Especial 50 anos de Teoria Mimética Parte 2 – Da descida aos infernos à ressurreição

Por Karleno Bocarro

Apaixonei-me logo pela mulher de meu amigo, confessa Dostoiévski. O ano é 1854, ele tinha acabado de deixar a prisão; obrigado ainda, como cumprimento de pena, a servir como soldado em Semipalátinsk, província siberiana, onde torna-se amigo do casal Issáiev. Logo em seguida, falece o marido. Dostoiévski pede a viúva, Mária Dmítrievna, em casamento. Mária é uma espécie de Emma Bovary russa que adora falar com orgulho de seus antepassados franceses emigrados durante a Revolução, e anseia por uma existência moscovita. Ela porém ama um outro, o jovem e belo Vergunov. Dostoiévki tem trinta e cinco anos, é feio. Vergunov é professor; ganha pouco. Dostoiévski retrata então para a viúva um quadro magnífico de si mesmo – um brilhante escritor com um futuro solar – ao mesmo tempo em que desencanta o rival: ligar-se a ele significa uma existência, na desolada Sibéria, com uma fileira de filhos. Contudo, é preciso não dar a impressão de estar trabalhando para si mesmo; Dostoiévski intercede pelo rival junto à Mária. A paixão de Dostoiévski, exasperada pelo entusiasmo da jovem por Vergunov, além de exageradamente romântica, é mórbida, doentia. Ele escreve: Sou um louco! Um amor dessa espécie é uma doença. E justifica sua conduta ambígua, sem deixar de atribuir-se uma grandeza de alma superiora, a questões táticas; felicita-se, fala às vezes da santidade de seu amor. Vergunov todavia perde interesse por Mária. Confrontado com a responsabilidade em manter um compromisso assumido, Dostoiévski casa com Mária, mas a sua paixão logo arrefece. No dia do casamento ele tem um ataque de epilepsia e a vida conjugal inicia-se com brigas e dificuldades financeiras.

Em um de seus primeiros livros, Dostoiévski: Do Duplo à Unidade (Tradução de Roberto Mallet. É Realizações, 2011), René Girard pretende tornar a biografia do escritor russo, graças à obra, verdadeiramente inteligível, e não o contrário, com a sua biografia explicar a obra. Girard mostra como Dostoiévski, nas suas primeiras obras, expõe em graus variados a própria experiência de um amor obsessivo, o qual se mantém aceso por meio de uma relação triangular – a atração de um homem por uma mulher aumenta vertiginosamente quando existe um outro por qual ela se interesse. No entanto, este outro não é somente um odiado rival, ele estimula uma paixão que tende a tornar-se excessiva e perigosa. Recua o interesse do rival, como o caso do jovem Vergunov por Mária, diminui a fascinação do apaixonado. O resultado é relacionamentos artificiais com pouco pé na realidade. Segundo Girard isso acontece porque o desejo humano, ao contrário dos apetites e necessidades naturais – aqui o instinto determina os objetos –, depende sempre da mediação do outro, de um modelo adotado como guia para a definição do próprio desejo, o qual é sempre mimético, nunca autônomo. Mas essa necessidade de imitação leva a tensões entre a rivalidade e a admiração, a qual pode degenerar tanto numa raiva incontrolável como numa fusão apaixonada e perigosa – um tema dostoiévskiano recorrente, quer se trate de personagens comuns ou de personalidades históricas. Por exemplo, a admiração de Raskhonilkov por Napoleão em Crime e Castigo, ou de Arcádi, o herói em O Adolescente, pelo banqueiro Rothschild.

As grandes personagens de Dostoiévski trazem à tona a sua própria experiência de vida: deterioração espiritual, obsessões maníaco-depressivas, compulsão por jogos, crises de epilepsia e conflitos com seus pares. Um episódio que ilustra bem esta cega rivalidade é aquele que envolve a sua estréia como romancista. Acolhido, ao estreiar na vida literária com Gente Pobre, como um novo Gógol, invejado por Turguiêniev e Nekrasov, Dostoiévski cai em desgraça ao desagradar Belinsky, o crítico literário mais importante da época, com O Duplo – aos olhos de Belinsky, um romance em demasia psicológico e pouco político; alheio aos problemas sociais da Rússia. Ele escreve ao irmão: Fiquei abatido; tenho um terrível defeito; um orgulho, uma vaidade sem limites. O simples pensamento de ter decepcionado a expectativa do público e de ter estragado uma obra (O Duplo) que poderia ter sido grandiosa mata-me literalmente. Muitas passagens estão mal-acabadas. Tudo isto torna-me a vida insuportável.

Girard demonstra como esta experiência particular e pendular de vaidade ao orgulho ferido é exemplarmente refletida em Memórias do Subsolo. O maior sofrimento do herói do subsolo provém do fato dele não conseguir distinguir-se dos homens que o rodeiam. Ele pretende derrotar os outros, mostrar-lhes a dignidade de ser “único”. Mas aos poucos toma conscência do fracasso, pois percebe-se rodeado de pequenos funcionários com sonhos e (também) derrotas idênticos. E na tentativa desesperada de obter-lhes o reconhecimento, para ganhar a própria auto-estima, liga-se mais e mais a eles, tornando-lhes semelhante. Consciente da derrota, da inutilidade da luta contra seus adversários, o sentimento que o domina ao final é de inferioridade. O anti-herói do subsolo possui enfim uma atitude ambígua em relação ao oponente: ele o admira e o rejeita, mas quando fracassa se divide em um ser desprezado e um observador que despreza. Torna–se Outro para si mesmo.

