Reclamar da falta de educação dos brasileiros é, infelizmente, chutar cachorro morto. De fato, alguém no Brasil que não se atrase, que agradeça e peça desculpas quando necessário é quase sempre um neurótico. “Fulano sempre chega antes do horário marcado e fica bravo com quem chega depois,” descrevem como se fosse uma patologia. Uma pessoa tímida ou reservada, então, não é só doente como também um problema seríssimo para a família e para a sociedade. Em qualquer lugar que se vá, os extrovertidos de plantão tentam a todo custo curar a timidez do pobre coitado – sem nunca levar em consideração que talvez não exista nada de errado ou, mais inimaginável ainda, que o sujeito prefira ser assim. O normal (e é realmente a norma) do povo brasileiro é ser “alegre” – o que muitas vezes implica ser inconveniente, folgado, sem noção alguma dos limites entre certo e errado. Má educação é, no fundo, um problema moral. Se você não tem consideração pelos outros, não saberá se portar, e vice-e-versa.
Muitos fazem viagens internacionais e voltam com uma opinião pior ainda dos brasileiros. Mas acreditem: no que se refere à educação, o brasileiro não é o pior dos povos. Há um tipo ainda mais sem noção: o chinês. Passei um mês e meio na China, conheci várias cidades e, entre empurrões e catarradas, voltei com saudades dos brasileiros. O brasileiro é, por essência, um preguiçoso. Ele sabe o que é correto, mas tem preguiça. Se um adolescente está sentado no assento de idosos do metrô, ele sabe que deve ceder o lugar para a senhora que acabou de entrar, mas fecha os olhos e finge que dorme. Na China, não há a menor ideia do que é certo ou errado. Se alguém te empurra ou pisa no seu pé, não adianta olhar com cara feia. O chinês não finge que não sabia o que estava fazendo, ele realmente não sabe. Veja, antes que me acusem de qualquer coisa, confesso que nunca tive nenhum preconceito contra chinês – até conhecer a China. Um amigo me disse que isso tudo foi culpa da revolução, que antes tanto a educação como a etiqueta eram valorizadíssimas. Mas a China de hoje é um país de pessoas sem a menor consideração pelos outros – não é imoral, é amoral.
Pelo bem da justiça (estilisticamente, é sempre chato ser justo, mas assim desfruto dos louros da magnanimidade) admito que conheci alguns chineses extremamente generosos e educados. Alguns destes, contudo, eram pessoas que lidavam com o chá, um ritual antigo que depende de uma série de normas de conduta. A simples prática de preparar um chá e servi-lo corretamente, simplesmente porque vai de acordo com a tradição, deve influenciar positivamente o caráter de qualquer adepto. Então, aos bocós que sempre reclamam de generalizações: nem todos os chineses são terríveis. É só a maioria esmagadora.
Imaginem ir ao cinema na China. Eu fui. Não entendo chinês, mas fui assistir a um filme de artes marciais, o diálogo não importava muito. Percebi de cara que uma sala mequetrefe de um shopping qualquer tem um som muito melhor do que qualquer cinema que já frequentei no Brasil, inclusive IMAX. Mas percebi também, é claro, o público. O chinês não sussurra durante o filme (o que no Brasil já é suficientemente chato), mas fala em volume normal ou mais alto que os atores e os efeitos especiais. Dúzias de telefones tocam, sem a menor repreensão ou pressa de serem atendidos. As pessoas levantam, entram, saem, voltam, sem o menor constrangimento. É, de certa forma, o jardim do Éden – não existe pecado. Ao menos agiam de acordo com o filme: riam quando era engraçado, ficavam sérios quando era sério.
