A opção preferencial pela loucura

Recentemente, foi publicado um texto na blogosfera que perguntava se Martin Scorsese não passava de uma farsa. Depois de ter visto Ilha do Medo (Shutter Island, 2010), creio que as suspeitas foram infundadas. É simplesmente um de seus melhores filmes, que fica anos à luz de Os infiltrados, O Aviador e Gangues de Nova York – e não deixa nada a dever ao seu cânone, composto por clássicos como Taxi Driver, Touro Indomável, Os bons companheiros e Cassino.

A obra de Scorsese peca por irregularidades. Ela não consegue, por exemplo, atingir a coesão de intensidade de um Kubrick, de um Bresson ou até mesmo de um John Ford. Existem altos e baixos – mas jamais um filme ruim ou até mesmo insuportável de assistir. Scorsese sempre quis fazer um cinema que atingisse o público no âmbito dos sentimentos e que também o completasse como autor, como um artista que usa o meio para expressar suas candentes obsessões.

Este método deu certo em Depois de Horas, Cabo do Medo (Cape Fear) e A Época da Inocência (talvez sua obra-prima e seu filme mais subestimado pela crítica), mas agora, com Ilha do Medo, ele realiza aquilo que era uma de suas intenções desde do início da carreira: o filme subversivo.

Scorsese discorre longamente sobre esse gênero perdido, que fica entre o filme B e o suspense psicológico, em seu documentário Uma viagem pessoal pelo cinema americano (1996). Para o cineasta nova-iorquino, o filme subversivo é capaz de transmitir ao público uma série de reflexões que jamais seriam compreendidas se fossem exprimidas de forma direta, justamente por seu caráter perturbador. Os temas são os mais desagradáveis possíveis: perversões sexuais, loucura, paranóia, drogas – um infinito etécetra que só precisa de uma oportunidade para que o ser humano mostre sua verdadeira natureza.

Esta é a pergunta que Scorsese lança ao espectador com Ilha do Medo: Qual é a verdadeira natureza humana? E, para isso, ele utiliza de todos os recursos cinematográficos de manipulação para que poucos percebam o que está em jogo. De cortes abruptos a uma fotografia estilizada, passando pelo uso de música clássica contemporânea, até intepretações que não têm medo de atingir o histriônico (e aqui temos de fazer justiça a Leonardo DiCaprio, que melhora a cada filme que faz – veja seu trabalho em Revolutionary Road, de Sam Mendes), Scorsese brinca com os sentidos da platéia e a faz também questionar sobre o que seria a realidade e como a apreendemos na nossa consciência.

Parece que estou a comentar um tratado filosófico – e não seria exagero fazer isso se Ilha do Medo não fosse um filme complexo que, mesmo com seu final surpresa, só pode ser apreciado após repetidas revisões. Mas, como se não bastasse,  é também um tratado de história cinematográfica: Scorsese dialoga com Fritz Lang, Samuel Fuller, Alfred Hitchcock e, de quebra, ainda faz referências à sua própria obra, ao Silêncio dos Inocentes de Jonathan Demme (o que faz ali Ted Levine, o Buffalo Bill, como diretor de segurança do presídio – e sua estranha conversa a respeito de Deus e da violência?), além de não hesitar em experimentar com a forma narrativa se for necessário, jogando a platéia em um labirinto indigesto.

A ousadia formal e temática de Ilha do Medo atinge o seu ápice quando se apresenta como uma tragédia – um gênero raro para nossos tempos pós-modernos. Não há alívio ou muito menos a possibilidade de redenção. E tudo isso por causa da escolha final do personagem de DiCaprio que não sabe se é melhor morrer como um animal ou viver como um homem bom. A pergunta trava a nossa garganta porque é a mesma que fazemos todos dias, ao acordarmos e, depois, ao dormirmos. No mundo atual, que tornou-se uma espécie de ilha do medo, a opção preferencial pela loucura é, em muitos casos, uma opção real. E quando uma obra de arte mostra esse dilema com tal presciência, a única coisa que podemos fazer é nos render e também nos perguntar se não tomaríamos a mesma decisão.

11 comentários em “A opção preferencial pela loucura

  1. “Infiltrados” não é ruim, o problema é que o filme original (acho que feito em Hong Kong) é muito melhor. Scorcese tentou se afastar da obra original para não parecer que fazia uma cópia e então o roteiro se perdeu.

