Drive e o fim do cinismo

 

Em 1940, no final de O Grande Ditador, Charlie Chaplin fez o seu famoso discurso:

“Nosso conhecimento nos tornou cínicos. Nossa esperteza, severos e cruéis. Pensamos muito e sentimos pouco[…]Mais do que esperteza, precisamos de bondade e gentileza. Sem estas qualidades, a vida será violenta e tudo será em vão.”

São palavras ditas no contexto da Segunda Guerra Mundial, mas que podem ser facilmente aplicadas em contextos diversos como, por exemplo, o meio intelectual ou acadêmico (nos quais a violência seria de um tipo mais indireto, menos físico, mais verbal) ou, então, o meio político (em que a violência que ocorre em nome da esperteza é de ordem moral, social, etc.). Podemos aplicar tais palavras na forma pela qual levamos nossas próprias vidas, nossas profissões, nossas escolhas. A maioria de nós está imersa em um cinismo avançado; vivemos de ironia e tentativas repetitivas de demonstrar uma esperteza ímpar, não sentimos realmente o que estamos falando, não há coerência interna com o que estamos fazendo, não somos sinceros sequer com nós mesmos, que dirá com os outros. E, assim, nos tornamos violentos; cometemos pequenos e diários atos de violência contra nós mesmos e contra os outros.

Drive é um filme violento (do tipo de violência que destrói crânios e faz uma sujeira terrível), mas trata-se de uma violência redentora. Para salvar aquilo que, em meio a um oceano de cinismo, é para nós o que há de bondade e gentileza, não seremos violentos? Não defenderemos aquilo até as últimas consequências, até a própria morte? E nossa morte não seria uma morte honrosa?

Ryan Gosling, o excelente herói sem nome de Drive (o “driver” ou, simplesmente, “motorista”) dirige carros em cenas elaboradas para filmes de ação durante o dia e, à noite, se disponibiliza como motorista de fuga para várias empreitadas criminosas das quais ele faz questão de se manter mais ou menos desinformado e alheio. Seu mecânico Shannon, interpretado por Bryan Cranston de Breaking Bad, é quem lhe fornece carros insuspeitos, porém envenenados, para que consiga despistar a polícia com habilidade e inteligência. Fora Shannon, o “driver” não possui raízes; não possui família, amigos ou história (por isso, sequer tem nome), mas as coisas começam a mudar quando ele conhece sua vizinha Irene (Carey Mulligan) e seu filho Benicio.

O filme passa um longo e necessário tempo estabelecendo a afeição que surge entre e o motorista e sua vizinha para que, quando ficamos sabendo que seu marido está para ser solto da prisão, possamos sentir tal informação com tristeza pelo novo casal (tudo feito em uma cena lindíssima: o motorista passeando de carro com ela, luzes verdes dos semáforos iluminam seus rostos, ela então conta sobre o seu marido, um farol vermelho, uma parada, um silêncio, um suspense, e um sinal verde novamente). Além disso, é o afeto entre eles que vai colocar todo o resto do filme em ação, até o último minuto.

O retorno do marido de Irene, Standard Gabriel, apresenta um novo problema à trama. Ameaçado por antigos parceiros, ele terá de cometer mais um assalto para sanar uma dívida. O motorista resolve ajudá-lo, mas tudo dá errado e logo ele, sua vizinha e seu filho estarão em risco. O “driver” precisará encontrar todos os criminosos envolvidos (entre eles, Ron Pearlman e Albert Brooks) para garantir não a segurança própria, mas a de Irene e Benicio.

O filme lida com o fim do cinismo porque seu personagem não poderá mais viver da forma que vivia. Agora que ele tem por quem zelar, não poderá, se conseguir salvar Irene e ainda sobreviver, voltar ao crime e colocá-la em risco novamente. Ele aprende que atos têm consequências, que não há verdadeira impunidade. Isso fica claro em uma cena em que um antigo “contratante” do motorista o aborda em um bar, querendo chamá-lo para mais um serviço, e ele reage com raiva, afastando o sujeito. Afinal, são criminosos que estão ameaçando o que ele conheceu, enfim, como o que há de melhor na vida (o amor, a família) e ele simplesmente não pode mais ser um deles ou sequer tolerá-los.

Drive é um filme maravilhoso, tanto sob o ponto de vista estético (há cenas lindíssimas em que a luz serve para pontuar momentos importantes, como o farol na cena do confronto com o personagem de Ron Pearlman na praia) quanto sob o ponto de vista de seu conteúdo. É um filme revigorante, raro, pois não só fala de um fenômeno escasso hoje em dia (o fim do cinismo) como trata-se de um filme de ação de gosto refinado;  uma experiência que se repetirá poucas vezes.

14 comentários em “Drive e o fim do cinismo

  1. Ieda, bem vinda!

    Uma boa análise para um ótimo filme.

    Além dos pontos ditos por você eu também gostei muito da trilha sonora.