Já no ocidente, faz algum tempo que estamos sob o regime da ironia. Muito pior do que qualquer timidez ou introversão, para nos proteger de nós mesmos e dos outros, somos irônicos. A ironia é recurso que permite com que você nunca adote uma opinião sincera – porque a sinceridade em si já é ridícula. Se alguém lhe faz alguma pergunta, você responde com uma ironia e pronto – não foi preciso sentir ou pensar nada, não foi preciso se revelar e correr o risco de ficar exposto, vulnerável. Se reclamarem do comentário, você diz que “dã, era brincadeira” e fica tudo por assim mesmo. Somos blasés porque é bonito, é claro, mas também porque é fácil, muito mais fácil do que se comprometer; e dessa forma evitamos acabar desiludidos, enganados, magoados. Mas em qualquer situação séria, em que os sentimentos e a sinceridade importam, ficamos do lado de fora, como uma garota tragando um cigarro na sarjeta da balada.
Estou falando disso porque a atmosfera daqui está tão contaminada de ironia que já não sabemos diferenciar, em um filme, uma cena triste de uma cena engraçada. Por inúmeras vezes, fui ao cinema e me deparei com gente que não faz a menor ideia de quando rir ou quando chorar. No escuro do cinema, é mais fácil identificar alguém rindo do que alguém que chora, mas imaginem pessoas rindo em cenas dramáticas e, logo em seguida, completamente mudas diante de uma piada. Uma coisa é rir de um filme ruim, que se leva a sério mas acaba sendo uma comédia involuntária. Não era o caso. Eram espectadores que faziam questão de debochar da seriedade do que estava acontecendo – e, muito provavelmente, para se sentirem superiores ao filme e às emoções humanas em geral. O filme em questão foi Battle Royale 3D de Kinji Fukasaku, em que um programa governamental seleciona uma turma de estudantes que devem matar uns aos outros. Não se engane pelo 3D ou pelas associações com The Hunger Games (que eu não vi, mas dizem sugar absolutamente tudo do filme japonês de 2000), não se trata de um filme trash. As mortes ocorrem de tal forma que, normalmente, você só poderia ficar chocado ou mesmo triste.
Se todo esse esforço anti-humano serve para ficar na moda, mesmo assim, a estratégia é falha. Veja, a moda é cíclica. Aquilo que você esnobou na temporada passada, pode ser a coisa mais linda na seguinte. Cidadão Kane foi um fracasso de bilheteria em sua época, hoje é considerado o melhor filme americano. Muito mais seguro do que confiar na moda ou no que dizem ser bacana em determinado momento, é confiar no que você realmente sente e pensa. Sua mãe com certeza deve ter lhe avisado dos perigos de imitar os outros – mas, do jeito que estamos, vamos todos acabar pulando da ponte pois viver ficou muito demodé. Pior do que os tímidos e os pontuais, pior do que os chineses e sua total falta de consideração, é esse comportamento psicopata de querer desprezar tudo a todo instante.
Estou começando a gostar dos textos da Ieda. São simples, sinceros, com conteúdo e legíveis. Muitos textos aqui pecam por uma complexidade desnecessária. E aí, talvez, haja, sim, um pouco de vaidade. Mas é só um palpite. Quanto a este texto, concordo em número, gênero e grau. Mas devo dizer que é um pouco difícil fugir do “vício” da ironia.
Implicar é transitivo direto.
De nada.
Joel, se puder tirar o “em” de “implica em ser inconveniente”, agradeço. Foi um lapso meu.
Sou brasileiro, morador ha cinco anos na China. Ja tambem fui ha dezenas de cidades, falo chines fluentemente. O texto eh simplesmente injusto, errado, e totalmente nao verdadeiro. Aparentemente de alguem que nunca esteve na china.
No Brasil caso alguem trabalhe, se esforce e comnpre seus bens, corre o risco de ser roubado. Nao ha educacao minima com o que eh por direito do proximo, na China, nao.Texto honestamente repleto de preconceitos, falta de entendimento e inverdades, diferente do que seria feito pelo povo chines. Sugiro que desconsiderem o dito.
