Sexo, um delírio

 

Jennifer Westfeldt, diretora, roteirista e protagonista de Solteiros com Filhos, não é nenhuma Megan Fox. Ela fala e sorri como quem tem vergonha dos próprios dentes, cobrindo-os com os lábios superiores, deixando a boca com um estranho formato em “v”. Julie, sua personagem, diz que não é bonita, que apenas sabe se arrumar e que tem “cabelo bom”, o que é verdade (mesmo assim, a atriz namora com Jon Hamm, o Don Draper de Mad Men, desde 1998). Jason, seu amigo desde a adolescência (Adam Scott, de Parks and Recreation), não sente atração física por ela; prefere namorar brevemente mulheres mais bonitas, terminando por motivos mesquinhos como “ela votou em Bush”. Na cabeceira dos dois, estão livros que são como bíblias do ateísmo, The God Delusion de Richard Dawkins e God Is Not Great de Christopher Hitchens. Isto serve para nos mostrar como, apesar de nunca terem tentado um relacionamento, os dois pensam da exata mesma forma. O amor ateu é tão romântico!

Os amigos de Julie e Jason sempre quiseram vê-los juntos, o que nunca aconteceu. Leslie (Maya Rudolph, de Saturday Night Live) e Alex (Chris O’Dowd, da subestimada sitcom The IT Crowd) estão casados há alguns anos e têm um filho pequeno. Missy (Kristen Wigg, roteirista indicada ao Oscar pelo excelente Missão Madrinha de Casamento, um título babaca para Bridesmaids) tem um recém-nascido com Ben (o já citado Jon Hamm, que é também produtor do filme). A rotina, ainda mais com crianças para cuidar, enlouquece os dois casais e faz com que sejam frios ou mesmo rudes uns com os outros. Julie e Jason, sabe-se lá por quê, querem ter filhos, mas sem ter de passar por um casamento inconveniente ou até destinado ao fracasso. Decidem, portanto, ter um bebê juntos mas continuar amigos, namorando outras pessoas.

A julgar por títulos recentes de cinema, como Amizade Colorida (Friends with Benefits), Sexo Sem Compromisso (No Strings Attached) e o próprio Solteiros com Filhos (Friends with Kids), tanto a noção de amor como a de amizade passam por uma certa crise. Não é mais possível um homem e uma mulher serem amigos sem cogitar a possibilidade do sexo casual. Ou, então, não há mais casamento ou família que pareçam atraentes sem a opção de um relacionamento aberto. Quando Julie e Jason vão fazer o bebê, tentam assistir um pornô, bebem vinho, mas todo tipo de estranheza surge. Jason tenta reconfortá-la, diz que “é só sexo”, mas nunca é “só sexo”. Tentamos (em alguns casos, repetidas vezes) separar do ato uma série de sentimentos que nos são naturais, inclusive os ciúmes – e falhamos porque simplesmente não somos macacos. É possível, talvez, associar a crise da fé com a crise dos relacionamentos, mas divago.

O namoro de Missy e Ben, antes fundamentado no sexo constante, logo começa a ruir. Mais tarde, depois que se separam, ela aparece acompanhada de um homem muito menos atraente, mas feliz. Já o casamento de Leslie e Alex, apesar das crises, segue forte e é o verdadeiro exemplo, porque sempre teve o amor como base. Para Julie e Jason, o acordo funciona muito bem no início. Mas quando começam a namorar, ela não consegue ser totalmente feliz com o gentil Kurt (Edward Burns) e ele, tampouco, prolongar sua satisfação com Mary Jane (Megan Fox), cujo principal atributo é ser magrinha e de peitos grandes. Há, contudo, um problema de timing. Da mesma forma que meninas costumam amadurecer antes dos meninos, Julie percebe que ama Jason muito antes dele perceber o mesmo, e quando ela tenta compartilhar sua descoberta, ele acaba dizendo as piores coisas possíveis – que não sente atração por ela e que ela é sua “melhor amiga” – e perdendo inclusive sua amizade.

Demora, mas Jason percebe o erro do seu relacionamento com Mary Jane. Conversando com Ben, diz que há muita intimidade entre ele e Julie, que ela é como parte dele mesmo. Ben pergunta como isso pode ser ruim e ele responde, “porque eu me odeio”. É como naquele episódio de Seinfeld em que Jerry encontra uma mulher exatamente igual a si – mesmas opiniões, mesmas piadas – e, logo, acha-a insuportável. Queremos alguém que nos lembre de nós mesmos, mas não muito. Temos dificuldade em reconhecer nos outros nossas próprias qualidades e os defeitos, tão familiares, se tornam inadmissíveis. Procuramos por um ser perfeito que tenha os mesmos valores que nós, mas não as mesmas falhas. Bobagem, é claro.

Solteiros com Filhos é uma comédia romântica sem grandes pretensões, mas que toca em algumas verdades. Perdoem o trocadilho, mas graças a Deus que a reconciliação dos dois não é óbvia ou boba. Jason finalmente amadurece, é verdade, mas um gesto romântico não é suficiente para fazer com que ela esqueça tudo o que foi dito. Ele precisa convencê-la. O sexo surge, então, não como algo casual ou meramente físico, mas como uma expressão genuína de amor.

2 comentários em “Sexo, um delírio

  1. Essa é uma tese muito boa: o sexo sem compromisso tem se tornado um problema. E isso é bom.

    O ator é bom. A atriz também deve ser. Espero que a Megan Fox não tenha estragado algo.

    abraço

  2. Ieda,

    Excelente análise para um bom filme. As suas análises tem melhorado, parabéns.

    Aguardo mais análises e, quem sabe, um artigo (kilométrico, por favor) na próxima Dicta.

    Abraços,

    Henrique Santos

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