    Espero mais análises,

    Abraços,

    Henrique Santos

  2. Depois de modinhas que passaram por Chesterton e por citações de autores obscuros que viraram nomes totalmente familiares para os pequenos grupos de “intelectuais de internet”, Ieda Marcondes segue a nova tendência dos círculos mais pedantes do mundo virtual -Drive.

  3. O filme é um exercício de estilo tão somente, e o é tão obviamente que me parece improvável que o diretor tenha essa mensagem “redentora”.

    [spoilers]

    O fim prova isso. Ele se importa tanto com o amor ou a tal família, que os abandona. Ou morre, dependendo da interpretação. Ele continua a ser o herói sem nome e cínico dos filmes de ação com esse estilo, a diferença é que a “muleta” do amor e da família conferem a ele um charme, seu lado humano. Mas suas ações, que são o que realmente importa, continuam as mesmas.

  4. [*****SPOILERS*****]

    *

    *

    Pedro, ele não morre. Isso é óbvio. E, na minha interpretação, ele vai até ela. Aliás, “interpretação” nem cabe, porque ele matou todo mundo que ameaçava a vida deles e agora é óbvio que ele vai se juntar a eles. Como você entendeu isso que você entendeu, eu não faço idéia.

  5. Ieda, você há de concordar comigo que críticos de cinema sabem que, num fim aberto, como o deste filme, há a possibilidade de diversas interpretações. Obviamente algumas serão mais plausíveis que as outras. Mas você está conferindo uma intepretação definitiva para um fim aberto!

    Me parece que você está vendo o que você deseja que seja verdade no fim do filme.

    Explico:

    Quando falei sobre a possibilidade de ele morrer é que o fim é aberto o suficiente para que possa haver essa possibilidade. Algumas pessoas tiveram essa reação. Imagino que seja um dos “perigos” de se fazer um fim aberto.

    O driver é obviamente um anti-herói. Não há um final feliz para ele.

    O próprio diretor explicou o fim e disse que “he lives on for more and new adventures”, procure e verá. Ou seja, agora que salvou os dois inocentes, ele os abandona e continua sua vida de crime (“aventuras”).

    Não me entenda mal, gostei de Drive, mas ele não se junta à mulher e ao filho dela, não vira um “homem de família” ou tem uma “redenção” – isso é interpretar errado todo o gênero em que esse filme se baseia e ao qual o diretor presta homenagem.

  6. Concordo que o fim pode ser entendido como aberto, mas daí a deduzir que o motorista vai voltar à vida de crimes depois daquilo tudo é fazer a mesma coisa que a autora do texto, que considerou que ele voltaria para a moça e seu filho.

    Acho que não se pode deduzir nem uma coisa nem outra, apenas que parece que ele não vai morrer, porque sai dirigindo mesmo ferido. Também parece que ele vai embora, se considerarmos o último telefonema que dá para a moça, dizendo que ela tinha sido a melhor coisa que aconteceu na vida dele. O tempo verbal pode dar uma indicação de que ao menos a intenção dele é desaperecer, já que causou tanto dano à família da moça, colocando sua vida e a de seu filho em risco, ao concordar em ajudar o marido dela no assalto/armadilha.

    Seja lá como for, a questão do cinismo foi muito bem colocada pela autora e acredito que haja sim uma possibilidade de que toda aquela violência para proteger a moça poderia modificar as ações do motorista dali para frente. Talvez ele não vá mais dirigir para criminosos, quem sabe. Mas estamos todos no campo da suposição. O filme não confirma nada disso no final.

    É uma espécie de noir combinado às tão adoradas cenas de fuga e carros velozes que os americanos gostam tanto. Violência e carros, em meio a um amor não consumado, é sempre uma boa combinação no cinemão americano.

    E a interpretação de alguma espécie de redenção para o motorista de bandidos, ao salvar a vida da moça e de seu filho — ainda que em escala “microscópica” naquele momento, a meu ver — não está descartada. Essa é uma leitura que pode ser feita SIM.

  7. Pedro, o diretor DISSE que queria fazer um filme do John Hughes (por isso a fonte cor-de-rosa, o romancezinho, as musiquinhas), mas com violência. Ou seja, você está supondo que ele está fazendo homenagem a um tipo de filme de ação em que o herói é um “anti-herói”. Longe disso.

    O final não é tão aberto assim. Ele se despede no telefonema, dizendo que ela foi a melhor coisa que conheceu, etc, porque naquele momento ele não sabe se vai morrer. De qualquer forma, sua morte seria um sacrifício em nome dela e do filho. É óbvio que aí há uma mudança de comportamento, de um cara sem raízes, que executa trabalhos pelo dinheiro, para alguém que se importa com algo e que nem faz questão de pegar o dinheiro depois que escapa.

