The Good Wife – Televisão para adultos

GoodWife

Não sei se é o meu gosto que mudou, mas vejo cada vez menos motivos para ir ao cinema. A quase totalidade dos filmes (ou ao menos dos filmes que passam aqui no Brasil) são produções boçais para o público adolescente. Basta lembrar que o filão de maior sucesso são os inspirados em histórias em quadrinhos (nada contra as HQs, mas às vezes precisamos de mais densidade). Ao mesmo tempo, as séries de TV têm ficado cada vez melhores. Sem a limitação de tempo do filme, e sem os recursos bilionários para se perder em efeitos especiais, elas podem se dar ao luxo de construir bons roteiros e personagens interessantes, indo além da pose que passa por caracterização em nosso cinema pós-Tarantino.

Mesmo entre as séries, há as adolescentes e as adultas. Nas primeiras nada é permanente: empregos e relacionamentos mudam com facilidade; aliás, o enredo consiste basicamente na troca de casais, briguinhas explosivas e saídas repentinas. Apesar de constantes e irrelevantes, as mudanças são sempre acompanhadas de muito drama, e a falta de valor objetivo é inversamente proporcional à quantidade de lágrimas e considerações pseudo-filosóficas para convencer o espectador de que tudo aquilo é profundo e “importa”, sempre da forma mais óbvia e escancarada possível. O melhor exemplo desse tipo é Grey’s Anatomy.

The Good Wife, cuja segunda temporada acaba de começar, está na categoria oposta: a série adulta. Isso quer dizer que os eventos na tela de fato importam. Atos têm consequências e valores reais estão em jogo: uma família, uma carreira, uma empresa, uma reputação. Por isso mesmo ela pode ser sutil e não exagerar no melodrama.

O centro da série é a advogada Alicia Florrick, que se vê forçada pelas circunstâncias a retornar à profissão quando  o marido Peter, promotor público, é preso num escândalo envolvendo corrupção e prostituição. Até que ponto ele é corrupto nunca fica claro, mas ao adultério com uma profissional não há dúvidas. Com o marido preso, Alicia e os filhos mudam-se para um apartamento e ela volta ao Direito que havia abandonado para se tornar dona de casa; mais especificamente, vai trabalhar na Sterne, Lockhart & Gardner, empresa de seu velho amigo e antigo flerte de faculdade, Will Gardner. O problema é que a própria empresa não tem ido muito bem das pernas, e só pode contratar mais um associado; Alicia terá que disputar a vaga com Cary Agos, um jovem promissor recém-saído de Harvard Law. Paralelamente, Peter e seu estrategistas conseguem aos poucos reverter a situação calamitosa e suas perspectivas começam a melhorar, de forma que ele não só talvez saia da prisão, como possa até mesmo voltar à vida pública. A relação com Alicia, contudo, continua fragilizada; Peter a quer de volta e ela resiste.

Esse é, em poucas linhas, o enredo da primeira temporada de The Good Wife. Vamos ao que a torna um produto superior. Em primeiro lugar, fugir de todas as resoluções fáceis. Uma série inferior com um enredo desses teria uma saída fácil e convencional: Peter como o grande vilão, o machista dominador que manipula sua esposa, ao passo que Will seria o verdadeiro amor da vida dela. Nada disso por aqui. Primeiro porque Will é alguém com sérios defeitos: é alguém que encarnou em si a lógica do Direito, e para quem vitórias no tribunal e o dinheiro da firma estão acima de tudo (a proximidade com Alicia parece abrandar um pouco sua inescrupulosidae); ao mesmo tempo, é alguém distante e defensivo, que foge de seus verdadeiros sentimentos em one-night stands inconsequentes. Que o objeto de interesse ilícito seja imperfeito é até comum; o mais inesperado é a caracterização de Peter e sua mudança ao longo da temporada.

Seria muito fácil retratá-lo como um crápula: corrupto, adúltero, dominador; e de quebra isso daria uma licença moral para Alicia jogar-se sem remorsos num caso com Will. Mas, surpreendentemente, Peter arrepende-se do que fez, defende-se com maestria das acusações legais e passa, na frente dos espectadores, por algo que, ao que tudo indica, é uma sincera conversão espiritual. Que um político queira aparentar piedade religiosa depois de envolvido num escândalo é comum o bastante, e inclusive é isso que leva seus assessores à igreja do pastor Isaiah. Mas que a conversão seja real e, para desespero dos mesmos assessores, leve Peter a conter os golpes baixos contra sua concorrência e a recusar novas possibilidades de adultério é surpreendente. O homem branco e rico não conta com muitas possibilidades de redenção no entretenimento contemporâneo.

Como bem disse um amigo meu, The Good Wife é sobre tentação. A tentação de se abrir mão de quaisquer princípios para se perseguir com mais eficácia os próprios objetivos. No final das contas, princípios não-negociáveis são uma vantagem ou um obstáculo à vida bem-sucedida? Alicia é uma boa mulher e uma boa esposa; alguém que tem valores não-negociáveis. Ao assumir as novas responsabilidades do mundo do trabalho (ao qual ela volta inicialmente sob necessidade, mas no qual continua por decisão livre), ela será pressionada a deixá-los de lado. Terá ela que podar sua natureza benevolente e disposição de ajudar para o bem de sua carreira e de sua empresa? E estará disposta a usar de quaisquer meios para chegar aos fins que almeja? É possível ser um bom ser humano e um bom advogado?

