundo é dominado pelo horror, o horror…

Claro que ninguém escapa imune a esse mergulho. Foi o que aconteceu com Coppola. Apesar de ter ganhado sua segunda Palma de Ouro, “Apocalipse Now” é a descida dos infernos em que um artista empenhou sua casa no banco, engordou mais de cinqüenta quilos, quase morreu de malária e quase não tinha filme nenhum para terminar porque Martin Sheen podia não ter sobrevivido e Marlon Brando não sabia nenhuma das falas do Coronel Kurtz. O desgaste foi tamanho que, no seu projeto seguinte, a comédia “O Fundo do Coração”, Coppola também não mediu esforços: reconstruiu Las Vegas em estúdio, filmou tudo em câmeras de última geração, mas não conseguiu captar nem um centésimo da luz que pretendia. O fracasso o levou à bancarrota. Seu estúdio Zoetrope teve de ser penhorado e ele partiu para filmes de baixo orçamento, como “Vidas Sem Rumo” (1983) e “O Selvagem da Motocicleta” (1984), exemplos de como um grande diretor pode transformar um teen movie em uma reflexão sobre a dor de crescer num mundo brutal.

Essa dor seria sua companheira, tal como o que aconteceu com Michael Corleone. Em 1987, enquanto filmava “Jardins de Pedra”, um de seus filmes mais pálidos, Coppola perdeu seu filho, Gio, num acidente de barco. O rapaz fazia ski-aquático quando bateu em um outro barco e morreu na hora. Agora podemos compreender qual o verdadeiro motivo de Sofia Coppola levar aquele tiro em “O Poderoso Chefão III”: é o próprio pai recriando de forma simbólica a perda do filho. Outra vez, o mergulho se torna cada vez mais profundo, mais intenso.

Será que algum dia Francis Ford Coppola encontrará a luz? A nova versão de “Apocalipse Now” pode nos dar uma pista. Depois de filmes insignificantes para alguém que tem a sua importância (o patético “Drácula de Bram Stoker”, o infantil “Jack” e o medíocre “O Homem que Fazia Chover”), ele relança suas obras-primas seja no DVD ou nas telas do cinema para se preparar para mais outro projeto: a ficção científica “Megalópolis”, passada justamente na Nova York após o dia 11 de setembro. Mas o fato de ter acrescentado ao seu Vietnam uma terna cena de amor entre o tenente Willard e uma francesa colonizadora é revelador. Willard observa o corpo da bela mulher envolvida em um lençol branco e, numa lenta fusão, ela parece se tornar a neblina do rio que o levará ao Coronel Kurtz, o homem que terá de matar. O olhar de Martin Sheen nesta cena mostra como um ser humano pode perder a chance de redenção em poucos segundos. No meio da guerra e mesmo com as trevas como a única companhia que nos resta, Coppola parece dizer que ainda resta alguma poesia, algum milagre. O horror sussurrado por Marlon Brando talvez seja apenas uma passagem nesta vida peregrina.

(2001)

4 comentários em “O mergulho nas trevas

  1. Martim, update: o avião do Coppola não saiu de Los Angeles. Ele não estará na exibição de hoje à noite aqui em São Paulo…

  2. Perdi a conta das vezes que assisti ao Poderoso Chefão. E a música de Nino Horta é digna do filme.

    Martin, chamou-me a atenção essa semana quando vi que minha locadora classificava um filme com Burt Lancaster na categoria “Lançamento”. E, de fato, é um filme de 1962 chamado “The Byrdman of Alcatraz” e que gostei bastante que só agora está sendo lançado em DVD no Brasil. Conhece?

  3. “This is the end. Beautifull friend.” Belo ensaio. Bela recordação dos empolgantes ensaios do falecido O Indivíduo. À altura da obra de Coppola.

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