    Mas o fato é que ele não morre. Há um suspense, ele senta no carro, fica sem piscar, finalmente pisca e sai dirigindo noite adentro (coisa que uma pessoa gravemente ferida ou à beira da morte não conseguiria fazer). Por que ele fugiria? Por que ele desapareceria? Ok, é possível. Mas eu não vejo motivação para tal. Motivação para ir ficar com ela, depois que ele mesmo eliminou todo o risco à vida deles, eu vejo.

  8. Pedro,

    Até agora, você foi a única pessoa, que eu saiba, que assistiu ao filme e não percebeu que o protagonista encontra em Irene um elemento de redenção, sim. Se ele não muda para melhor depois que a conhece, ao menos atualiza virtudes que já estavam em potência em sua personalidade. Prova mais que cabal disso é o episódio que se passa na lanchonete, apontado pela Ieda. Estou certo de que se o marido de Irene não retornasse da prisão, o protagonista seria muito capaz de se tornar um pai de família honesto, abandonando o crime.

    Carol,

    Concordo em parte com você e, neste aspecto, discordo da Ieda. Acho que o filme não tem um final aberto. A minha interpretação é que ele vive, mas não volta para Irene. Sabe por que? Se ele voltasse, a vida dela voltaria a correr perigo. Lembre-se do que diz o seu antagonista: “ela está a salvo, mas você precisa fugir”. Por amá-la verdadeiramente, ele deve ir para longe dela. E é isso que, a meu ver, ele faz. Além disso, acho suficientemente significativa a cena de Irene batendo na porta do apartamento do herói e ele, logo a seguir, pegando a estrada. Foi embora.

  9. Ieda,

    Isso vai soar bizarro pela rapidez com que mudei de ideia, mas eu vou ter que admitir que eu estava errado e você certa. De fato, o driver elimina toda a possibilidade de perigo quando mata o seu último antagonista, Bernie Rose. Quando postei meu comentário anterior, tinha esquecido deste detalhe. Sendo assim – e considerando o fato óbvio de que ele continua vivo -, não há qualquer motivo para supormos que ele não tenha voltado para Irene.

    Ieda wins.

  10. Ieda e Rafael

    Quando Driver conversa com Bernie Rose no restaurante, Rose mesmo quando já sabe que irá reaver o dinheiro deixa claro que a vida de Irene será resguardada, porém a dele não, pois teria que viver sempre atento e alerta. Mesmo devolvendo o dinheiro, e mesmo com Nino já morto, ainda existe esta ameaça apontada por Bernie, sugerindo que o problema continua, independente de Bernie e do dinheiro. Somando à cena do apartamento vazio, em que Driver não está, creio que seja mais plausível aceitar que ele se afastou para preservá-la. Além disso, enquanto dirige na cena final, sua expressão está evidentemente triste, não é a cara de quem irá encontrar seu amor. Inclusive, acho este final muito mais forte, pois aponta o total altruísmo dele, a cristalização da sua mudança.

  11. Daniel, pode ser que ele se afaste da Irene para protegê-la, mas eu não acho que o discurso do Bernie sirva para comprovar isso. O discurso dele é válido enquanto ele está vivo (porque ele obviamente não espera ser morto). Eu realmente acho que matando todo mundo, ele eliminou todo o perigo. A cena da Irene batendo na porta do apartamento é bem mais discutível. Eu acho o seguinte: Várias cenas são criadas para aumentar a tensão do filme como, por exemplo, quando ele se despede dizendo se não sabe se vai voltar ou não, quando ele é esfaqueado, senta no carro e não sabemos se ele vai voltar a piscar ou não… É possível afirmar com certeza que ele não morre. Admito que voltar para ela é mais complicado, mas, mesmo com toda a tensão, eu ainda acredito nisso. Especialmente quando o diretor cita John Hughes. Pra mim, um final feliz, com os dois juntos, é a única opção, dada a proposta. Mas aí, é claro, cada um vai entender o que quiser.

  12. Depois de ler essa crítica, e me interessar pelo filme, fui à cata de outras. Caí no Guia da FSP e me deparo com essa descrição do filme:

    “Piloto profissional que trabalha em cenas de perseguição de carros em Hollywood também usa habilidade como motorista em assaltos. Ao tentar ajudar uma família que mora no apartamento ao lado, ele acaba se metendo em apuros.”

    http://guia1.folha.com.br/guia/cinema/drama/1343044/drive

    “Acaba se metendo em apuros”?! Faltou o clássico “grandes confusões”!!!

    É a infantilização da crítica. Ou a subestimação levada ao extremo do leitor.

  13. Acho que ainda existe o risco relacionado à máfia do leste. Um dos motivos que Nino tinha para matar o driver era fazer com que a máfia do leste não ficasse sabendo que ele estava envolvido, sugerindo que eles viriam atrás do dinheiro. Bernie fala um momento: “o dinheiro é sempre rastreado”. Ou seja, existe esta ameaça. Afinal, ele participou do assalto, e devolvendo ou não o dinheiro, eles acertariam as contas. Acho que esta é uma ponta solta a considerar.

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