Três Filmes de William Wyler

Ao contrário de Stanley Kubrick ou Lars Von Trier, nomes que surgem em questão de segundos assim que se inicia qualquer conversa sobre cinema, os filmes de William Wyler são, hoje em dia, mais conhecidos do que ele próprio. Indicado doze vezes ao Oscar de Melhor Diretor (venceu três, perdendo apenas para os quatro de John Ford), poucos se recordam de citá-lo como um dos maiores diretores americanos de todos os tempos, ao lado de Howard Hawks, Frank Capra, Orson Welles e até mesmo Ford. Talvez porque, fora a qualidade de seus filmes e a complexidade de seus personagens, é difícil apontar outra característica em comum no conjunto de sua obra. Wyler fez drama, comédia, suspense, faroeste, musical. Sua habilidade era tamanha que podia ir e vir pelos gêneros, sem nunca parecer deslocado. Não são muitos os diretores capazes de executar um épico de mais de três horas sobre vingança e cristianismo como Ben-Hur e também A Princesa e o Plebeu, comédia romântica adorável que lançou Audrey Hepburn à fama. Seu musical com Barbra Streisand, Funny Girl – A Garota Genial, não poderia ser mais diferente de O Colecionador, o melhor filme que já vi sobre psicopatia.

Por conta dessa ausência de um universo ficcional mais fácil de reconhecer como, por exemplo, o de Alfred Hitchcock (não há como fazer uma paródia da filmografia de Wyler) ou de um conjunto de maneirismos estilísticos que torna tanto Spielberg como Godard tão identificáveis, Wyler não é estudado como um autor. Seu estilo invisível – mas não inexistente – é justamente o responsável pela eficácia de seus filmes. Suas histórias são capazes de nos absorver de tal forma que mesmo aqueles cujos olhos são treinados para notar detalhes técnicos acabam se esquecendo de escrutinar cada posição ou movimento de câmera. Todo clichê é uma verdade desgastada – mas, nos filmes de Wyler, realmente choramos e rimos com seus personagens, como se os conhecêssemos e vivêssemos através deles. Poucos diretores me fizeram sentir tanto. Resolvi, portanto, recomendar filmes mais antigos e menos conhecidos, apesar de excelentes e premiados:

Dodsworth, 1936

Baseado no romance de Sinclair Lewis, Dodsworth recebeu sete indicações ao Oscar (inclusive melhor filme, melhor diretor e melhor roteiro), mas teve a infelicidade de concorrer com Ziegfeld – Caçador de Estrelas, filme de proporções gigantescas e um plano sequência memorável. Dodsworth é como um conto de coming of age para a meia-idade. Presidente da Dodsworth Motor Company, Sam é convencido pela esposa Fran a se aposentar e levá-la a um cruzeiro pela Europa. Durante a viagem, Fran se alimenta da atenção de homens mais novos para voltar a se sentir jovem e transparece uma necessidade desesperada de sofisticação que muitas vezes a torna pedante e falsa. Sam, enquanto isso, não se deixa impressionar e sente saudades da família e dos Estados Unidos. No IMDb, um usuário comentou que o conflito entre a inocência americana e a sofisticação europeia era justamente um dos temas favoritos de Henry James, contemporâneo de Lewis, mas que tal conflito presente no filme é tratado com uma concisão e uma empatia que mesmo James conseguia conquistar apenas ocasionalmente. Empatia é a palavra perfeita. A rápida descrição que fiz de Fran não lhe faz justiça. Ela não é uma vilã, é possível compreender perfeitamente o que ela sente e por que ela age. É possível, inclusive, se identificar com ela e com Sam ao mesmo tempo. Porque os personagens são tão bem criados, tão bem dirigidos, é possível encontrar algo nosso em cada um, ainda que sejam diferentes. Eles não representam conceitos ou camadas da sociedade; são pessoas completas, complexas e que ainda passam por um processo doloroso de aprendizagem em plena idade adulta – e não por serem imaturos, que seria o normal de hoje em dia, mas porque o tempo muda as pessoas.

Rosa da Esperança (Mrs. Miniver, 1942)

