Riscos, incertezas e o dia da morte

Por que o risco calculado é melhor do que a incerteza absoluta? E por que ainda assim preferimos não saber o dia em que vamos morrer?

Recorramos a um experimento mental concebido por Ellsberg (Risk, Ambiguity and the Savage Axioms, in Quarterly Journal of Economics 75, 4 (1961), pp. 643 e ss.), chamado aqui simplesmente de Experimento, que parece bastante ilustrativo, e lembremos daquela quase poética declaração de Donald Rumsfeld:

There are known knowns; there are things we know we know. We also know there are known unknowns; that is to say we know there are some things we do not know. But there are also unknown unknowns – there are things we do not know we don’t know.

O Experimento consiste numa espécie de loteria. Há duas urnas A e B, cada uma contendo 100 bolas sortidas azuis e vermelhas. A urna A tem 50 bolas azuis e 50 vermelhas. A urna B possui uma quantidade desconhecida de bolas azuis e de bolas vermelhas. Basta que o jogador escolha uma das duas urnas e apanhe uma bola ao acaso. Se ele retirar uma bola azul, ganha o prêmio. A pergunta é: qual urna escolher? Como é fácil perceber, escolhendo a urna A, estou diante da probabilidade de 1/2 de retirar uma bola azul e ganhar o prêmio. Já com a urna B, enfrentarei uma probabilidade (aparentemente) desconhecida.

Experimentalmente as pessoas tendem a escolher a urna A. Se o leitor pensar, provavelmente também fará a mesma escolha. Por que? A resposta a ser dada é quase sempre: “bem, a urna B deve ter menos de 50% de bolas azuis, o que a torna indesejável”.  E isso faz todo sentido. Escolhendo a urna A racionalmente, a única razão para minha decisão é o fato de que a una B deve possuir menos bolas azuis. Não sendo assim, a escolha pela urna A é irracional. Mas suponha que o jogador ganhe o prêmio caso retire uma bola vermelha. O que fazer com a resposta: “a urna B deve ter menos de 50% de bolas azuis”? Porque agora essa crença é vantajosa, e eu deveria escolher, nesse caso, a urna B.

Essa crença contraditória, surgida quando se está diante do “desconhecido desconhecido” de Rumsfeld, parece mostrar que na verdade abominamos a incerteza (a urna B) e preferimos o risco calculado (a urna A). Perceba que há a chance de que a urna B contenha apenas uma bola vermelha e 99 azuis, o que a tornaria muito mais desejável do que a urna A. Mas mesmo assim mando-a às favas e fico com a urna A. Prefiro o “desconhecido conhecido” — neste caso, o desconhecido é “em qual dos lados do 50/50 ficarei ao final”, e o conhecido é o “50/50″. A urna B traz um desconhecido “em qual dos lados do m/n ficarei ao final” e outro desconhecido, “m/n”.

Evidentemente, a matemática da questão é um pouco mais complexa. (Não vou tratar desse problema aqui. Mas o início da solução é: se a probabilidade associada à urna B é totalmente aleatória para o evento ‘retirada da bola azul’, temos {1/99, 2/98, 3/97, … m/n}, para 0 < m,n < 100, etc). Afinal, a chance de o número de bolas azuis ser maior que o de vermelhas parece ser de 50%! Mas os resultados humanos são conhecidos. Preferimos, quase todos nós, a urna A — ao menos porque o cálculo do risco é trivial.

Agora vamos mudar o experimento em apenas dois pontos: o “prêmio” é a morte e o jogador é impedido de se retirar do recinto. Alguém se lembrou da Loteria da Babilônia, de Borges? Nesse caso, a resposta do jogador não viria tão rapidamente. Se pudesse, contrataria um matemático para o auxiliar na decisão (e amaldiçoaria o nosso Ellsberg), ou então pediria a proteção da lei diante de tão cruel experimento (aqui, d. G., apenas mental).