Concordo com a análise geral da autora, muito bom texto. Ainda assim, discordo disso de “rir em filme”. Obras de arte (ou de entretenimento de massa) não vêm com manual. A reação humana a elas precisa necessariamente ser variada. E quem quer que tenha visto Battle Royale, apesar de saber que trata de um tema sério, entende que as mortes, pelo menos algumas delas, parecem exageradas ou estilizadas de um modo aos quais ocidentais não estão acostumados — daí o riso.
O erro da autora é ver no riso uma demonstração de escárnio: as pessoas riem por diversos motivos, não só porque acham algo engraçado. E mesmo que achem, há várias nuances nesse engraçado.
É perfeitamente possível rir de algo triste e ainda assim sinceramente achar essa coisa triste. Existem até obras em que o humor opera exatamente nessa vertente. Não é desprezo. Isso não é ironia, é só uma das possíveis reações humanas.
A autora se incomodou com pessoas que riam num filme que ela achava triste e confundiu isso com ironia: eu diria que a plateia cometeu um erro de interpretação, não estava sendo irônica. Entendo a crítica à ironia, mas não era o caso.
Joaquim, eu tenho fotos (e meu passaporte) pra provar. Conheço brasileiros que moram na China e que concordam comigo. Sua opinião só é diferente.
Patrícia, eles não riram das mortes estilizadas. Riram daquelas que de fato eram tristes (e não riram só das mortes). Era um grupo de amigos comentando e rindo de várias coisas que não poderiam ter a menor graça. Era sim escárnio.
Não irei me ater à parte do texto que apresenta críticas aos chineses por não conhecer seu país nem sua cultura de forma mais presencial. No que se refere ao comportamento do grande público que invade as salas de cinema sem manifestar um mínimo de apreciação pela obra, mas sim vendo-a como um mero passatempo entre sair e voltar para casa, só posso dizer que nossa geração parece estar emburrecendo por causa desta massificação que coloca produtos de diferentes categorias no mesmo saco e faz com que estas mesmas pessoas sejam incapazes de reconhecer seus atributos e suas idiossincrasias. Vejo muitas críticas quanto às pessoas que perturbam a paz em um cinema, que sofrem de um mal – a falta de educação – o que se propaga quando estão em seus grupos homogêneos. É uma triste realidade o que é relatado pela autora nas salas de cinema chinesas e as agruras que ocorrem por estas terras também, contudo, não vejo uma solução tão satisfatória a gregos e troianos futuramente. Parece que a melhor ideia é transformar a sala de estar em um cinema e chamar os amigos para curtir um filme de arte ou um blockbuster descerebrado quando for possível.
A Ieda é ótima! A melhor colunista que já passou por aqui.
As biografias de Wittgenstein nos contam que ele, depois de algumas aulas e discussões, gostava de fugir para os cinemas para assistir filmes – não necessariamente de arte – para poder se libertar dos pensamentos.
Fico imaginando um Wittgenstein rindo na hora errada – rectius:, na hora que a Ieda considera errada – e sendo severamente criticado por isso.
Se devemos ter um roteiro para as emoções (choro, risada, desespero, angústia, felicidade, etc) quando estamos diante de uma obra (de arte) qualquer, sugiro que, simplesmente, mandem fechar tudo e nos mandem rir (ou chorar, tanto faz) quando a intelligentsia achar mais conveniente, como naquela boutade do tradutor japonês do presidente americano…
É, Jorge, vale o que a intelligentsia acha mais conveniente – i.e., o que eu decido. Não existe certo ou errado, bom ou mau, apropriado ou não. Se um sujeito prefere ter a “emoção humana” de sair socando todo mundo, eu que sou fascista mesmo.