Winston Churchill disse que Rosa da Esperança (título terrível) fez mais pelas forças aliadas do que uma frota de encouraçados. O filme que ganhou o Oscar nas categorias de melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro, melhor atriz e melhor atriz coadjuvante (e foi indicado para mais seis estatuetas) é ambientado na Inglaterra durante os primeiros meses da Segunda Guerra Mundial. G.K. Chesterton considerava o patriotismo uma virtude, mas infelizmente só consigo exercê-la com os países dos outros. Filmes de faroeste e de missão espacial sempre me enchem de uma admiração transbordante pelos americanos. Este me dá vontade de ter nascido na Inglaterra, de ter feito parte desse povo. Entre convocações e bombardeios, os habitantes de uma vila próxima a Londres tentam viver normalmente. A guerra não detém bailes ou um concurso importante de jardinagem em que a rosa batizada de Sra. Miniver concorre com a rosa de Lady Beldon, vencedora recorrente. Há, no filme, um certo escárnio daqueles que desprezam a frivolidade. Em momentos de dificuldade, a frivolidade não é frívola, mas um recurso de sobrevivência. Talvez isso explique o humor inglês. Para suportar o risco de uma morte iminente, é preciso humor e leveza. Quando, por fim, a guerra atinge a vila e personagens queridos morrem, há um sermão emocionante do padre em uma igreja em ruínas, tentando explicar aos fiéis o motivo desses acontecimentos terríveis. Não quero dar muitos detalhes sobre o que ele fala, mas seu discurso pode ser aplicado em qualquer momento histórico porque trata também da existência que, por si só, é como uma guerra.

Os Melhores Anos de Nossas Vidas (The Best Years of Our Lives, 1946)

Apesar de não ter relação direta com Rosa da Esperança, pode ser encarado como uma sequência ao filme de 42. Em Os Melhores Anos de Nossas Vidas, a guerra já acabou. Os soldados americanos que estavam lutando na Europa estão retornando para suas casas, alguns aparentemente incólumes e outros com ferimentos visíveis. Homer Parrish, interpretado por Harold Russell, perdeu as duas mãos e tem medo de como sua família e sua noiva reagirão aos ganchos que já comanda com destreza. Russell, que realmente tinha perdido as duas mãos, ganhou um prêmio honorário da Academia por trazer esperança e coragem aos veteranos da guerra com sua participação em Os Melhores Anos. O ator ganhou também o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante e o filme ganhou em mais seis indicações (filme, diretor, roteiro, ator, edição e música). Al Stephenson, interpretado por Fredric March, precisa voltar a se acostumar à vida de casado e funcionário de banco, com filhos que não são mais as crianças que ele conhecia. Fred Derry (Dana Andrews), apesar de ser um oficial do exército, precisa retornar a um emprego muito mais inglório e a uma esposa com quem ele não tem mais afinidade alguma. Homer não fala mais sobre casamento com sua noiva por não querer lhe infligir sua condição, Al recorre à bebida para conseguir relaxar e Fred tem pesadelos constantes. Os efeitos de uma guerra são devastadores não só em escala social, mas principalmente em escala individual, modificando totalmente (e de formas diferentes) cada um dos afetados. No entanto, assim que um personagem se pronuncia contra a guerra e contra os Estados Unidos, leva um soco nas fuças. A guerra é sim terrível, mas muitas vezes necessária e o único sentimento cabível por qualquer um que tenha abdicado da própria segurança para lutar em prol de outros é respeito. No fim, é o amor, a família e a amizade que reabilitam os soldados.

4 comentários em “Três Filmes de William Wyler

  1. Ótimo texto, Ieda, refletindo sobre a veleidade estilística que se sobrepõe ao conteúdo narrado.
    Valeu.
    Mas, pô, sacanagem por na mesma frase o invulgar Kubrick com esse depressivozinho “indie-estatal-dinamarques” do Von Trier…
    Abs.

  2. Finalmente outro texto da Ieda. Não li todo, porque não vi os filmes, mas tenho Os Melhores Anos cá no gatilho.

    Na parte que li, devo lembrar que Kubrik também pouco se repetiu. Veja quão diferentes são todos aqueles filmes, em relação ao tema ou à abordagem; ele passa pela comédia, ficção científica, noir, terror, épico, etc, e realiza ao menos um clássico em cada um desses gêneros.

  3. Paulo, pode ler tudo. Tento sempre não revelar nada muito específico ou que prejudique o filme. Escrevi para que as pessoas se interessassem a ver mesmo.

  4. O milagre da Internet me trouxe até aqui, encontrando um texto talentoso em forma e conteúdo. Gosto muito quando se aborda os chamados velhos mestres. Muito cinéfilo de carteirinha, infelizmente, pensa que o cinema existe apenas a partir do ano em que passaram a apreciá-lo. Quando mergulham no passado, emergem os nomes que se tornaram clichês: Kubrick, Chaplin, Wilder e vamos meio que parando por aí. Muito se discute que Wyler não foi um “autor” de filmes. Mas ninguém é obrigado a encaixar-se nas teorias do Cahiers du Cinema e ele sempre teve predileção pela variedade de gêneros. Mas seu perfeccionismo, seu apuro formal, o bom gosto das composições, o colocam ao nível de um autêntico cineasta, ao invés de mero “diretor”. Wyler podia até cultuar um rigor classicista e acadêmico, porém jamais foi arcaico e convencional. Parabéns pelo texto!

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