  2. É um excelente filme, sem dúvida, coisa que “o aviador”, “gangues de nova york” e “os infiltrados” nem chegavam perto de ser. Com esse filme, sim, as suspeitas passam a ser infundadas, embora não esteja no nível dos filmes canônicos dele. Um toque de genialidade da direção está na cena que mostra o que de fato aconteceu no assassinato das crianças. O filme todo tem aquela atmosfera de pesadelo paranóico, e, nessa cena, impera a sobriedade – as referências ao cinema são deixadas de lado, e expõe-se apenas o real, sem trilha sonora ou ângulos de câmera imprevistos. Muito bom.

  3. Filmão. É interessante como Scorsese forja essa “opção preferencial pela loucura” numa plausibilidade espantosa. E que ele se utilize de alguns códigos conhecidíssimos da ilusão cinematográfica para endossar mais uma visão de mundo do que o mero referencialismo vazio indica que Ilha do medo está, sim, entre os seus melhores filmes.

    Mas eu discordo um pouco de quem não é lá muito defensor de filmes como “Gangues de Nova York” ou “Os infiltrados”. Acho que uma das sacadas de Scorsese, ainda que seja um agnóstico ou um católico muito relutante, está em afirmar cinematograficamente uma metafísica do mal. Em vários de seus filmes, Scorsese parece indicar: o diabo existe. Vide a construção dos personagens de Daniel Day Lewis e, principalmente, Jack Nicholson naqueles filmes citados acima. Algo notável num mundo relativista ou moderninho demais.

  4. Martim, mto interessante sua análise. Fiquei motivado para assistir a este filme, uma vez que já estava desanimado diante dos últimos lançamento do Scorsese. Não que eram filmes ruins, pelo contrário. Mas sempre quebravam a expectativa. Agora, pelo que vc diz, ele voltou a nível do antigo cânone. Vou conferir. Ah, a propósito, saudações de um velho amigo e foi bom ver sua produção aqui na Dicta & Contradicta. Abs. PH

  5. Assisti ao filme, Martim. Realmente, de grande envergadura e complexo. O DiCaprio, de fato, excelente. E o Max Von Sidow, preciso. (Aliás, me lembrei daquela sessão de O Exorcista que assistimos em Cps). Qto a escolha, o que vale: acreditar na sua propria loucura e ser punido, ou na alheia e ser aprovado? Qq escolha é uma opcao pela loucura? Abs. PH Ferreira

  6. Na verdade, ao final do filme, o personagem de DiCaprio pergunta ao seu psiquiatra/companheiro de FBI o que ele pensava que era melhor: VIVER como um monstro OU MORRER como um homem bom…Do jeito q vc escreveu, parece que é morrer de duas forma diferentes…

    Dai a escolha do personagem – consciente ao que parece – pela lobotomia, ao fazer parecer que havia sofrido mais um recaida na fantasia da loucura que ocupa quase todo o tempo do filme. A surpresa do psiquiatra fica evidente em seus ohos por alguns segundos, mas o “louco” sequer se vira para responder! Continua caminhando em direção ao “fim” de seus delírios insanos (propósito da tal lobotomia) e de sua violência… Final excelentel, que se faz assim pela pergunta principalmente!

  7. É verdade, prezada Carol, errei ao colocar a pergunta final do filme desta forma. Erro já reparado. Obrigado pela observação e continue a nos visitar. Rgs, Martim.

  8. Carol: Eu teria postado idêntica observação, mas acabei me esquecendo. Concordo plenamente com sua interpretação da cena final. A meu ver, a personagem opta pela lobotomia e, por isso, finge ter regredido à loucura, ao estado de negação da realidade. Deseja se livrar de todas aquelas lembranças desagradáveis. Aliás, fui a uma livraria folhear o livro e ao que parece, a frase TO LIVE AS MONSTER OR DIE A GOOD MAN não faz parte do romance. Scorsese deve ter pensado em “Paixões em Fúria” (“Key Largo”, 1948), também marcado por um furacão e no qual a personagem de Claire Trevor comenta que é melhor ser um covarde vivo do que um herói morto. E, realmente, o modo como Di Caprio caminha rumo ao farol – solenemente, depois de esbarrar com os orderlies só faz confirmar a hipótese.

  9. Só não fica claro para mim se a opção pela lobotomia é por “live as monster” ou por “die a good man”.

  10. Ótimo post!

    Não sou entendedor de cinema. Mas achei um baita filme! A atmosfera criada e a qualidade técnica que outros já explicaram é absorvente, me envolveu por completo. Minha namorada dormiu. Eu fiquei preso durante todo o filme, confesso que não entendi algumas coisas, mas, para resumir, é como bem diz o Martim: A Ilha do Medo é um filme subversivo que provoca reflexões profundas e pertubadoras – mesmo que de forma inconsciente, como no meu caso.

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