O que aconteceu com Mário Vieira de Mello?

Esta foi a pergunta que me fiz ao revirar a minha biblioteca e encontrar os seis livros que compõem a obra deste pensador brasileiro. São eles: Desenvolvimento e Cultura, O Conceito para uma Educação de Cultura no Brasil, Nietzsche – o Sócrates de nossos tempos, O Cidadão, O Humanista e O Homem Curioso. Todos escritos e publicados em um espaço de mais de quarenta anos de atividade intelectual. Todos escritos em uma linguagem acessível, elegante, redonda, sem medo de opinar sobre suas visões polêmicas porque, sem dúvida, tinha uma meditação sólida por trás de cada uma de suas linhas. E, de repente, Mário Vieira de Mello sumiu. Caiu no mais completo esquecimento. Há apenas uma menção no livro O Futuro do Pensamento Brasileiro, de Olavo de Carvalho (que, por sua vez, escreveu uma bela orelha introdutória para O Humanista, publicado pela Topbooks) e nada mais. Liguei para a editora que publicou a maioria de seus livros e fui informado que “o autor já falecera”. Alguém viu um obituário sobre ele (favor não confundam com o seu parente Sérgio, vítima do trágico atentado no Iraque…)?

Esta é mais uma amostra de que o Brasil é um país sem memória, yadda yadda yadda. Mas não se trata somente de um caso de um pensador que viveu fora dos circúlos intelectuais mainstream e que não é lembrado sequer por potenciais leitores que deveriam entender os seus escritos. Em várias páginas de O Cidadão, seu ensaio de “política filosófica”, Vieira de Mello faz uma reflexão assustadora e premonitória sobre a situação política atual, em especial a dos Estados Unidos. Segundo o pensador e diplomata brasileiro, existem três grandes fatos na História que surgiram através do “ideal da igualdade”: 1) A Revelação ao Povo de Israel do Deus único, em que forma-se uma aliança até o final dos tempos; 2) O surgimento da polis de Atenas como matriz da democracia grega, e 3) O evento histórico da Revolução Americana. Apesar de fazer referências à Revolução Francesa, considerada por muitos o início da modernidade, Vieira de Mello acredita que a Revolução Americana cumpre melhor esse marco porque, afinal, os americanos são os primeiros a construírem um país sob o ideal da igualdade.

Ao pensar nas relações entre esses eventos – e tecendo brilhantes insights sobre Platão e Aristóteles, inclusive com críticas contundentes a respeito da ética deste último -, ele faz a distinção entre Estados que se baseiam em “estruturas de poder” e “estruturas de cultura”. A sociedade que prefere se apoiar na primeira estrutura fará a sua escolha pela “liberdade exterior”; quando se escolhe a segunda estrutura tem-se consequentemente a “liberdade interior”. Esta última é defendida por Sócrates e Platão como exemplo de uma liberdade conquistada pelo indivíduo através de lutas e tensões constantes para dominar as suas paixões e deixar a razão do espírito dominar a sua vontade e a sua deliberação.

Os EUA – ao realizarem uma revolução que rompe com a tradição cultural européia – se apoiam na “estrutura de poder” e assim se identificam com a “liberdade exterior”. O argumento de Mário Vieira de Mello é que, ao fazerem tal opção, os EUA acreditam que realizam o caminho da liberdade, quando se esqueceram da interioridade moral defendida por Platão,  e se preocupam somente com instituições e procedimentos formais, instrumentalizando o indivíduo em função de um governo ou de uma lei. Para a tirania – pelo menos na visão platônica explicada em A República – falta apenas um passo.

O que me espantou foi a clarividência da análise. Claro que Mário Vieira de Mello não fez nada de novo – Tocqueville intuiu a mesma coisa. Contudo, dentro da nossa época “obâmica”, em que nós desconhecemos se a Nova Ordem chegará pelo braço econômico ou pelo braço ecológico, não podemos deixar de lado a análise feita pelo falecido embaixador e ver que, de uma certa forma, a confusão entre “liberdade exterior” (um argumento que, por exemplo, é aplicado pelos defensores de Hugo Chávez, uma vez que ele foi eleito através de voto popular) e a “liberdade interior” é um dos nós górdios do nosso tempo. Se meditarmos com constância sobre esse dois pólos da cidadania política, percebemos que Vieira de Mello resolve uma dicotomia (odeio o termo, mas é o único que me vem à cabeça) que se encontra esboçada no clássico texto de Isaiah Berlin, Dois conceitos de liberdade. E, por sua vez, a opção pela “liberdade exterior” como pilar de sustentação das “estruturas de poder” nos faz ver que a questão da tolerância – ou, para sermos exatos, da liberdade de expressão – pode se tornar somente mais um termo oco na linguagem política, com o perigo de não ter nenhum significado na própria linguagem cotidiana, no melhor estilo “serei tolerante contigo desde que você não prejudique a minha tolerância”. O que, de outro ponto-de-vista, é a mesma forma que os nossos políticos e os nossos intelectuais acham que deve ser praticada a liberdade deles.

Ainda assim, o mais preocupante, para os efeitos deste post, não é só o problema da liberdade, mas o esquecimento que construíram ao redor da obra de Mário Vieira de Mello. Milan Kundera conta, em seu romance O Livro do Riso e do Esquecimento, a seguinte história:

Em fevereiro de 1948, o dirigente comunista Klement Gottwald postou-se na sacada de um palácio barroco de Praga para discursar longamente para centenas de milhares de cidadãos concentrados na praça da Cidade Velha. Foi um grande marco na história da Boêmia. Um momento fatídico que ocorre uma ou duas vezes por milênio.