é por aí, Ieda. Copio o que um amigo meu disse das experiências no CCBB do Rio:”…E esse lance do riso é praga… nego no CCBB ri de tudo. O ápico foi em “Liberty Valance”, na cena que o Wayne volta pra atear fogo na casa dele…
Ford, Hitchcock, Argento, etc isso aí é quase comédia pastelão… a maioria das pessoas deve ter saído de Phenomena achando que era um filme trash, estilo Machete, Planeta Terror, etc
E quanto mais violento, mais cômico deve parecer… é a geração bitolada Tarantino. O cara disse que cortar o braço e jorrar sangue é engraçado e pronto… nego acha que é assim em tudo.”
Creio que seja mais uma falta de educação estética mesmo, de uma cinefilia totalmente tomada pela linguagem publicitária. Já não consegue diferenciar um trashão de um exploitation/ filme B, não consegue passar por melodramas do Sirk sem dar risadinha, não consegue ver o que faz a grandeza do cinema clássico, i.e., a supremacia do gesto e do olhar.
Porra gente, cadê as resenhas do Batman?
Já foi publicado algum texto na Dicta sobre o filme novo do Batman?
Marcelo, ainda não foi publicado nada aqui sobre o filme. Vejamos se a Ieda Marcondes tem alguma carta na manga. Um abraço!
Independente dos chineses e deste ou daquele filme, as risadas fora de lugar sinalizam mesmo algo que talvez nem mereça o nome de “ironia” – ainda que Ieda Marcondes tenha deixado claro o que disse. E que faz todo sentido, mesmo que não seja simples exprimir.
De imagens inteligentemente editadas para compor narrativas a IM entenderá melhor; então um pouco ao acaso, duas tentativas até meio ingênuas (que coisa rara) de exprimir em palavras esse “algo” típico do nosso tempo (quem sabe houve coisa assim noutros períodos históricos, mas não sei).
1) Uma eu roubo do verbete da wikipedia sobre Finkielkraut, cujo livro de 92 sobre Charles Péguy está agora disponível também em italiano : « …Péguy [escrevendo ainda na Belle Époque] annonce ´une panmuflerie sans limite´(…) ´un monde non seulement qui fait des blagues, mais qui ne fait que des blagues, et qui fait toutes les blagues, qui fait blague de tout ». En effet, Péguy, aux antipodes de cet « universalisme facile » dont parle Jean-Claude Milner, écrit : « Je ne veux pas que l’autre soit le même, je veux que l’autre soit autre. C’est à Babel qu’était la confusion, dit Dieu, cette fois que l’homme voulut faire le malin ». A ironia, no sentido usado pela Ieda Marcondes, serve ao esmaecimento da alteridade, à confusão tolerante, à elisão do encontro.
2) A segunda tiro do Walker Percy, cujo trabalho está focado nesse “algo” associado à inautenticidade, a um mundo em que também os velhos símbolos cristãos perdem o gume, esvaziam-se de sentido (pelo desgaste, pelo aviltamento) e no qual somos frequentemente – como sugere ele em algum lugar – não mais de 2% de nós mesmos, se tanto.
Em “The Second Coming”, um advogado que busca sentido conversa com um capelão episcopaliano (podia ser católico) ausente de si mesmo.
O capelão faz uso de todos os clichês (ou tudo o que semioticamente virou clichê) sobre a imprevisibilidade da graça, encontrar nos outros o Criador, comunidade como lugar da Presença, nosso interior como lugar da Presença, o Criador talvez querer lhe dizer algo neste exato momento, etc.
Enquanto conversa, o advogado esconde uma Luger com a qual pretende matar-se – tão serenamente quanto possível – porque a possibilidade de suicídio remete à liberdade e portanto aguça o sentido daquilo que é real.
Percy condensa o episódio com muito bom humor; e na sequência da estória o advogado fará outras opções.
Tempo engraçado este, em que a anestesia (imbecilidade) socialmente difundida, pseudo-séria ou “irônica” (agora no sentido usado pela Ieda) só é vencida com a memória da violência extrema. Ou com bom humor, nas narrativas e nos encontros.