Tarantino encontra Hobbes

É claro que Bastardos Inglórios não é o melhor filme de Quentin Tarantino – ainda creio que esta posição é de Pulp Fiction e das duas partes de Kill Bill -, mas ele guarda algumas surpresas para o espectador.

A primeira é o rigor estético de Tarantino e o modo como ele joga tudo isso para o alto sem perder o controle. Existem no filme duas seqüências de tirar o fôlego que mostram que ele sabe escrever diálogos como poucos e sabe filmar igual a um Sergio Leone quando quer. O primeiro capítulo do filme, em que somos apresentados ao coronel da SS Hans Landa (Christofer Waltz), é uma daquelas aulas de como segurar o espectador somente pelo poder mortífero das palavras – em qualquer língua. A mesma coisa acontece na longa cena da taverna, encenada igual a uma peça de teatro, em que a tensão é estendida até o limite do insuportável, para depois Tarantino resolver tudo com sua carnificina habitual, filmada com um riso repleto de nervosismo.

Mas depois Tarantino mostra que não tem medo de arriscar. Faz inúmeras citações cinematográficas – de Rastros de Ódio a Scarface, passando pela referência enciclopédia de nomes do cinema europeu – para explodir tudo com a inserção da canção-hit dos anos 80 Cat People, de David Bowie, no meio de uma cena que se passa em 1944. A reação é: O que isso faz aqui? Nada, óbvio. O que Tarantino quer fazer é mostrar para você que ele é capaz de criar o seu próprio mundo – a ambição de qualquer artista.

Assim, fica clara a opção de Tarantino em querer transformar a Segunda Guerra Mundial em uma guerra de história em quadrinhos. Hitler é visto como uma caricatura patética; Churchill faz uma ponta sem nenhuma ligação lógica com a trama; e Goebbels é mostrado como um burocrata histérico. Tal escolha vai até os últimos limites: a Guerra tem seu final alterado, com os nazistas sendo dizimados em um cinema, sob a vingança do rosto judaico que paira na fumaça de um forno crematório. Enfim, é Tarantino não só criando o seu próprio mundo, mas também mudando a história do nosso mundo.

A pergunta que fica é: Isso tem alguma relação com a realidade? Eis aí a grande surpresa de Bastardos Inglórios. Apesar de toda a traquinagem, de todo o virtuosismo, das referências populares, Tarantino mostra uma visão-de-mundo surpreendentemente madura para um cineasta que antes era acusado de ser “infantilóide”. Sua moral é simples e assustadora: Em um mundo em guerra, não existe perdão – e quem mostrar um vislumbre disto é eliminado na hora. Por isso, é previsível que algumas comunidades judaicas não gostem ao ver soldados americanos judeus escalpelando seus inimigos – afinal, a posição de vítima é sempre a mais confortável -, mas o fato é que a visão hobbesiana da guerra segundo Tarantino mostra que a paz é somente interlúdio e nada mais. O modo como o filme termina, com o personagem de Brad Pitt dando uma aula de justiça ao espectador, ainda que à custa de muito sangue, prova que estamos realmente em tempos interessantes no nosso mundo cultural. Afinal, há algo de inquietante quando um cineasta nerd possui um realismo que falta aos estadistas de pacifismo bocó que existem por aí.

15 comentários em “Tarantino encontra Hobbes

  1. “afinal, a posição de vítima é sempre a mais confortável”.
    Pois é, deve ser muito confortável ter 6 milhões de seres humanos de seu próprio povo serem torrados. De certo os sobreviventes deveriam fazer palestras de auto-ajuda pelo mundo afora e ganhar milhões.

  2. “afinal, a posição de vítima é sempre a mais confortável”.
    Pois é, deve ser muito confortável ter 6 milhões de seres humanos de seu próprio povo serem torrados. De certo os sobreviventes deveriam fazer palestras de auto-ajuda pelo mundo afora e ganhar milhões.
    PS: mandei este mesmo comentário como anônimo, mas foi sem querer.