Gottwald estava cercado por seus camaradas, e a seu lado, bem perto, encontrava-se Clementis. Nevava, fazia frio e Gottwald estava com a cabeça descoberta. Clementis, muito solícito, tirou seu gorro de pele e o colocou na cabeça de Gottwald.

O departamento de propaganda reproduziu centenas de milhares de exemplares da fotografia da sacada de onde Gottwald, com o gorro de pele e cercado por seus camaradas, falou ao povo. Foi nessa sacada que começou a história da Boêmia comunista. Todas as crianças conheciam essa fotografia por a terem visto em cartazes, em livros ou nos museus.

Quatro anos mais tarde, Clementis foi acusado de traição e enforcado. O departamento de propaganda imediatamente fez com que ele desaparecesse da História e, claro, de todas as fotografias. Desde então Gottwald está sozinho na sacada. No lugar em que estava Clementis, não há mais nada a não ser a parede vazia do palácio. De Clementis, só restou o gorro de pele na cabeça de Gottwald.

Confesso a vocês que, do jeito que as coisas estão, temo que a obra de Mário Vieira de Mello (e a de outros gigantes como Mário Ferreira dos Santos, José Guilherme Merquior, Otto Maria Carpeaux) vire o “gorro de pele na cabeça de Gottwald”.

14 comentários em “O que aconteceu com Mário Vieira de Mello?

  1. Mário
    (Vinícius de Moraes).

    Entre meditabundo e sonolento
    Sobre a fofa delícia da almofada
    Ele vai perseguindo na jornada
    Através do Ottocento e o Novecento

    Não o tires dali que dá pancada
    Todo o resto prá ele é sofrimento
    Vai colhendo da flor do pensamento
    Toda a filosofia desejada

    Só abandona voluntário o élan
    Para o banho de poço da manhã
    “Mens sana…” disse François Leblon

    E às vezes, Carnaval, diz na folia
    E passeia porrado pela orgia
    Sob o signo pagão do rei Mammon

  2. Será que o fato de “1984” ter sido publicado em 1948, mesmo ano do “acontecimento do gorro”, é pura coincidência? No mínimo, uma grande ironia do destino…

    Excelente texto, Martim!

  3. Caramba! Tomei um susto. Não sabia, apesar da idade avançada do pensador, que Mario Vieira de Mello havia falecido. Se há um autor que não tenho tirado da cabeceira e da cachola é ele. Tento, e só tento, por ser árdua e difícil, por em prática a “liberdade interior” tão cara a Mario Vieira de Mello. Leio e releio a curta e gigantesca obra dele. Obrigado, Martim, pelo texto.

  4. Boa lembrança! Quando li “O Conceito para uma Educação de Cultura no Brasil”, lembro-me, fiquei impressionado! Bem, já seria uma boa se a Dicta cuidasse sempre de lembrar esses nomes…

  5. Espetacular o conceito de “liberdade interior” como posto pelo Vieira de Mello.

    Está em plena concordância (e creio que ele sabia disso) com o pensamento que ecoa desde um Sócrates e reverbera até n’um Boécio e tantos santos padres: a real liberdade provém do conhecimento, porque conhecer é apreender as alternativas da realidade. Quem não conhece não pode jamais proclamar-se liberto, mesmo que dotado do mais espetacular poder de “liberdade externa” (material). É fundamentalmente por causa disso que hedonismo e liberdade não são compatíveis, por exemplo.

  6. Pingback: A pureza do desespero | Dicta & Contradicta

  7. Fico feliz por ler um artigo desse. Estou tendo o primeiro contato com esse pensador. Tudo por uma razão bem nobre. Encontrei um professor que se dispos a me orientar numa futura dissertaçao de mestrado no referido autor. Abraço!

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  9. Pensador de fato e não repetidor de citações importantes, Mário era pensador autêntico, meditador profundo para além dos pensamentos aspeados da maioria dos intelectuais mainstream.

    Mário foi o pensador mais seriamente preocupado com a Educação que eu pude conhecer.

    As críticas dele a pensadores como Heidegger, Foucault e Sartre, são irresistíveis. Eu lia esses filósofos e Mário ao mesmo tempo na graduação, e até hoje lembro vivamente do parafuso na minha cabeça.

    Sou mais adimirador que conhecedor, mas que sorte a minha de ter tido algum contato com sua obra. Fico triste de descobrir que ele morreu desta forma tão anônima. Lamentável perder um pensador tão grande sem sequer se dar conta disso.

  10. Excelente e justo comentário. Mário foi meu chefe na Guatemala e nos tornamos amigos. Li alguns de seus livros e, embora os tenha apreciado como discussão profunda de temas filosóficos, na época (70s) seu pensamento me parecia algo conservador: idealizava o sistema político inglês, apreciava muito a visão de uma aristocracia de valores , como preconizava Nietzsche; e detestava os americanos. O comentário de Martim, ao salientar o contraste entre liberdade interior e exterior, sobretudo quando há o predomínio da última e de seus formalismos é perigoso. Evidencia-se isto na atual discussão nos EUA sobre “drones e targeted killings”, onde se vê a que ponto o poder americano deseja justificar o uso indiscriminado de armas da nova tecnologia que atingem terroristas e civis (estes últimos reduzidos à categoria de perdas colaterais).
    Gilberto

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