Há dois personagens que representam o uso inescrupuloso dos meios: Eli Gold, estrategista da campanha de Peter; e Kalinda, investigadora privada contratada pela Lockhart & Gardner. Eli emana uma aura de invencibilidade; Kalinda é obviamente alguém mais vulnerável. Reservada, ambígua (a começar por sua sexualidade, que é uma das ferramentas a seu dispor), implacável quando quer algo e, ao mesmo tempo, dotada de um lado benevolente. Fica patente que ela quer ajudar Alicia, e faz muito mais do que o mínimo profissional exigiria; ela é sua mentora no lado negro do Direito. Talvez veja na nova advogada o ideal de mulher que ela nunca conseguiu ser. Alicia é alguém que, acima de tudo, se preserva; Kalinda se entrega e se vende, e carrega na alma as cicatrizes de suas decisões. Já Eli Gold, ao que tudo indica, não faz favores a ninguém; com ele tudo é uma troca, um negócio; e sua grande virtude é deixar isso claro, sem rodeios ou máscaras. Até que ponto isso tem afetado sua vida pessoal é deixado para a segunda temporada. Uma terceira personagem, que pode ser ou não uma manipuladora de primeira ordem, é a mãe de Peter, Grace; uma boa vovó (que cuida e gosta verdadeiramente de seu filho, nora e netos) que por trás dos panos pode ser manipuladora e agressiva feito uma leoa se o sucesso do filho estiver em jogo. Se sua disposição mais profunda é em última análise moralmente positiva (e portanto de acordo com seu nome, Grace, ou seja, a influência divina que eleva a alma ao seu legítimo fim) ou negativa (algo mais próximo das conspirações diabólicas) só o tempo dirá.

Outro dado distintivo da série é que ela se passa no mundo real: na Chicago dos dias de hoje. Não faltam alusões e referências às figuras reais da política (Obama, Hillary, Sarah Palin) e nem à divisão cultural dos EUA. Liberais e conservadores aparecem e, novamente, nem sombra do maniqueísmo que facilmente se insinua até nas séries supostamente neutras. Aliás, a série vai ainda mais longe ao deixar ver que a posição política do indivíduo é, por vezes, seu traço mais superficial. Diane Lockhart, uma das donas da firma, é liberal até a medula; e mesmo contra todas as suas convicções políticas envolve-se (tanto profissional como pessoalmente) com os tipos mais reacionários e conservadores para muito além da prudência.

O mundo adolescente é o mundo das ações sem consequência. Troca-se de namorada, troca-se de emprego, troca-se de sonho, troca-se de amigos, e tudo continua na mesma. Em The Good Wife estamos em território francamente adulto. Tudo tem conseqüências. Alicia tem um casamento e filhos, e agora uma nova paixão que é sua carreira; Peter tem sua reputação e futuro político na linha. A Sterne, Lockhart & Gardner é a grande obra de Will e Diane. Todos têm o que perder. Seguir um impulso, um desejo momentâneo (que por algum motivo a nossa sociedade confunde com o amor profundo), é uma burrice. E, ao mesmo tempo, os dilemas são reais; pois para que servem os laços duradouros se eles não dão ao homem aquela satisfação mais profunda que um arroubo momentâneo promete por alguns instantes? Pegue quaisquer dois personagens e você encontrará uma combinação de competição e cooperação. É impossível descrever os relacionamentos em sua complexidade. A graça mesma de assistir está em vê-los se desenrolar aos poucos; um olhar, um desencontro, um silêncio; há histórias progredindo nas entrelinhas, há o passado de cada personagem que descobrimos pouco a pouco e as inseguranças quanto a um futuro ainda indefinido. Tudo muito real e relativamente sutil.

A primeira temporada termina num clímax. Todos os conflitos se intensificam, e mesmo os que se resolveram dão uma virada nova (a disputa pela vaga entre Alicia e Cary, por exemplo, foi resolvida mas deu lugar a algo ainda mais sério). Se a segunda e as subseqüentes mantiverem o mesmo nível, teremos bons motivos para ir menos ao cinema.

10 comentários em “The Good Wife – Televisão para adultos

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  2. Joel:

    Belo artigo! Mas repito: se vc quer ver o que é o modelo de série de TV, o negócio é ver The Wire, The Sopranos e Deadwood.

    Abraços

    Martim

  3. É, nunca vi nenhuma dessas. Quem sabe eu veja The Wire para me reconectar a Baltimore. Deadwood cheguei a ver uns episódios quando estreeou, mas me pareceu algo que queria mais chocar com sua violência e sexo do que qualquer outra coisa.

  4. Oi Martin,

    Desculpe atravessar sua ótima resenha.

    Por favor, dá uma olhada nesse manifesto por liberdade de expressão religiosa: http://www.youtube.com/watch?v=vxnI9R6OsaE

    Mais de 1500 sites e blogs já reproduziram o mesmo:

    http://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&client=firefox-a&hs=N65&rls=org.mozilla%3Apt-BR%3Aofficial&q=%22Universidade+Mackenzie%3A+Em+Defesa+da+Liberdade+de+Express%C3%A3o+Religiosa%22&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai=

    Por favor, dê uma força para esse movimento!

    Precisamos de ajuda.

  5. Aliás, recomendo também Army Wives. Ela passa na Liv. Nos EUA já está na quinta-temporada – aqui ainda está repetindo a primeira. Serie adulta de primeira.

  6. Parece que o mundo do entretenimento “traiu os seus princípios” e fez algo bom. A série passa em algum canal no Brasil?

    Eduardo-Santo André-SP

  7. Joel,
    um belo texto, assim como o último que “desconstruiu” House.
    Só uma coisinha: o nome da sogra nao seria Jackie?! No texto está como Grace.

    “Pelo direito de recomeçar” é, uma vez mais, a tentativa de emburrecer… Good grief!!!

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