  3. Agora, quanto à obra do Tarantino, o cara tá precisando ou sair desse mundinho que ele criou (que é legal mas já deu o que tinha que dar) ou no mínimo mexer em sua estrutura pra ver fica mais interessante. E por mais que se admire o cinema tarantinesco não há como negar o infantilismo de sua obra. Referências pop-trash que só viraram cult justamente a partir de Pulp Fiction.

  4. Saí do cinema com a mesma idéia sobre as duas cenas citadas. Cria-se uma tensão incrível nelas e, apesar de serem longas, estão longe de ser entediantes.
    Mas o final, não sei não um personagem extremamente perspicaz e inteligente como o coronel Hans Landa ter caído naquela história, acho que ficou meio bobo. Mas não tinha como ele não sar do filme com a testa marcada…

  5. Ainda bem que que já tinha visto o filme – vc contou praticamente tudo, hehe.

    PS: sempre tem babacas em todo lugar, mas duvido que em Israel o filme tenha sido (ou esteja sendo) mal recebido – alterar a história foi genial e uma grande homengens às vítimas, penso eu. abs M

  6. Comentário ignorante de quem não viu o filme:

    O cinema de Tarantino é 99% pose, aparência. É a estética e a filosofia do video-clipe e dos quadrinhos sem substância nenhuma.

    Tudo o que ele faz é criar a sensação de “cool” (e se tem uma palavra que descreve Kill Bill, é “cool”). Os diálogos, os personagens, as histórias são todos pretextos para novas poses e atitudes.

    Isso tem seu valor; eu mesmo gosto de rever Kill Bill de vez em quando. Mas não me anima muito a idéia de ver o tratamento dele a algo real e sério como a Segunda Guerra.

  7. Tarantino é cinema pra nerd esteticista e amante das sub-sub-referências da “magistral cultura pop”.

    Graças a Deus eu superei essa fase.

    O cara simplesmente não cresce.
    Mais um símbolo de nossos tempos.

  8. Posso estar errado, Joel Pinheiro, mas sou capaz de apostar que vc não se acha nem um pouco ignorante… hehe PS: melhor ver o filme antes.. hehe

  9. Tarantino faz cinema por diversão e para divertir. A sensação que tive ao ver o filme é que mesmo esses comentários finais sobre a visão madura do diretor acerca da idéia de vitimização sequer entra em questão no filme. O motivo é simplesmente divertido: a idéia de judeus matando nazistas e rindo disso. Ele poderia fazer um filme igualmente divertido sobre nazistas matando judeus.

  10. Complementando o que o Joel disse, essa sensação cool dos filmes do Tarantino (mostra um talento do diretor sem dúvida) fazem com que se torne cult o que ninguém nunca teve dúvidas de que era lixo.

  11. Quero só deixar claro que meu comentário acima é uma avaliação positiva do Tarantino. Não concordo de modo algum com esse julgamento de que seus filmes tentam apenas gerar essa ”sensação cool”. Isso me soa muito mais como uma interpretação estreitamente ideológica da obra, therefore, not cool, hehe.

  12. “Ele poderia fazer um filme igualmente divertido sobre nazistas matando judeus.”

    …Isso seria um ato de coragem.

    Um ato totalmente maléfico, sem dúvida, mas de coragem!

  13. É o melhor comentário que li a esta filme excelente. Há críticas de que o filme “não tem substâcia nenhuma”. Mas vá lá, um filme não é um tratado de filosofia e será que precisa mesmo ( para ser bom ) de ser uma aula de ética e moral? Como entretenimento é fabuloso. Será que preciso eu me confessar ao padre por gostar dos filmes de Tarantino? O melhor nos filmes de Tarantino é o inusitado, o surpreendente, o humor negro, o nonsense, essa recriação da história como diz Martim Vasques da Cunha. E violêcia por violência, Hamlet também não deve nada aos filmes de Taratino

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>