René Girard observa que esta fase romântica, impregnada de elementos de sadismo e masoquismo, não salva o escritor; encerra-o muito mais num círculo de orgulho, ressentimento e mentiras. Pior, perpetua o mecanismo de uma existência voltada ao fracasso e à fascinação doentia por si mesmo.

No entanto, observamos em Crime e Castigo, o primeiro grande romance de Dostoiévski, os traços iniciais de uma conversão. Raskholnikov, em seu nihilismo, vai mais longe, ao cometer assasinato, do que o homem do subsolo. Confrontado com o orgulho e loucura de seu crime, Sonja, porém, o salva. Ele orienta-se, ao contrário do homem do subsolo que recusa o amor de Lisa, a prostituta, em direção à redenção – aceita a culpa e carrega a própria cruz.

Em Os Possessos o mundo é um abismo repleto de homens de subsolo: o moralmente suspeito Stepan Trofímovitch, o rancoroso e vingantivo Vierkhovênski, o demoníaco Stavróguin, o sinistro Kirilov; todos em busca de uma redenção às avessas, a própria danação. Kirilov é a personagem de Dostoiévski que mais nos lembra Nietzsche e sua tentativa de sobrepujar o nihilismo, num mundo onde todos estão plenamente perdidos e derrotados, por meio de exagerada afirmação do eu. Uma perigosa tentação que Dostoiévski superou ao colocar Cristo no centro de sua relação com o outro, um outro que devemos amar como a nós mesmos, se não queremos idolatrá-lo e odiá-lo no fundo do subterrâneo. Mas que em Nietzsche naufragou em demência, pois “querendo divinizar-se sem o Cristo, o homem coloca-se a si mesmo na cruz” (p. 128). Ou então ao revoltar-se contra Deus para adorar-se a si mesmo acaba sempre adorando o outro, como a devoção das personagens do livro pelo demoníaco Stavróguin. Pois bem, nessa verdadeira proclamação do triunfo de Satã que é Os Possessos onde encontra-se a eficiência da graça? Girard especula que a escolha cristã pode ser deduzida da loucura e fracasso dos personagens.

Se o período “romântico” é uma verdadeira descida aos subterrâneos do inferno, onde a presença do orgulho está por trás de todas as coisas, nos separando dos outros e de nós mesmos, nos romances intermediários – Crime e Castigo, O Idiota, Os Possessos  e O Adolescente – o subterrâneo não é mais uma condição irreversível, e sim uma passagem para a última etapa de uma cura espiritual. Pois como diz Aliocha a respeito do irmão Ivan: Ou ele ressuscitará na luz da verdade, ou sucumbirá no ódio. Isso significa, segundo Girard, que à luz de seu último romance, Os Irmãos Karamazov, a existência de Dostoiévski, e o conjunto de sua obra, assumem a forma de uma morte e de uma ressureição: “Aceitando ver-se primeiro como pecador, o escritor não se desfez do concreto, não se abismou na deleitação amorosa: abriu-se a uma experiência espiritual de que sua obra é tanto a recompensa quanto o testemunho” (p.142). Criar significa outrossim matar o homem velho, prisioneiro de formas estéticas, psicológicas e espirituais que estreitam o horizonte de homem e de escritor.

A edição da É Realizações ainda traz um DVD, A Gênese de uma Ideia, com entrevistas de René Girard. Nelas vemos um homem afável e inteligente. Pensador de qualidade, Girard se expressa como escreve; a sua prosa é límpida e agradável. O livro e o DVD oferecem, portanto, uma excelente introdução ao pensamento deste que é ao lado de Joseph Frank, George Steiner, Lev Shestov, Nikolai Berdiaev, Romano Guardini, Henri de Lubac, um dos grandes estudiosos de Dostoiévski.

Karleno Bocarro é escritor, autor de “As almas que se quebram no chão” e de “O advento” (no prelo).

5 comentários em “Especial 50 anos de Teoria Mimética Parte 2 – Da descida aos infernos à ressurreição

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  2. Os dramas pessoais são inerentes ao ser humano. Até parece que Dostoiévski baixou aos porões da vida apenas com o intuito de nos contar. O amor nesses casos é como um leão enjaulado. Sem saber o porquê lhe prenderam ali, ele cresce descomunalmente e se atira às grandes sem que possamos controlá-lo, para se transformar num mostro perigoso. Mas o que seria de nós sem as grandes tragédias, os grandes dramas e os monstruosos amores?
    Karleno está de parabéns pelo artigo brilhante. Compartilhamos dos mesmos gostos literários.

  3. excelente texto, que bom termos escritores de sua cateqoria, para nos levar a reflexões importante, atraves de leitura tão ricas de imformação….. parabêns!!!!

  4. “Consciente da derrota, da inutilidade da luta contra seus adversários, o sentimento que o domina ao final é de inferioridade.” Discordo totalmente de que o sentimento do personagem principal do subsolo seja de inferioridade, muito pelo contrário, é uma atitude cínica em relação ao mundo ante a impossibilidade de mudá-lo, e cuja linguagem é inclusive incorporada por Machado de Assis. É uma forma de resignação (que é muito difernte de conformismo, já que a resignação é uma atitude inteligente de quem não sai esperneando e descontando os próprios problemas e aflições internas nos outros).

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