É o que fazem o direito e a economia: reduzem o desconhecido ao conhecido para que, mesmo que o cenário seja sombrio, saibamos onde estamos a pisar. Mas a natureza de um e outro diferem radicalmente. O direito prevê, por exemplo, que se as condições que fizeram com que Caio realizasse um contrato com Tício vierem a se alterar bruscamente, aquele que saiu prejudicado pode recorrer ao Judiciário para obter a revisão do contrato (cláusula rebus sic stantibus). A imprevisibilidade da aplicação do direito exsurge dos fatos, das interpretações e da limitação humana. Já a economia é, em geral, puramente descritiva: ela diz ao agente Caio que, segundo o modelo tal, hoje não é um bom dia para indexar as prestações ao dólar americano, porque estamos em 2007 e há uma bolha imobiliária nos EUA… A economia pode errar, e frequentemente erra; o direito protege as expectativas legítimas, faça chuva, faça sol, porque é um ente normativo e não descritivo. Mas ambos preferem, e buscam, lidar com o risco calculado e, como nós (porque são, afinal, ciências humanas e tratam do imponderável), abominam a incerteza absoluta.

Mas há um fato que parece contradizer o resultado do Experimento: quem gostaria de saber o dia da sua morte? Preferimos, nesse caso, o desconhecido conhecido ou o duplo desconhecido? Parece que preferimos o duplo desconhecido, a incerteza absoluta (“morrerei entre hoje e sei lá quando”) ao conhecimento de intervalos probabilísticos (“morrerei entre os 50 e os 60″). Eu não me arriscaria a declinar, com todas as letras, o porquê desse nosso amor ao incognoscível nesse caso excepcional.

Poderia, contudo, esboçar uma hipótese. A morte é o fim de todas as possibilidades (ao menos terrenas, porque aqui não toco na premissa da vida após a morte, que não altera necessariamente a hipótese), a cessação das escolhas e da percepção. Quando não pudermos mais escolher e sentir, as consequências de nossas ações, o perigo, o medo, nada mais importará. Se o sujeito não existe mais, desaparece, com ele, o seu medo diante do desconhecido. Esse evento que desaparece juntamente com o sujeito precisa se manter incógnito. (Por isso não se pode, a rigor, pretender que o suicídio vá tirar alguém do estado de mal-estar do qual ele quer, desesperadamente, fugir — sem percepção, não há nem sentir-se bem, nem sentir-se mal.) Mas por quê?

A razão disso é difícil de explicitar — se é que ela existe –, mas considerem o seguinte caso. Sei que vou morrer amanhã. Sabendo disso, o meu leque de ações possíveis diminui consideravelmente. Não posso marcar um compromisso para depois de amanhã. Não irei me inscrever no curso tal. Não começarei a estudar russo. Tomado de um surto de bom moço, o máximo que posso fazer é o clássico norte-americano “resolver as pendências”: fazer as pazes com certas pessoas, plantar uma sequoia, fazer um testamento favorecendo um asilo de velhinhos, etc. Posso ser um homem prático e cuidar das contas a pagar, dos eventuais problemas com a administração do espólio e outros assuntos deste jaez. Mas meu raio de ação envolve apenas atos de hoje para amanhã. Os planos são restritos, e muitas vezes impossíveis, e o atropelo é enorme. Agora considere que vou morrer daqui dois dias. Aumenta-se o número de possibilidades e reduz-se o atropelo. Regra geral, quanto mais dias tiver de vida, maior é o meu campo de ação. Todavia, misteriosamente, o saber o dia da morte sempre reduz consideravelmente o meu campo de ação. O cálculo envolve o imponderável, mas é razoável pensar que essa afirmação é verdadeira: se não sei o dia da minha morte, posso planejar e viver como se fosse imortal, equiparando, para efeitos práticos, a ignorância de x com o não-x. É bastante aceita a ideia de que o sentido da vida está numa projeção, e que viver de acordo com um plano é algo que nos preenche. Há mais sentido e plenitude quando não se sabe o dia da morte (excluído aqui o caso dos doentes terminais), porque para toda ação imaginada, dentro dos limites do que se considera “a vida de um homem”, há um amplo espectro de desdobramentos estando presente o sujeito (ponto que podemos colocar na conta da “plenitude”), mesmo que um grande número dessas ações seja, na verdade, impossível objetivamente: porque vou, afinal, morrer num dia determinado.

2 comentários em “Riscos, incertezas e o dia da morte

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